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Patrícia Fachin
Preocupo-me com as nascentes e com a conservação dos corpos d’água dos rios, principalmente, daqueles que formam o Pantanal. Nas áreas de nascente, de planalto e de recarga dos aquíferos, que ficam exatamente entre a Bacia do Alto Paraguai e a Bacia do Paraná, o desmatamento e o uso intensivo do solo estão elevados”. A ponderação é feita pela bióloga Débora Calheiros, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. Segundo a pesquisadora, a degradação do planalto ocorre em função do uso agropecuário intensivo, que já resulta em 60 a 80% do desmatamento na parte alta do Pantanal. O desmatamento na planície também está aumentando e é ocasionado pela produção de carvão para as siderúrgicas que já existem no Pantanal, no Mato Grosso do Sul, em São Paulo e Minas Gerais. “O carvão de mata nativa é o mais barato que existe, por isso, o cerrado do Mato Grosso do Sul está sendo desmatado para produção de carvão”, aponta.
O Pantanal é uma região abundante em minério de ferro e manganês e, em função desses recursos naturais, o governo prevê a instalação de um polo minero-siderúrgico e hidrovias na região. “Pôr esses empreendimentos no coração do Pantanal, numa região em que não existe poluição de metais pesados e compostos altamente tóxicos, no meu ponto de vista, é ser contra todos os arcabouços legais e políticas públicas que defendem a preservação do Pantanal como Patrimônio Nacional. É possível extrair o minério da região, mas não é adequado processá-lo no Pantanal”, assinala.
Débora Calheiros é graduada em Ciências Biológicas pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo - USP, mestre em Engenharia Civil na área de Hidráulica e Saneamento pela mesma universidade, onde também cursou doutorado em Ciências (Energia Nuclear na Agricultura). Atualmente é pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa, no Pantanal. Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é a atual situação ambiental das bacias hidrográficas do Pantanal?
Débora Calheiros – Na Bacia do Alto Paraguai, que fica no lado brasileiro, existem várias sub-bacias: a bacia do rio Cuiabá, do rio Jauru, do rio Taquari, do rio Miranda, do rio Aquidauana. Todas essas sub-bacias enfrentam o problema do desmatamento. Segundo o estudo realizado por diferentes entidades, como o World Wildlife Fund - WWF , a Ecoa, a Embrapa Pantanal, o SOS Pantanal e outras ONGs, as áreas de planalto estão bastante degradadas pelo uso agropecuário intensivo, que resulta em 60 a 80% de desmatamento na parte alta do Pantanal. Cerca de 15% da planície foi desmatada.
Preocupo-me com as nascentes e com a conservação dos corpos d’água dos rios, principalmente, daqueles que formam o Pantanal. Nas áreas de nascente, de planalto e de recarga dos aquíferos, que ficam exatamente entre a Bacia do Alto Paraguai e a Bacia do Paraná, o desmatamento e o uso intensivo do solo estão elevados. Isso quer dizer que a mata ciliar, as encostas e as nascentes estão sendo utilizadas sem respeitar o Código Florestal e as boas práticas agrícolas.
IHU On-Line - Quais os impactos da alteração ambiental do planalto pantaneiro? Como eles se refletem nos rios do ecossistema?
Débora Calheiros – O aumento do desmatamento no planalto ocorre desde a década de 1970, quando a região passou a ser ocupada pela agricultura e pela pecuária intensivas. Essas práticas aumentaram os processos de erosão do solo, o qual passou a ser carreado pelas enxurradas para dentro dos rios, provocando assoreamento. Naturalmente, a planície pantaneira é sedimentada, então, é natural que ocorra esse processo de erosão no planalto e de sedimentação na planície. O problema é que o homem está acelerando esse processo e causando o assoreamento de todos os rios que formam o Pantanal. O exemplo mais grave é o do rio Taquari, que está com uma área de aproximadamente 5 mil km² assoreada, segundo o pesquisador Carlos Padovani.
IHU On-Line – Que diagnóstico faz da atual situação dos rios do Pantanal? Quais deles já sofreram impactos ambientais?
Débora Calheiros – No Pantanal, os rios têm poços profundos, nos quais vivem algumas espécies como o peixe jaú . Os rios que formam o Pantanal nascem no planalto, deságuam na planície e chegam ao Rio Paraguai, que é o principal rio da bacia. Todos eles estão sofrendo esse processo de entupimento e estão sendo preenchidos por areia. Em função disso, os pescadores já dizem que está ficando cada vez mais difícil conservar o jaú nesses locais.
Outra questão que gera impactos nos rios é a poluição causada pelos esgotos das cidades e dos frigoríficos. Estamos trabalhando em um projeto de saneamento que está implantando coleta e tratamento de esgoto em várias cidades da região pantaneira. Esse é um trabalho positivo e está atrelado às Metas do Milênio promovidas pela ONU para diminuir a poluição dos rios.
Outra demanda preocupante é o proliferamento das hidrelétricas e Pequenas Centrais Hidroeléticas - PCHs sem nenhum controle porque as PCHs seguem um modelo de licenciamento municipal. Esses empreendimentos são altamente rentáveis economicamente, mas, sem uma avaliação conjunta de todas as obras que estão sendo previstas e implantadas na região, temos a preocupação de que esses projetos afetem a dinâmica do ciclo de cada rio, além da hidrodinânica do sistema Pantanal como um todo.
Precisamos ter uma avaliação ambiental integrada dos impactos conjuntos de todos esses empreendimentos. O Ministério Público Federal está apoiando esse questionamento juntamente com o Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Além do mais, o Comitê Nacional de Zonas Úmidas já elaborou uma resolução sobre essa questão, pois estão preocupados com a forma com que está acontecendo feito o uso dos recursos naturais na Bacia do Alto Paraguai.
O principal fenômeno que rege o Pantanal são os pulsos de inundações, ou seja, os ciclos de cheias e secas anuais e plurianuais. Se mudar o pulso de inundação, muda também o funcionamento ecológico biogeoquímico do sistema e, por conseguinte, se tem efeitos na biodiversidade como, por exemplo, na produção pesqueira. O pessoal do setor elétrico argumenta que as PCHs não causam impactos e geram energia limpa. Em termos de produção de CO2, podemos dizer que é uma energia limpa. Mas, em termos de conservação de uma ambiente aquático, ela é trágica: as hidrelétricas são um problema para a conservação de qualidade da água e de produção e diversidade de peixes. O professor Ângelo Agustinho mostrou, em um estudo, que a instalação de hidroelétricas na Bacia do Paraná gerou uma diminuição das espécies de peixes, além da diminuição do tamanho das espécies remanescentes. Ademais, há um problema social envolvido nessa questão, uma vez que diversas famílias de pescadores dependem dessas qualidades de peixe.
As PCHs e as hidrelétricas são uma barreira para a migração dos peixes migratórios e para os nutrientes que fluem pelos rios. Quando se põe uma barreira, se impede o fluxo natural e se modifica o ambiente: assim, não se tem mais um ambiente de rio e, sim, de lago. Pessoas favoráveis às barragens dizem que as PCHs não precisam de um lago muito grande. Entretanto, a própria existência da barragem, que pode atingir de 10 a 40 metros, representa uma barreira que impede o fluxo de nutrientes. Isso é preocupante numa planície de inundação que depende do ciclo natural das águas.
IHU On-Line - Quantas hidrelétricas existem no Pantanal? Elas interferem no pulso de inundações da região?
Débora Calheiros –
Atualmente, existem 29 barragens implantadas na região e a previsão é que esse número aumente para 116. Cada empreendimento é licenciado separadamente e isso é preocupante, no sentido de que não se consegue ter uma visão do conjunto.
IHU On-Line - A senhora diz que um dos maiores problemas do Pantanal é a industrialização de Corumbá. Qual é a implicação do polo siderúrgico e do gás químico para o Pantanal?
Débora Calheiros – O Pantanal é considerado Patrimônio Nacional pela Constituição Federal. Inclusive, a Constituição prima pela qualidade nos termos técnicos da questão ecológica de conservação. O artigo 225 diz que se deve manter os processos ecológicos do sistema. Para mantermos os processos ecológicos no Pantanal, é preciso manter a qualidade ambiental. Isso quer dizer que devemos utilizar os recursos naturais com limite. Como o Pantanal é uma planície de inundação, esses processos são hidroecológicos, ou seja, estão relacionados com os pulsos de inundações. Então, temos de desenvolver a região de uma forma embasada cientificamente e com discussão com a sociedade. Temos de cuidar para não cometer os mesmos erros que foram cometidos em outros ambientes brasileiros.
O polo industrial foi previsto para ser instalado na região que tem o melhor solo e a melhor água do Pantanal. Embora se trate de uma área inundada, no Pantanal também há escassez de água regional em Corumbá porque o solo é calcário. A água de poço nessa região é salobre e os corpos d’água são córregos, os quais estão sendo impactados pelo uso na mineração: lavamos minério com água mineral. Então, o polo industrial seria implantado na região de melhor solo, que é habitada por uma comunidade há anos. Além de o local de implantação não ser o ideal, esses empreendimentos são altamente poluidores, pois utilizam o gás químico da Bolívia – deveriam usar gás petroquímico, entretanto, o gás químico facilita a produção de plástico, fertilizantes. O polo minero-siderúrgico utiliza minério e o processa para a fabricação de ferro gusa e aço. Pôr esses empreendimentos no coração do Pantanal, numa região em que não existe poluição de metais pesados e compostos altamente tóxicos, no meu ponto de vista, é ser contra todos os arcabouços legais e políticas públicas que defendem a preservação do Pantanal como Patrimônio Nacional. É possível extrair o minério da região, mas não é adequado processá-lo no Pantanal.
Na região já existem duas siderúrgicas: uma é mais antiga e outra foi instalada em 2007. Os governos estadual e municipal querem implantar uma zona de processamento de exportação para agregar valor ao minério no processamento até o aço e não exportá-lo de forma bruta. No projeto anterior à crise econômica, a ideia era instalar 14 ou 15 indústrias na região e, no lado boliviano, também há perspectiva de instalar um polo siderúrgico. Depois da crise, essa perspectiva diminuiu. A Rio Tinto , por exemplo, uma grande mineradora que estava instalada no Pantanal, foi vendida para a Vale do Rio Doce . Então, o cenário econômico prolongou a instalação dessas indústrias no Pantanal, mas a política governamental na região ainda continua sendo de estímulo ao polo.
IHU On-Line - 40% do carvão produzido no país é originário do Mato Grosso do Sul, de matas de cerrado nativo. Quais os efeitos das carvoarias para a região pantaneira?
Débora Calheiros – Percebe-se no Pantanal o tráfego de caminhões, especialmente alguns vindos da Bolívia. Um dos motivos que faz com que o desmatamento na planície aumente é o crescimento da produção de carvão tanto para as siderúrgicas que já existem no Pantanal e no Mato Grosso do Sul, como também para as de São Paulo e Minas Gerais. O carvão de mata nativa é o mais barato que existe, por isso, o cerrado do Mato Grosso do Sul está sendo desmatado para produção de carvão. O desmatamento já está atingindo a planície. Inclusive, uma siderúrgica recebeu multas pelo uso de carvão proveniente da área pantaneira e área indígena. Então, o grande problema da instalação dessas siderúrgicas é a poluição e o aumento da demanda por carvão, que gera a elevação do desmatamento.
IHU On-Line – A construção de hidrovias no Pantanal ainda está em discussão?
Débora Calheiros - Recentemente, retomou-se a discussão em torno das hidrovias com dragagens, criação de portos, mencionando a possibilidade de conexão com a Bacia Amazônica. Esse é um projeto do Segundo Império. Há vinte anos questiono esses empreendimentos e, com frequência, as discussões sobre o assunto são retomadas.
A união de bacias é um problema seríssimo tanto ambiental como econômico porque há troca de espécies entre elas e isso é um erro ecológico absurdo. Desde a década de 1960, os cientistas sabem que não é possível fazer uma conexão entre as bacias porque elas são isoladas e em cada uma há espécies de peixes diferenciadas. Quando ocorre a conexão, há um desequilíbrio ecológico muito grande, pois ocorre uma mudança na hidrodinâmica do rio. Então, pergunto: Temos de adaptar o rio às embarcações ou elas ao rio? Utilizar o rio Paraguai como uma via navegável é necessário econômica e socialmente, mas a questão é não mudar a hidrodinâmica do rio.
A região é muito rica em minério de ferro e manganês, por isso querem instalar o polo minero-siderúrgico e as hidrovias. Na década de 1990, foi feito um estudo sobre a hidrovia Paraguai–Paraná, desde Cárceres até Buenos Aires, na Argentina. Essa pesquisa foi barrada por Fernando Henrique Cardoso, em 1996, principalmente no trecho de Corumbá a Cárceres, onde o rio se torna estreito, tem muitas curvas e a navegação é difícil. Na época, foi proibida a construção de portos pela inexistência de um estudo sobre o impacto conjunto dessas intervenções. O Ministério dos Transportes está, novamente, levantando essa questão com a ideia de unir as bacias Amazônica e do Alto Paraguai. Também existe um projeto de unir a Bacia do Orinoco, na Venezuela, com a Bacia Amazônica e a Bacia do Alto Paraguai; essa seria uma forma de integrar a América do Sul desde a Venezuela até a Argentina. Temos que discutir essas questões sob uma forma embasada na ciência juntamente com a população local, como manda a Constituição, a Lei de Recursos Hídricos e a Agenda 21 para chegarmos num modelo de desenvolvimento que seja mais sustentável.
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Leia Mais...
>> Débora Calheiros já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line.
• O Pantanal ameaçado. Entrevista especial com Débora Calheiros, publicada em 7-4-2010
• O Pantanal, reserva da biosfera, ameaçado, publicada em 22-10-2008