Edição 343 | 13 Setembro 2010

Governar no Ocidente é exercer o poder como exceção

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Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger

 

IHU On-Line - As pessoas que “meramente existem” poderiam, para Agamben, ser equiparadas aos excluídos, aos desviantes, mencionados por Foucault ao longo de sua obra? Por quê?

Edgardo Castro - As relações entre Agamben e Foucault não são sempre fáceis de discernir. Há entre eles continuidades e rupturas. É o jogo do pensamento. Às vezes os conceitos se aproximam, inclusive até sobrepõem-se, porém isso não significa que estejam falando da mesma coisa. Sem dúvida, o conceito de exceção é, em Agamben, seguindo nisto as indicações de Carl Schmitt, um conceito central. A lei se aplica desaplicando-se mediante a exceção. Na política ocidental, ademais, a exceção é cada vez mais a norma. Governar no Ocidente é fazê-lo, de um modo ou de outro, em estado de exceção.
Mas, a exceção agambeniana e a normalização foucaultiana não são o mesmo conceito. Buscam pensar um mesmo problema, porém não o fazem da mesma forma. Para Agamben, trata-se de mostrar, através da exceção, como por lei se pode estar fora da lei, como a vida se relaciona com o poder soberano na medida em que está excluída. A normalização foucaultiana, por sua parte, busca explicar como, em nossas sociedades, funciona, ao mesmo tempo, entrelaçados entre si, o poder da lei (o Estado e suas instituições) e o poder da norma (um poder governamentalizado, isto é, atravessado pelo saber das ciências humanas). Tendo isto em conta, as pessoas que meramente existem e os desviados foucaultianos podem ser comparados, mas, me parece, não identificados.

IHU On-Line - O cidadão estrangeiro, o louco, a prostituta, o idoso, o transsexual e, mais recentemente, os gordos, são alguns dos bodes expiatórios que a modernidade comodamente aponta para expiar seus medos e culpas. Como podemos compreender essa necessidade de rotulação e exclusão?

Edgardo Castro - É curioso, ser gordo se converteu hoje em insulto. Talvez o único que nos resta. Creio que poucas coisas podem resultar tão ofensivas, no âmbito das relações pessoais, como dizer na cara de alguém: “gordo”. Sobretudo se se trata de uma pessoa jovem. “Gorda”, no feminino, é ainda mais ofensivo. Pôr nomes e atribuir qualificativos certamente tranquiliza. Isso não explica, sem dúvida, a necessidade de exclusão.
Em todo o caso, uma coisa é certa: nas análises de Agamben e de Foucault, entre outros, mais além da linguagem humanista com que fequentemente tecemos nossos discursos e nossas práticas, nossa identidade ocidental – talvez também em outras culturas ou em todas – se constituiu sempre em torno de alguma forma de exclusão. Identidade e exclusão são, neste sentido, complementares.
Por isso, o problema não está tanto no “por que excluímos”, senão por que temos tanta necessidade de identidade. Uma ideia percorre grande parte do pensamento filosófico contemporâneo — pensar além do identitário: o homem qualquer de Agamben, a comunidade inoperante de Blanchot  ou Nancy são alguns exemplos disso. Em todo o caso, a necessidade de pôr nome para identificar o outro e tranquilizar-nos, crendo que com isso temos o bastante para conhecê-lo, se acaba encontrando que, para a experiência fundamental da política ocidental do século XX, que ainda é a nossa, não temos um nome. “Holocausto” não é, como muitos sublinharam, um nome apropriado.

IHU On-Line - De que modo o conceito de biopoder, de Foucault, e o de vida nua, de Agamben, podem apontar para uma compreensão sobre a situação dos migrantes e da vida política segregacionista norte-americana para os latinos?

Edgardo Castro - Seria preciso, seguramente, introduzir algumas distinções e resulta difícil isolar por completo determinados comportamentos e práticas políticas desse núcleo biopolítico que define nossa modernidade. Apesar disso, creio que querer reunir todos os fenômenos de exclusão em termos biopolíticos, por um lado, tira capacidade de análise à categoria de biopolítica e, por outro, deixa especificidade às realidades que se quer compreender. Nem toda forma de racismo é, para dizê-lo em poucas palavras, um racismo biopolítico, isto é, biológico e do Estado.

IHU On-Line - Homo sacer é o livro que Foucault deveria ter escrito? Por quê?

Edgardo Castro - Pouco antes de morrer, em 1983, perguntaram a Foucault acerca da possibilidade de escrever uma genealogia da biopolítica. Sua resposta foi que seria necessário que o fizesse, mas que não tinha tempo nesse momento. Quando se observa com atenção a bibliografia de Foucault, a gente se dá conta que seus livros, a partir de 1974, têm seu correlato nos cursos no Collège de France. O contrário, sem dúvida, não é certo, não é a todos os cursos ou grupos de cursos que corresponde um livro. E é o que sucede, precisamente, com os cursos que se ocupam de biopolítica. Dos livros publicados em vida por Foucault, somente 14 páginas de História da Sexualidade I: A Vontade de Saber (Rio de Janeiro: Graal, 1993) se ocupam de biopolítica. Pouco, demasiado pouco.
Se Foucault tivesse escrito uma genealogia do biopoder, creio que ela seria distinta de Homo sacer. E isso por várias razões. Uma delas, importante sem dúvida, é que as análises de Foucault, diversamente de Agamben, nunca se movem dentro do paradigma da secularização. Homo sacer é um livro de Agamben que tem uma dívida importante com as análises de Foucault, porém desenvolve um modo próprio de enfocar a problemática biopolítica.

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