Edição 343 | 13 Setembro 2010

Biopoder e o instante eterno

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Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger

Contexto e conteúdo foram eliminados do tempo, que parece sempre faltar e estar mais acelerado, analisa José Antonio Zamora. Progresso é conceito fundamental para a legitimação ideológica da biopolítica

Os processos de disciplinamento realizados “pelas instituições que caracterizam o governo anatomopolítico e biopolítico moderno (fábricas, hospitais, escolas, quartéis e prisões) devem, em grande medida, sua eficácia ao estabelecimento de regimes temporais específicos e estritos”, considera o filósofo espanhol José Antonio Zamora. De acordo com ele, “que possamos dominar o tempo de outros seres humanos e equiparar o tempo com o dinheiro só é possível porque se eliminou do tempo o seu contexto e conteúdo, estabelecendo-o como fenômeno universal, abstrato, vazio e neutro”. E continua: “a sensação da ‘falta’ de tempo ou de que o tempo ‘vai mais rápido’ parece responder a este regime de encurtamento e densificação da exploração do tempo e à eliminação do tempo não economizado ou economizável”. Zamora afirma que a ideia de progresso é um elemento chave de legitimação ideológica da biopolítica, e à modernidade “clássica” se contrapõe uma modernidade “líquida e reflexiva”. O processo de aceleração, explica, “vem acompanhado de uma fome quase insaciável de experiência do mundo, de captar o mundo em todas as suas produções, desentranhá-lo até seus fundamentos, prová-lo todo”. Essas ideias fazem parte da entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. Zamora é conferencista na manhã de 14-09-2010, com o tema Temporalidade capitalista, exploração da vida humana e tempo messiânico, dentro da programação do XI Simpósio Internacional IHU: o (des)governo biopolítico da vida humana, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Zamora é professor no Instituto de Filosofia do Conselho Superior de Investigações Científicas – CSIC da Espanha; é autor de, entre outros, Theodor W. Adorno: pensar contra la barbarie (Madri: Trotta, 2004) e Ciudadania, multiculturalidad e inmigración (Navarra: Verbo Divino, 2003). Estudou Filosofia, Psicologia e Teologia na Universidade Pontifícia de Comillas, em Madri. Doutorou-se na Universidade de Münster, na Alemanha, com uma tese sobre Theodor Adorno, orientada por Johann Baptitst Metz.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que aspectos a lógica temporal do capitalismo reduz a vida humana a um mero corpo, a uma mera vida?

José Antonio Zamora - A expressão “mera vida” ou “mero corpo” está associada com a interpretação do conceito de biopolítica que faz Giorgio Agamben , a qual, em muitos aspectos, não é a mais convincente, pois nela se dilui em grande medida a especificidade do contexto capitalista em favor de uma constituição biopolítica de toda a história ocidental. Porém, segundo esta interpretação, o objetivo de incrementar o valor da vida (regra), que define a política moderna, se encontra inseparavelmente unido ao objetivo de aniquilar “a vida carente de valor” (estado de exceção). O estado de exceção coincide com a redução dos seres humanos a uma “vida nua” ou mero corpo, isto é, a um mero material sobre o qual exercer o poder absoluto, a completa disposição sobre ele, tal como se materializa no campo de extermínio. Esta redução extrema a puro corpo atua, segundo Agamben, de forma latente nas formas de anatomopolítica e biopolítica modernas, formas evidentemente mais suaves de administração e exploração da vida, que não pretendem tanto aniquilar e torcer, quanto disciplinar, regular, controlar, estimular, etc., em relação a funcionalizações calculadas.

Seja como for, estes processos de disciplinamento, levadas a cabo pelas instituições que caracterizam o governo anatomopolítico e biopolítico moderno (fábricas, hospitais, escolas, quartéis e prisões) devem, em grande medida, sua eficácia ao estabelecimento de regimes temporais específicos e estritos. Assim, pois, toda forma de poder leva associada uma cronopolítica. Nada novo se descobre fazendo referência aos longos e coativos processos de reeducação, no sentido de internalização de novos modelos temporais, que foram necessários para transformar a força de trabalho excedente do setor primário em mão de obra industrial nos começos da industrialização moderna. Tão pouco sublinhando a relevância da temporalização acelerada da “revolução digital” produzida pelas novas tecnologias da informação e a comunicação, que supôs um impulso extraordinário dos ritmos e da velocidade da produção e do consumo, do tempo de trabalho e do tempo livre. Tudo isso converteu em obsoletos os ritmos das instituições educativas, políticas e jurídicas dos Estados modernos e está na base do desenvolvimento das novas formas de governabilidade pós-fordista.

Cronopolítica e sistema capitalista

Esta cronopolítica, associada à biopolítica moderna, é exigida pelo novo regime temporal imposto pelo sistema capitalista e que vai inseparavelmente unido a um aumento incomparável da produção e da produtividade numa espécie de carreira impulsionada pela necessária busca de vantagens comparativas baseadas em sua eficácia, medida em tempo. Deste modo, o tempo passa a ser um bem escasso e mercantilizado (em todas as suas formas: tempo de trabalho, tempo “livre”, tempo do consumo, etc.), produzindo-se aquela equivalência, que Benjamin Franklin tornaria famosa, entre tempo e dinheiro. O objetivo da multiplicação do dinheiro é um objetivo infinito, o que contrasta com a finitude dos meios que definem o horizonte da escassez que determina a atividade econômica.

Por essa razão, a contradição entre o objetivo infinito da multiplicação do dinheiro e a finitude dos meios (naturais e humanos) para alcançar este objetivo se desprega de maneira temporal, como processo de uma permanente revolução dos meios. Isto supõe uma submissão crescente da ação humana em cada vez mais âmbitos a esse objetivo infinito. Esta submissão é levada a efeito de maneira fundamental pela imposição de regime temporal específico. Somente um tempo abstrato, estandardizado e decomposto em frações iguais pode ser empregado como meio nos processos de intercâmbio, como parâmetro neutral no cálculo da eficiência e dos benefícios.

Que possamos dominar o tempo de outros seres humanos e equiparar o tempo com o dinheiro só é possível porque se eliminou do tempo o seu contexto e conteúdo, estabelecendo-o como fenômeno universal, abstrato, vazio e neutro. A infinitude da lógica de acumulação do capital, da multiplicação do dinheiro, apoiada nessa forma de tempo, não se detém frente a nenhum limite natural ou humano. Só reconhece como meta o incremento de um quantum abstrato. E, para esta abstração, todas as singularidades não são mais que obstáculos a superar, material dominável. Cada vez cai mais na vista que não se muda a racionalidade econômica do crescimento pelo crescimento, pois esse final só se pode alcançar por meio de uma catástrofe humana ou ecológica. Quando os sujeitos são reduzidos a meios de reprodução do capital, não só fica arruinada sua autonomia: sua vida inteira depende de dita reprodução que é, ao mesmo tempo, a das relações de dominação que a constituem.

IHU On-Line - Como essa lógica resulta em formas de governabilidade e excepcionalidade política que expressa o capitalismo e a exploração?

José Antonio Zamora - O sistema econômico capitalista necessita de um aumento constante da velocidade de produção, distribuição e consumo de bens e serviços. Esta aceleração necessita, por sua vez, de inovações tecnológicas, mas também do aumento da velocidade dos processos de organização, administração e controle. Isso afeta o funcionamento de administrações e burocracias, bem como a esfera financeira, logística e de marketing que acompanha a produção e o consumo. Seria preciso tomar em consideração as múltiplas formas de racionalização do processo de trabalho, tanto se se trata da organização taylorista de dito processo por meio do scientific management ou da organização reticular e externalizada da produção just in time do pós-fordismo. Sempre se trata de maximizar o rendimento por unidade de tempo. Eliminar o que se considera tempo morto, tempo não produtivo ou de consumo. A sensação da “falta” de tempo ou de que o tempo “vai mais rápido” parece responder a este regime de encurtamento e densificação da exploração do tempo e à eliminação do tempo não economizado ou economizável. As formas de governabilidade possuem uma dimensão temporal evidente, pois elas são as encarregadas de estabelecer, consolidar e reproduzir regimes temporais por meio de instituições que organizam o tempo de modo estrito e, assim, contribuem ao disciplinamento dos corpos e sua predisposição para serem submetidos às novas formas de produção e consumo sob uma aceleração crescente. Isso não fica desmentido pela desregulação espacial do trabalho, pelas novas formas de flexibilização de seu regime temporal e da produção pós-fordista.
A flexibilização pode dar a impressão superficialmente em algumas de suas expressões de um retorno a formas de produção e de vida pré-industriais. Ditas formas parecem ser regidas pelas tarefas e pelos objetos e não tanto pelo tempo vazio, linear e abstrato da época industrial. Porém, na realidade o mundo laboral moderno, industrial e capitalista devia ser protegido de toda ingerência existente para poder estabelecer seu regime temporal e, assim, possibilitar a aceleração dentro de seus limites. Hoje, nossas concepções de vida boa têm sido de tal modo adaptadas a essas exigências e interiorizamos dito regime temporal e sua lógica de tal maneira que é possível realizar a colonização contrária: inclusive os potenciais de desaceleração e seus Oasis na cotidianidade são crescentemente erodidos por aquela lógica. Para os trabalhadores as novas possibilidades de racionalização e vigilância, oferecidas pela tecnologia da informação e comunicação, se traduzem fatalmente, por um lado, em flexibilização, liberalização e desregulação. Isto é, em subproletarização, de uma parte da mão de obra com uma relação intermitente com o mercado de trabalho, precarização do emprego e sinistralidade laboral. E, por outro lado, em formas de autoexploração ou superexaploração com ritmos extremos impostos pelas empresas sob ameaça de perda de emprego, com os quais vai associado um conjunto de patologias reconhecidas (desde o consumo de drogas, o estresse cronificado, as mais variadas somatizações do trabalho excessivo etc.).


 

Novas formas de governamentalidade

Evidentemente, a lógica da economização e mercantilização do tempo se defronta com limites físicos, biológicos e antropológicos. A capacidade de captação e elaboração cerebral de percepções e estímulos, bem como a capacidade de recuperação e reação podem crescer e têm crescido em interação com a aceleração dos ritmos produtivos e de consumo que se apóiam nas novas tecnologias, porém não parecem possuir um horizonte ilimitado de crescimento. O mesmo podemos dizer do ritmo de recuperação dos recursos naturais ou da capacidade do ecossistema para digerir e processar os resíduos e os materiais tóxicos. ambém, a intervenção em processos naturais de maturação e nos ritmos biológicos por meio de técnicas agroquímicas e genéticas que aceleram os processos de crescimento ou tornam independentes a produção de condições naturais externas parecem enfrentar-se com limites naturais insuperáveis. Sem dúvida, também frente a isto reagem as novas formas de governamentalidade, as quais tratam ditas limitações como barreiras provisionais superáveis com a ajuda das mais recentes tecnologias. As possibilidades que brindam a engenharia genética e a combinação das tecnologias genéticas com as nanotecnologias na hibridação antropotecnológica e a revolução dos transplantes estariam, ainda, por explorar e, portanto, a criação de ciborgues capazes de satisfazer as exigências sistêmicas de aceleração poderá dar a resposta aos limites aparentemente insuperáveis da biologia.
 
IHU On-Line - Por que se pode falar de uma morte da experiência autêntica pelo império da velocidade, do instante e do descartável? Quais são as relações entre esse instante eterno no qual a modernidade está submersa, com a destruição da memória e da experiência?

José Antonio Zamora - A aceleração da qual estamos falando se manifesta como crescimento exponencial das vivências e das ações, não menos do que como exigência de maior rapidez em sua realização, de eliminar pausas e vazios ou de empregar tecnologias e formas de organizar a vida cotidiana que conhecemos sob a denominação de “multitarefa”. Do ponto de vista dos indivíduos, o incremento vinculado ao crescimento e à aceleração supõe encontrar-se ante uma abundância tentadora de possibilidades. Mas, na realidade, se produz uma superoferta que reproduz a escassez de tempo. Viver com o temor de não poder aproveitar a maioria dessas possibilidades ou, em todo caso, as melhores, e com a sensação de encontrar-nos numa corrida contra o tempo. O paradoxo é que o intento de responder ao aumento de possibilidades que produz a aceleração, apropriando-se das técnicas e dos truques que oferece dita aceleração para aumentar o ritmo de vida, termina aumentando o abismo entre o tempo de vida e as possibilidades de mundo. Os mesmos meios que servem ao indivíduo para ampliar o seu ego, aumentam a quantidade de possibilidades de mundo de modo exponencial.

O processo de aceleração vem acompanhado de uma fome, quase insaciável, de experiência do mundo, de captar o mundo em todas as suas produções, desentranhá-lo até seus fundamentos, prová-lo todo. Sem dúvida, esse mesmo processo só permite uma relação mediada com o mundo. Ganhar tempo supõe renunciar à intensidade da experiência. Para poupar tempo e ampliar a estreiteza temporal o mundo, deve estar predisposto, de modo geral, para ser possuído rapidamente. Mas, para despachar-se com rapidez é necessário um mundo disposto e cunhado para o consumo. Os indivíduos não só estão chamados a racionalizar e economizar o tempo na esfera produtiva, mas também o consumo funciona sob as mesmas regras. O mundo no qual pensava o indivíduo, aceleradamente faminto de experiência, desaparece sem brilho para deixar lugar a um mundo preparado e adaptado aos seus desejos de velocidade. Na realidade, não é possível experimentar um mundo preparado para o consumo; só se pode comprar e consumir. Sob o ditado da aceleração, acaba impondo-se uma unificação de procedimentos, uma nivelação das diferenças, apesar da variedade de objetos, eventos, acontecimentos e opiniões sobre as quais se aplicam. Sob o imperativo da aceleração, fica destruída uma verdadeira experiência do diverso e diferente que desaparece após a experiência de uma imensa diversidade submetida a esquemas de consumo acelerado.
Entre os teóricos da cultura midiática, parece existir certo consenso em torno do fato de que a digitalização supôs um corte histórico que introduz uma nova época, uma profunda transformação da cultura. As tecnologias digitais atuam como nova interface global e uniformizada que aumenta a brecha entre os mediadores e os cidadãos degradados a “usuários” ou “clientes” de um serviço comercializado do passado registrado. As tecnologias digitais da memória parecem oferecer uma capacidade extraordinária para dispor do acontecer social, grupal ou individual, graças à sub-rogação digital do patrimônio comum através da mediação do mercado. A indústria do registro parece disposta a parcelar o passado e, convertido em mercadoria, transformá-lo num bem de consumo a mais. A maior ameaça à memória cultural vem nestes momentos da mão de sua comercialização digitalizada.

IHU On-Line - De que modo a aura alucinatória das mercadorias se traduz num comportamento acrítico do sujeito? Quais são as implicações políticas e existenciais desse agir?

José Antonio Zamora - Frente à forma de dominação denunciada por Marx  sob o trabalho assalariado, que converte a força de trabalho em mercadoria e a relação contratual no veículo do domínio do capital – realidade essencialmente social porém oculta pelo fetichismo da mercadoria que apresenta o valor de troca como propriedade da própria mercadoria -, o caráter fantasmagórico da mercadoria, associado à sua estética, revela outra forma de dominação, cuja finalidade última é a apropriação mercantil completa do indivíduo: a domesticação de seus anelos não cumpridos, a reorientação de sua atenção, a redefinição de seu corpo, a percepção de si mesmo e da realidade, a remodelação de sua linguagem, a reestruturação de sua sensibilidade e sua valoração. O papel da inovação estética na regeneração da demanda converteu-a numa instância quase com poder e efeitos antropológicos, capaz de transformar permanentemente o espécime ser humano em sua organização sensitiva e psíquica, isto é, não só em seu equipamento físico e sua forma de vida material, senão também em sua estrutura perceptiva, afetiva, volitiva, imaginativa, desiderativa, etc. Isto supõe tendencialmente uma quebra da imediatez sensível e a submissão das técnicas estéticas e da economia libidinosa às funções de reprodução do capital.

O caráter fantasmagórico de toda a cultura, constatado por Walter Benjamin , faz desta uma transfiguração enganosa da realidade, imagem desiderativa e ideal. O esplendor, a superfície dessa realidade adquire poder estupefaciente: os edifícios, as passagens comerciais, as galerias, as vitrines e as próprias mercadorias. Na modernidade não só a arte se tornou mercadoria, senão que as mercadorias, por sua vez, se transformaram em arte, adquiriram caráter fantástico e onírico. A crítica tradicional da forma da mercadoria podia mobilizar o conceito de fetiche para denunciar os mecanismos ocultos das relações sociais de produção e as formas de dominação que lhe são constitutivas no sistema capitalista. A nova cultura do consumo, ao instaurar o império do simulacro, parece tornar inviável todo intento de desvelamento, de desocultação de uma suposta realidade existente mais além do simulacro, seja do lado dos objetos ou dos sujeitos que os produzem e os intercambiam. A referência à práxis social concreta na qual surgiram desaparece por trás de um jogo de espelhos. As dificuldades para romper o feitiço da identidade como mercadoria produzida pelo próprio sujeito ou da marca que substitui o objeto real parecem tornar-se não salváveis. Tudo fica submetido à lógica da simulação própria do mercado: espaços e tempos, gêneros, classes e corpos, objetos e indivíduos.


 

Face oculta

Mas a cultura do consumo não deixa por isso de ter uma face oculta. Trata-se dessa realidade que não deve aparecer, sobre a qual o olhar socializado no espetáculo das mercadorias e da publicidade nunca se detém: a coação ao crescimento que impõe violentamente o sistema econômico capitalista, desatendendo todo conhecimento e assunção responsável dos limites; a desigualdade sangrante que deixa fora de um festim não universalizável a maioria empobrecida do planeta; o caráter inconsciente do processo econômico subtraído à capacidade de decisão dos sujeitos que o sofrem; o esvaziamento das identidades convertidas em mero produto do mercado e a publicidade, a domesticação dos anelos e buscas de transcendência, juramentando-a com slogans sem suporte real ou com os reflexos fugazes de realidades que não podem cumprir o que prometem.  O culto da mercadoria oculta que a nova cultura do consumo no hipercapitalismo constitui numa exploração sem medida, também dos consumidores, não se detém tampouco ante suas dimensões espirituais. O marketing e a publicidade desencadearam uma estratégia gigantesca que supõe a utilização total do ser humano. É preciso sacrificar tudo ao ídolo, também a própria alma. Por isso, este culto consumista representa uma forma de ampliação extraordinária do poder. Se o poder econômico é capaz de converter o ser humano em todas as suas dimensões numa mercadoria, de determinar suas dimensões sociais, identitárias e, finalmente, espirituais a partir da lógica da mercadoria, trata-se, então, de um poder com pretensões absolutas, de um poder totalitário.

IHU On-Line - Neste sentido, como pode o biopoder ajudar-nos a compreender a elaboração ideológica do progresso como o mais alto nível da civilização ocidental?

José Antonio Zamora - O conceito de biopoder pretende dar conta de uma transformação nas práticas e tecnologias do poder. Caracteriza-se por bem conformar a vida humana sob a forma do indivíduo (anatomopolítica) ou da população (biopolítica). Seu objetivo não é inibir, dobrar ou aniquilar as forças vitais, senão aperfeiçoá-las, enriquecê-las e estimulá-las de modo continuado, com vistas à sua otimização e economização. Não cabe dúvida de que, independentemente de que a formação do dispositivo biopolítico e a da economia política capitalista não tenham entre si uma relação causal, existe entre ambas uma conexão sistemática, com efeitos históricos muito poderosos. A otimização e a economização das forças vitais possuem uma significação decisiva para o aumento da produtividade da força de trabalho no interesse da acumulação continuada do capital e vice-versa. A criação de uma população governável com vistas a uma otimização dos resultados gerais na criação da riqueza das nações vai de mão dada com a ideia de certa mecânica natural intrínseca aos processos econômicos, que harmoniza e otimiza o conjunto através do conflito de interesses e a competitividade de todos contra todos. As técnicas de governo hão de garantir o livre funcionamento dessa mecânica natural. Como é sabido, esta concepção da governabilidade liberal se serve de ideias reguladoras, como a da “mão invisível” (Adam Smith ), a “insociável sociabilidade” e a “intenção da natureza (I. Kant ) ou a “astúcia da razão” (G. W. F. Hegel ), ideias fundamentais na interpretação da história como progresso. Neste sentido, pode-se dizer que esta ideia é um elemento constitutivo da governamentalidade liberal.

Lógica sacrificial

Segundo o conceito moderno de progresso a história transcorre através de um tempo abstrato e o presente, em cada caso, não é mais que um ponto numa linha infinita. Por meio de uma espécie de lógica sacrifical tudo é funcionalizado para a construção de um futuro supostamente melhor que há de instaurar-se mais ou menos infalivelmente. Os acontecimentos, geradores de sofrimentos massivos, perdem irremissivelmente significação para um avanço irrefreável e sem fim de tempo. Porém, este tempo abstrato, constituído em segunda natureza, não só encobre o caráter histórico de sua gênese, para assim poder perpetuar-se melhor, senão que oculta com ele o brilho deslumbrante do supostamente novo: os sofrimentos e catástrofes que, em dito processo, afetam tanto a natureza como os seres humanos. O estabelecido possui o poder de ocultar ao olhar aquilo que foi esmagado e se perdeu, para assim configurar a maneira de perceber a história por meio da “evidência” da marcha vitoriosa do que se impôs em última instância. À injustiça sofrida pelos oprimidos e aniquilados se une a eliminação dos vestígios que poderiam recordá-los. A ideia de progresso é um elemento chave de legitimação ideológica da biopolítica.

IHU On-Line - Qual é a legitimidade em falarmos de pós-humanismo, pós-modernidade, pós-político, pós-histórico, quando sabemos que essas condições são o ápice do processo de aceleração capitalista?

José Antonio Zamora - Apesar da crescente aceleração e da persistência dos mitos modernos do progresso e do avanço histórico, também nos encontramos com discursos não menos influentes sobre o fim da história e, junto com ele, sobre o fim da razão, do sujeito, da política, das ideologias, etc. Um sentimento muito estendido de esgotamento de todas as energias utópicas e uma sensação de que nada realmente essencial muda, de que nada verdadeiramente novo pode acontecer, de que nos encontramos ante um horizonte histórico incontornável, parecem servir de pretexto a ditos discursos que põem o acento nas cristalizações e nas estruturas subjacentes à mudança, bem como na experiência subjetiva que refletia a metáfora weberiana da “jaula de aço”. Frente à modernidade “clássica” parece emergir uma modernidade “líquida”, “reflexiva”, “segunda”, na qual a aceleração dá um giro em pura simultaneidade do diverso. O que, à primeira vista, parece um paradoxo da experiência do tempo na modernidade tardia, tem a ver com os fatores econômicos, culturais e sociais que determinam a transformação de suas estruturas temporais e a dialética que lhes é inerente. Por isso, resulta necessário clarificar qual ou quais são os fatores determinantes (inovação técnica, lógica econômica, diferenciação social, mudanças culturais) de dita transformação e as relações que existem entre eles.
A aceleração, à qual estão submetidas todas as mudanças sociais, produz uma sensação de velocidade irrefreável. Porém, ao mesmo tempo os acontecimentos e fatos submetidos a essa velocidade carecem de duração e, em certo sentido, de consequências duradouras. Vivemos, pois, com a sensação de que nada essencial muda, de que não sucede nada essencialmente novo. Como constata Baudrillard , “a história não chega a ocorrer, (…) a história se funde em seu efeito imediato, se esgota em seus efeitos especiais, implode em atualidade.” Por isso, do ponto de vista dos indivíduos, se impõe uma sensação de paralisação e imobilidade, de destemporalização por acumulação e multiplicação dos acontecimentos, possibilidades, vivências, ações, etc., todas de caráter episódico, fugazes, desconexas, descontextualizadas, que apenas deixam vestígio e podem escassamente ser integradas numa sequência biográfica capaz de dotá-las de sentido. A novidade e a mudança acelerada parecem confundir-se com um eterno retorno do mesmo, ou, para empregar uma imagem usada por Paul Virilio , um redemoinho que não sai do lugar.


 

IHU On-Line - De que forma o conceito do tempo messiânico ajuda a compreender esse cenário e estabelecer um contraponto?

José Antonio Zamora - O conceito de tempo messiânico, ao menos tal como o define Walter Benjamin, se entende como uma réplica aos esquemas temporais dominantes na cultura ocidental, o do progresso e do eterno retorno do mesmo ou do fim da história. Estes dois esquemas, aparentemente contrapostos, são na realidade as duas faces da mesma moeda. A concepção do progresso como sequência linear e contínua de mudanças de um tempo que transcorre de forma completamente homogênea produz paradoxalmente a impressão de um completo vazio do curso do tempo e não põe o acento na definição qualitativa do novo, senão que converte o processo histórico num movimento automático que confere ao novo uma significação meramente temporal. Esta desqualificação do novo, seu esvaziamento de conteúdo material e sua redução a um esquema abstrato é registrada e sancionada pela ideia de um eterno retorno.

Neste sentido, o Reino de Deus não é a meta da dinâmica histórica, senão seu final. Pensar a história dirigida pela astúcia darazão em direção a um estado de plenitude havia sido a obra da filosofia moderna da história, tanto em suas versões burguesas como socialdemocratas. Porém esta compreensão, inseparável de uma teodiceia justificadora do sofrimento e da injustiça como preço do avanço em direção à meta, representa a visão dos vencedores, à qual, segundo o Benjamin das Teses, as vítimas hão de opor-se com todas as suas forças, pois compartilhá-la significa verem-se a si mesmas com o olhar de quem os oprime e aniquila e perder quase toda a capacidade de combater.

Um traço fundamental da práxis messiânica, segundo Benjamin, tem a ver com a maneira em que dita práxis se insere no devir histórico e com a rememoração do passado. A recordação no momento do perigo, enquanto memória de um futuro já pretérito, do futuro não acontecido, do subtraído às vítimas, não estabelece um contínuo histórico, senão que antes faz valer o caráter não cerrado nem liquidado do sofrimento passado e as esperanças pendentes das vítimas da história. Só a partir deste futuro já pretérito é possível pensar que o futuro atual tenha uma oportunidade de ser algo mais do que o prolongamento da catástrofe. Para Walter Benjamin, “não existe instante que não leve em si uma oportunidade revolucionária”. Mas, a materialização desta oportunidade depende da interrupção do curso catastrófico da história. O resgate ao qual está chamado o ato revolucionário não se produz segundo a lógica das “leis históricas da evolução”, senão contra elas: acendendo-se frente a elas como seu contrário, resistindo a elas e nessa resistência conformando sua própria identidade e, portanto, mais que se tornando segundo a lógica da evolução, quebrando seu curso. O kairós messiânico-revolucionário designa aquela situação histórica na qual presente e passado se desvincularam do contínuo histórico e formaram uma constelação que possibilita uma nova perceptibilidade e uma nova práxis. Nesta correspondência se unem a vontade de uma restituição e um saneamento do aniquilado e a força para realizá-lo na interrupção do curso catastrófico da história.

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>> Confira outras entrevistas concedidas por José Antonio Zamora à IHU On-Line.

* O império do instante e a memória. Notícias do Dia 01-11-2009.

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