FECHAR
Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).
Marcelo Barros
Raimon Panikkar se foi deste mundo no mesmo dia 27 de agosto, em que lembramos a partida de Dom Hélder Câmara . Foi através deste bispo profeta que conheci Panikkar no final dos anos 60, quando este passava pelo Recife em uma viagem pelo Brasil. Dom Hélder Câmara o apresentou como um dos “nossos” teólogos na Europa. Naquela época não havia ainda surgido o conceito de “Teologia da Libertação” . Compreendi que Panikkar era nosso no sentido de que estava ligado à nossa busca de ligar profundamente a fé com a defesa da vida e a causa da justiça para toda a humanidade. Posteriormente, só o encontrei novamente, há poucos anos, em Barcelona. Entre aquele encontro dos anos 60 e este de 2002, conheci várias de suas obras. Embora ele nunca tenha assumido explicitamente a Teologia da Libertação, todas as pessoas que, no mundo e nas Igrejas, trabalham pela justiça podem considerá-lo “irmão e companheiro na tribulação e no testemunho do reino” (Ap 1, 9). Para nós, latino-americanos, isso se torna mais claro, principalmente, quando, a partir da preparação da 4ª Conferência do episcopado latino-americano, em Santo Domingos (1992), o diálogo das culturas e tradições espirituais se tornou questão central da vida e da Teologia da Libertação.
Os diversos rostos do Cristo
Em 1978, no documento de Conclusões da Conferência de Puebla já aparece o tema do “rosto de Cristo no negro, no índio e nos diversos tipos de empobrecidos” (n. 31- 40). Nesta época, Panikkar já havia escrito: “Il Cristo sconosciuto del induísmo” . A abordagem deste livro nos ajudou a relativizar nosso “cristocentrismo”, aprofundado a partir do catolicismo popular. Naquela época, os teólogos latino-americanos insistiam exatamente na figura histórica de Jesus de Nazaré . Panikkar ressaltava a distinção não tanto entre o Jesus histórico e o Cristo da Fé, como fazia a teologia ocidental dos anos 60, mas distinguia a figura histórica de Jesus e a dimensão misteriosa do Cristo, bem mais ampla e cósmica. Era a sua forma de contemplar o sentido salvífico das religiões orientais, sem cair no tal inclusivismo ocidental. Esta visão de Panikkar nos ajudava a aprofundar a presença do Cristo nas culturas e religiões populares. Nos anos 90, ao preparar o 9º Encontro intereclesial de CEBs em São Luiz (MA), Carlos Mesters escreveu: “Jesus Cristo está presente no Candomblé . Isso lhe valeu um violento protesto da coordenação do Movimento de Renovação Carismática Católica em uma carta aberta aos bispos brasileiros.
Com sua proposta de uma visão cosmoteândrica , Panikkar se colocou muito próximo da Teologia Pluralista da Libertação, insistindo na centralidade do Espírito e do reino. (eu teria preferido que ele usasse o termo antropos no lugar de andros para evitar um enfoque especificamente masculino e centrar a questão no humano que é masculino e feminino).
Sincretismo, diálogo intra-religioso e interculturalidade
No caminho de inserção no Catolicismo popular e religiões ancestrais de nossos povos, um elemento central a ser compreendido é o que geralmente se chama de sincretismo. Em 1983, no livro “Igreja, Carisma e Poder”, Leonardo Boff dedicou um capítulo ao Sincretismo . Em 1978, Panikkar publicara a primeira versão do seu “diálogo intra-religioso” . Trata-se de não só dialogar com alguém exterior, mas carregar dentro de si mesmo as interrogações surgidas das diferentes tradições espirituais. É preciso expressar a fé não de modo relativista, mas relacional. “A finalidade do diálogo intra-religioso é a compreensão. Não se trata de ganhar o outro (em outro escrito ele chama isso de “diálogo dialético”), nem chegar a um acordo total, ou a uma religião universal. O ideal é a comunicação (diálogo dialogal), visando preencher o fosso de ignorância entre as diferentes culturas do mundo, deixando-as falar e expor abertamente suas intuições próprias em suas próprias linguagens”.
Para uma Teologia da Libertação, empenhada em servir à vida e à libertação dos pobres, a questão do sincretismo aparece, em primeiro lugar, como elemento de resistência cultural. Durante séculos e até poucos anos, ser cristão era a única forma de negros e índios se sentirem “incluídos” na sociedade hegemônica. Ao mesmo tempo, ser do Candomblé ou de uma religião índia era uma forma de resistir e manter sua identidade cultural. Por isso, além de qualquer argumento religioso, era e é importante defender o direito das pessoas viverem essa integração como diálogo intra-religioso a serviço da libertação e da vida.
Uma vez, nos anos 80, vi um sacerdote tentar convencer um índio xavante de que ele não precisaria batizar seu filho. O índio respondeu: “O batismo é o único instrumento que o torna humano igual aos outros. Meu filho não tem o mesmo direito dos filhos dos brancos?”. Enquanto não conseguimos a transformação radical da sociedade e a convivência igualitária de todos em uma real interculturalidade, temos de garantir o profundo respeito e diálogo com a sensibilidade das pessoas envolvidas, no caso, as mais pobres e que lutam pelo reconhecimento de sua dignidade humana e cultural.
A reflexão de Panikkar sobre interculturalidade , mesmo sendo “uma reflexão filosófica”, é um trabalho de teologia da libertação. Ali, ele denuncia a falácia do que, em geral, se chama de multiculturalismo e legitima a colonização . Além de denunciar a opressão como faria um bom teólogo da libertação, ele trabalha a questão da interculturalidade para aprofundar o caminho da paz, no sentido de aliança de justiça, comunhão humana e com todos os seres vivos. Ele faz isso a partir de sua cultura que liga Ocidente e Oriente. A conclusão do livro é o capítulo no qual ele descreve nove sutras sobre a paz.
Para continuar o caminho
A intuição fundamental da Teologia da Libertação é ligar a fé e a espiritualidade com o compromisso de transformação do mundo e de cada pessoa. Embora isso se realize a partir da prática, sem dúvida, uma reflexão como a de Panikkar, em seu livro “El espíritu de la Política – Homo Políticus propicia um aprofundamento da questão. Ali, diferentemente de nossas abordagens marcadas pela urgência do aqui e agora, ele toca na profundidade da natureza humana e vocação universal e comunitária do ser humano. Este livro é um bom instrumento para a elaboração de uma Teologia mundial da Libertação, desenvolvida nos três fóruns de Teologia e Libertação, ocorridos no contexto do Fórum Social Mundial e cuja quarta sessão se está preparando para Dakar (janeiro de 2011).
Atualmente, um desafio da Teologia da Libertação será a volta às bases. Além disso, de todos os cantos, vem o apelo por um maior aprofundamento de uma espiritualidade popular, laica, pluralista e libertadora. Na América Latina, chamamos isso de “espiritualidade macro-ecumênica”. Panikkar afirma: “a experiência religiosa ou mística, da qual somos conscientes, através da sensibilidade, da inteligência e do espírito, é o resultado de muitos fatores: experiência pessoal, linguagem, memória, interpretação, recepção e atualização. É a mais profunda experiência humana em sua plenitude irredutível” .
Nos anos 80, o livro de Panikkar “L´Éloge du Simple” (Aubier, 1985) me marcou profundamente, certamente porque sou monge e, desde minha juventude, acredito no que, na Idade Média, dizia o abade Santo Estêvão de Muret: “toda pessoa que busca a unidade interior é monge ou monja”. E justamente nos anos 80, eu procurava organizar um mosteiro beneditino aberto a leigos e leigas, ecumênico e no qual a vida monástica fosse uma forma de viver a vocação humana naquilo que ela tem de transcendente e de amorosidade. Em seu livro, Panikkar insiste nesta dimensão universal da monasticidade como busca de unidade presente no coração de toda pessoa. A relação disso com a Teologia e a Espiritualidade da Libertação é que ele mostra como esta construção interior e íntima se realiza sempre no compromisso com os outros e em um contexto de algum modo comunitário.
Atribui-se a Eduardo de Filipo a afirmação: “O homem nasce velho e morre criança”. Este processo se dá pelo amadurecimento de uma espiritualidade que poderíamos chamar de humana e crística. Quem conheceu de perto Hélder Câmara e Raimon Panikkar pode testemunhar que ambos, apesar de aspectos frágeis e mesmo de suas contradições humanas, viveram isso profundamente. Neste sentido percorreram o caminho da libertação interior e das instituições mundanas e eclesiásticas, como processo de simplificação e mesmo de infância espiritual.
Acreditamos ser possível retomar o sopro profético de um novo mundo e uma nova espiritualidade possível. Fortalecidos pela herança espiritual de homens como Hélder Câmara e de Raimon Panikkar poderemos reinventar o caminho. Em uma conferência em Madrid, Panikkar contava: “Um pai da Igreja, um dos Gregórios, põe na boca de Abraão a seguinte reflexão: “Com minha família e os rebanhos, deixei Ur, na Caldéia, abandonei casa e tudo o mais, mas eu tinha dúvidas. Agora estou seguro de que a voz que me chamou era mesmo a voz do Senhor e tenho certeza disso porque não sei aonde vou”. Panikkar prossegue: “Se sabemos onde vamos, ao céu, ao inferno, a Deus ou ao Nada, ao Nirvana, não podemos ter uma espiritualidade realmente nova. Quem não recria a cada instante a sua vida, não refaz a cada momento a sua espiritualidade, quem não se deixa absorver pela realidade e não a recria com os meios que ela lhe oferece para ser realmente livre, de que espiritualidade está falando? O Espírito faz novas todas as coisas e sopra onde, quando e como quer”.