Edição 345 | 27 Setembro 2010

Desejo mimético e violência: a superação através do cristianismo

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Márcia Junges

 

IHU On-Line - Quais são os efeitos miméticos da violência?

Sílvia Sampaio - O desejo mimético conduz à escalada de uma violência imanente aos grupos sociais e, ao se configurar como conflito, busca uma válvula de escape. Essa válvula de escape pode tomar a forma de uma conflagração interna ou de uma guerra contra um inimigo externo, que colocam em perigo a própria sobrevivência do grupo social e de sua ordem cultural. Ela também pode ser institucionalizada através de um ritual em que a violência difusa acumulada tenha uma resolução catártica dirigindo-se contra uma única vítima, o bode expiatório ou vítima sacrificial, escolhidos de acordo com critérios mais ou menos pré-estabelecidos e cujo sacrifício preserve o grupo ou a ordem cultural em questão.

IHU On-Line - Em que consiste o ciclo infernal do desejo?

Sílvia Sampaio - Criamos rivalidade na mímesis, competindo pelo mesmo objeto, desejando os desejos do nosso modelo, o outro. Esta admiração velada do prestígio do outro, do que o outro possui, é a constatação clara de ser insuficiente. Constatação esta muito angustiante e incômoda. Já o modelo, o intermediário, não é passivo dentro deste mecanismo. Pelo contrário, faz de tudo para provocar o desejo do outro sobre seu objeto. Pois, que valor tem o objeto, senão pelo desejo de outrem? Este é o ciclo infernal do desejo. E também dos conflitos.
Porém, no livro de 1994, Um longo argumento do princípio ao fim. Diálogos com João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello. (Trad.: Bluma Waddington Vilar. Rio de Janeiro, Topbooks), Girard afirma que a violência derivada da natureza mimética do desejo não é inevitável: “há pessoas que não se deixam levar pela violência mimética, o indivíduo não está inexoravelmente preso ao desejo mimético, ele pode resistir ao seu mecanismo” (p. 214).

IHU On-Line - Nossa sociedade está fundada sobre a violência. Quais são as possíveis compreensões que podemos fazer desse fenômeno à luz da filosofia de Kierkegaard  e da obra de Girard em relação à nossa época? Além disso, qual é a o papel da inveja e do nivelamento dos processos de violência humanos?

Sílvia Sampaio - De acordo com Girard, na entrevista à Revista Cult (número 134), as descobertas coletivas são extremamente perigosas, e um exemplo desta periculosidade encontra-se no caráter altamente bélico da primeira metade do século XX. Nosso século afronta-nos com desafios inéditos, relacionados às descobertas devidas ao desenvolvimento científico, com as quais não somos capazes de lidar de maneira adequada. Devemos tentar ver todos os conflitos e guerras que temos hoje sob a ótica do mecanismo mimético, tanto a mímesis do desejo quanto do uso da violência.
Muito importante, também, é o alerta de Girard: a análise mimética não é uma receita, jamais deve ser reduzida a uma receita pronta, pois o mimético é “fluidez absoluta”, é o antissistêmico por excelência. Não devemos esquecer que a própria realidade nos impõe constantes questionamentos.
Kierkegaard, por sua vez, faz um diagnóstico sombrio da sociedade dinamarquesa na primeira metade do século XIX. Após o colapso da economia em 1813 e a derrota militar para os britânicos no mesmo ano, a nação tornou-se próspera, impregnada de uma mentalidade burguesa de mercado público, um modo de vida caracterizado pela prudência. A hegemonia dos processos de modernização teve poderosa influência sobre o processo de autoconstituição do indivíduo. A vida interior estava atribulada pelos sofrimentos do conforto burguês: tédio, inveja, uma espiritualidade banal, a volatilização das categorias religiosas e éticas da cristandade. Em suma: a ausência de paixão.

Sociedade de rebanho

O uso do termo “rebanho” para descrever a sociedade de massa implica que se cai de um nível humano de existência para um nível meramente animal. Pois o Indivíduo – ser de relações consigo mesmo, com os outros e com o Inteiramente Outro – opõe- se à massa, ao anonimato. É o desejo que “guia” a consciência “sobre o caminho da vida” para que ela possa tomar consciência de si mesma. Para Kierkegaard, cada fase do desenvolvimento do indivíduo se baseia numa forma de paixão. No estágio estético da existência, a paixão desencadeia o “impulso para a existência”, e é a forma inicial da consciência de si mesmo. A paixão também é a porta de entrada no estágio ético da existência, na medida em que fornece alternativas ou possibilidades de escolha. E é na paixão religiosa de fé que o indivíduo é elevado a “mais alta expressão da subjetividade”. Porém, sob a força niveladora do dinheiro, o desejo é substituído pela prudência, pela sobriedade, pelo senso comum, que determinam a destruição do indivíduo. A única identificação remanescente é a quantitativa. Vemos, assim, que respeitadas as diferenças entre o pensamento de René Girard e o de Kierkegaard podemos encontrar alguns pontos de contato entre os dois pensadores. Deixemos que o próprio René Girard fale por nós:

“Minhas ideias estão bem mais próximas às de Kierkegaard do que foi visto nas entrevistas que dei e nos artigos escritos sobre minha obra. Para mim, o desejo do impossível e o não-desejo ainda estariam de acordo com mecanismos miméticos. Kierkegaard constatou, em sua análise dos três estágios do ser, a presença de um homem que se escora no outro. Possuindo um vazio existencial aterrador, ele procura na observação do outro, do que o outro possui, do que o outro aparenta, uma forma de saber quem é e como sentir-se pleno. Portanto, para ser ele mesmo, este homem necessita tomar conhecimento do outro, como no mecanismo do desejo mimético, onde este desejo somente se faz possível pela intermediação do que é e deseja um outro” (Revista Cult, n. 134).

IHU On-Line - Haveria a possibilidade de se interromper o ciclo de violência?

Sílvia Sampaio - Tanto para Girard quanto para Kierkegaard, no cristianismo, quebra-se o ciclo da violência. No cristianismo trata-se do verdadeiro Deus, uma divindade não violenta que precisa tornar-se vítima, e não o Deus violento da religião arcaica. Cristo oferece a outra face e redime seus algozes. Não busca vingança, não derrama mais sangue. É pela cruz, pelo amor, que se dá a interrupção do ciclo de violência. O cristianismo mostrou que a sociedade humana produzia vítimas únicas. A crucificação desobstruiu o caminho para o entendimento do processo da vítima expiatória. “Jesus salva porque o solapamento do mecanismo do bode expiatório por ele provocado é, em primeiro lugar, a oferta do Reino de Deus, ou seja, de uma existência inteiramente livre da violência”. (Um longo Argumento do Princípio ao Fim. Diálogos com João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello. Tradução Bluma Waddington Vilar. Rio de Janeiro, Topbooks, 1994, p. 217.)

Leia mais...

>> Confira algumas entrevistas e artigos divulgados pelo site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU sobre René Girard.
 
* O ciclo do desejo e da violência. Entrevista com René Girard. Notícias do Dia 09-05-2009;
* “Assim renasci cristão”. Entrevista com René Girard. Notícias do Dia 18-01-2009;
* Violência e mitos fundadores das sociedades humanas. Artigo de René Girard. Notícias do Dia 29-11-2008;
* Por que o fim do Ocidente é possível, segundo René Girard. Notícias do Dia 16-10-2008;
* “O cristianismo é o único a realçar o caráter mimético da violência”. Entrevista com René Girard. Notícias do Dia 07-08-2008;

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