Edição 345 | 27 Setembro 2010

O Valério morreu

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Álvaro Valls

 

Era um pesquisador 24 horas por dia. Traduziu a Crítica da razão pura, a Crítica da razão prática e, junto com o português Antonio Marques, a Crítica da faculdade do juízo (passava às vezes meses inteiros com um termo técnico na cabeça, e não perdia a oportunidade de consultar os colegas sobre a melhor tradução daquela expressão). A UFRGS dos tempos do Valério, que depois absorveu professores como Balthazar, Faria e Boeira, era um centro de pesquisa com alto nível de pós-graduação. Ali se formou, por exemplo, um futuro chefe do departamento de filosofia da USP, Marco Zingano . O grupo adotava estratégias inteligentes: se a filosofia, fora dos currículos do ensino médio, não tinha mercado, a UFRGS do Valério formou dezenas de professores hoje atuantes nas universidades do sul ao norte do Brasil.
Uma faceta que ainda precisa ser estudada: seu humor. Demorava para rir das piadas, ria atrasado (mas então às vezes estrondosamente). O cômico era, para ele, também assunto de reflexão. Mas, se a verdadeira seriedade faz a síntese da seriedade e da brincadeira, não podemos deixar de recordar Valério falando em público, fazendo algum pequeno discurso. Se improvisava, as frases, tão incisivas, custavam a sair; mas se anotava antes as ideias, em letra graúda com sua caneta esferográfica, o discurso saía sempre forte e marcante. (Ou “quase sempre”, como gracejavam os seus amigos: isto é, sempre que encontrasse as folhinhas na ordem certa...).

Geralmente informal (difícil imaginar alguém chamando-o de Professor Doutor Rohden - o que no entanto ele era), Valério sabia ser amigo, e era um homem generoso, bondoso e desprendido. Foi, como já o previa o próprio Kant, várias vezes incompreendido, injustiçado, algumas vezes talvez manipulado pelos que faziam política diferente daquela que visava à paz perpétua. Sentia o golpe, a ingratidão, mas acabava perdoando. Não tinha tempo para ressentimentos, pois precisava trabalhar, precisava produzir, fazer a filosofia avançar. Embora soubesse que, para Kant, não se ensina a filosofia, mas só se ensina a filosofar. Não há exagero em dizer que Valério ensinou incontáveis gerações de jovens e até colegas a filosofar. Ele fez diferença, em nosso meio acadêmico, talvez mais do que qualquer outro pensador gaúcho. Depois dele a nossa filosofia já não é mais a mesma. A filosofia que se faz no Brasil tem e terá, por um bom tempo, muitos traços do estilo do Valério. A comunidade agradece por essa vida, toda dedicada ao filosofar.

Leia mais...

>> Confira outras entrevistas concedidas por Álvaro Valls à IHU On-Line.
 
* Paulo e Kierkegaard. Edição número 175, revista IHU On-Line, de 10-04-2006;  
* Uma Filosofia brasileira surgirá com tempo e muito trabalho. Notícias do Dia 16-11-2006;
* “O que Dawkins vem fazendo atualmente não é ciência, mas sim uma pregação de suposições filosóficas indemonstráveis”. Edição número 245, revista IHU On-Line, de 26-11-2007;
* Carlos Roberto Velho Cirne-Lima. Depoimento concedido à Edição número 261, revista IHU On-Line, de 09-06-2008;
* O avanço da pesquisa em Kierkegaard no Brasil. Edição número 314, revista IHU On-Line, de 09-11-2009.

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