Edição 343 | 13 Setembro 2010

Panikkar e a eterna busca pela harmonia do saber

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Graziela Wolfart

 

IHU On-Line - Qual a principal contribuição de seu pensamento e de suas obras?

Victorino Pérez Prieto – Como expressei no meu livro citado anteriormente e, sobretudo, em outro mais centrado no seu pensamento (Dios, Hombre, Mundo: La trinidad en Raimon Panikkar. Prólogo de Xabier Pikaza, Barcelona, 2008), Raimon Panikkar sempre buscou a harmonia do saber, a harmonia entre a Filosofia, as Ciências e a Teologia. Insistia na busca da harmonia da realidade, que expressa com seu conceito da “perspectiva cosmoteândrica”: a realidade é trinitária, a comunhão perfeita, sem divisão nem confusão, entre Deus — a Divindade, o ser Humano — a Consciência e o Cosmos — a Matéria. Elaborou este pensamento interculturalmente, relacionando a sabedoria de Ocidente e Oriente, e inter-religiosamente, pondo em relação o cristianismo, o hinduísmo e o budismo. Para ele era importante o pensamento e a filosofia, mas não menos importante a contemplação e a mística. E isto atinge toda a sua obra, que é a expressão da necessidade de integração do conjunto de toda a realidade em todas as suas dimensões. Além disso, Panikkar não só foi um criador de conceitos, como também de neologismos, palavras da sua autoria com as quais expressava esses conceitos novos: filosofia dialógica ou imperativa, ecosofia, tecnocronia, microdogia, katacronismo, pisteuma, equivalentes homeomórficos, ontonomia, diferença simbólica, hermenêutica diatópica, tempiternidade, intuição cosmoteândrica, etc.

IHU On-Line - Como o senhor entende os conflitos que Panikkar tinha com a Igreja?

Victorino Pérez Prieto - Os conflitos de Panikkar com a Igreja católica nascem, em primeiro lugar, pelo fato de o seu pensamento ser livre; fixado na tradição católica, mas aberto a outras tradições, que buscou harmonizar com esta, mas sem cair num sincretismo, coisa que não foi bem entendida por alguns, mergulhados em uma interpretação tradicional-conservadora-reacionária da fé católica. Além disso, os conflitos vêm do fato de ter casado apesar de ser sacerdote, rompendo, portanto, a norma do celibato, que considerava injusta e caduca, e por reivindicar o seu direito a continuar exercendo esse sacerdócio, que não era nem sequer exclusivamente cristão, sujeito ao direito canônico, mas que pertencia “à ordem de Melquisedec” (que não era nem sequer judeu).

IHU On-Line - Qual sua análise da frase de Panikkar “parti cristão, descobri-me hindu e retornei budista, sem ter jamais cessado de ser cristão”?

Victorino Pérez Prieto - Esta frase expressa três das identidades que Raimon Panikkar reconhece como próprias: cristianismo, hinduísmo e budismo. A estas três eu somaria a identidade de secular, das suas raízes no pensamento ocidental moderno, tal como escrevi no meu trabalho Raimon Panikkar: 90 anos e quatro identidades (Dialogal, 2008). As duas primeiras fazem parte das suas raízes e a terceira, um descobrimento posterior que faz na Índia. Ele comentou que foi à Índia como missionário para converter os hindus; mas que foram os hindus que o converteram; não tanto ao hinduísmo, mas a uma verdade mais profunda, que ele mesmo chamava de “mais católica”.

IHU On-Line - Como a figura e o exemplo de Panikkar elucidam o debate atual sobre o pluralismo religioso e o diálogo inter-religioso?

Victorino Pérez Prieto - Raimon Panikkar preferia falar de diálogo “intrarreligioso” ao invés de diálogo inter-religioso. Um diálogo que começa no interior de nós, descobrindo a relatividade das nossas crenças (relatividade, não relativismo) e aceitando o desafio de uma mudança, de uma conversão; uma conversão que começa renunciando à pretensão de possuir toda a verdade; renunciar a uma ideia de verdade que se diz exclusiva, porque a verdade está acima de nós e da nossa religião. O seu projeto era alcançar um ecumenismo ecumênico, além do cristianismo, a busca da harmonia das religiões, além de um sincretismo e uma “teoria universal das religiões”, que vinha a ser uma espécie de absurdo “esperanto religioso”. Panikkar expressava isso com o conceito hindu dharma-samanvaya: “harmonização (convergência) de todos os dharmas ou religiões. Samanvaya não quer dizer necessariamente igualdade, mas comporta a esperança de que a cacofonia atual podia se converter numa sinfonia futura” (A nova inocência). Devemos aspirar à harmonia da vida e das religiões, não a uma uniformidade. Este é seu grande aporte ao diálogo religioso: todas as religiões são uma busca legítima de Deus, cada uma a sua maneira, ainda que as grandes religiões o façam de um jeito especialmente relevante. Todas se complementam.

Leia mais...

>> Sobre Raimon Panikkar leia também:

• Raimon Panikkar, buscador do Mistério. Entrevista com Faustino Teixeira, publicada na IHU On-Line número 341;
• Panikkar, um filósofo para três religiões. Matéria publicada no sítio do IHU em 31-08-2010;
• Panikkar: o ''monge'' cujo verbo foi o diálogo entre as religiões. Matéria publicada no sítio do IHU em 31-08-2010;
• O adeus a Panikkar, teólogo do diálogo igual entre as fés. Matéria publicada no sítio do IHU em 31-08-2010;
• Panikkar, ponte entre dois mundos. Matéria publicada no sítio do IHU em 30-08-2010;
• O diálogo entre religiões e culturas perde Raimon Panikkar. Matéria publicada no sítio do IHU em 30-08-2010; 
• Ícone da Unidade, Raimon Panikkar. Matéria publicada no sítio do IHU em 28-08-2010;
• Raimon Panikkar, teólogo da dissidência. Matéria publicada no sítio do IHU em 28-08-2010;
• Panikkar, uma visão oriental do catolicismo. Matéria publicada no sítio do IHU em 14-06-2010;
• Raimond Panikkar: felicidade no momento presente. Matéria publicada no sítio do IHU em 20-05-2010;
• Crer com o corpo: a lição de Raimon Panikkar. Matéria publicada no sítio do IHU em 13-04-2010;
• O tempo do perdão e a lógica do inimigo. Matéria publicada no sítio do IHU em 25-10-2007;
• “O grande desafio do terceiro milênio para o cristianismo é tornar-se realmente católico". Entrevista com Raimon Panikkar publicada no sítio do IHU em 04-01-2007;
• Por uma teologia pós-religião: sem dogmas nem doutrinas. Matéria publicada no sítio do IHU em 18-03-2010; 
• ''Deus está além das religiões''. Matéria publicada no sítio do IHU em 29-08-2010;
• Pannikar, pensador único e irrepetível. Matéria publicada no sítio do IHU em 29-08-2010;
• Raimon Panikkar: diálogo e interculturalidade. Matéria publicada no sítio do IHU em 29-08-2010;
• Unir céu e terra serve para restituir um sentido ao mundo. Matéria publicada no sítio do IHU em 29-08-2010;
• O adeus a Panikkar, teólogo da cosmoteandria. Matéria publicada no sítio do IHU em 29-08-2010;
• Superar a cristologia tribal, o desafio proposto por Raimon Panikkar. Matéria publicada no sítio do IHU em 02-09-2010.

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