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Márcia Junges e Alfredo Culleton - Tradução Benno Dischinger
“Movimento filosófico e teológico, que teve seu apogeu nos séculos XVI e XVII, dentro das universidades, principalmente da Espanha e Portugal, mas também da Itália e de alguns outros países. Partindo do estudo dos escolásticos medievais, principalmente de Tomás de Aquino, esses autores procuravam dialogar com a sociedade de seu tempo na qual haviam surgido alguns fatos novos, como as descobertas científicas na área da Física, que haveriam de culminar com os nomes de Copérnico (+1543), Galileu (+1642) e Newton (+1727); as descobertas marítimas que levaram os europeus a contatar novas civilizações, nas Américas e no Oriente; e a Reforma protestante”. Assim o filósofo gaúcho Luís Alberto De Boni define a Escolástica. Ele analisa, também, os motivos pelos quais a formação das universidades brasileiras foi tão tardia, comparativamente à Espanha e Portugal. De acordo com ele, “no período colonial não tivemos universidades porque Portugal não as quis instituir”. E provoca: “Se Suárez, em vez de ser um espanhol católico, fosse um alemão luterano, ou um holandês calvinista, ou um inglês anglicano, seria muito mais citado e o apresentariam como um dos grandes filósofos da História, o que ele, de fato, foi”. Em seu ponto de vista, “em questões de Metafísica, de Ética e de Política aqueles velhos escolásticos estão presentes” até hoje. As declarações fazem parte da entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.
De Boni é graduado em Filosofia pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí e em Telogia pela Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindisi. É doutor em Teologia pela Universidade de Münster (Westfalische-Wilhelms), orientado por Johann Baptist Metz. É pós-doutor pelas Universidades Alberto Magno e Bonn, ambas na Alemanha. Publicou e organizou mais de trinta obras, dentre as quais citamos: Lógica e linguagem na Idade Média (Porto Alegre: Edipucrs, 1995); Guilherme de Ockham (Porto Alegre: Edipucrs, 2000) e A ciência e a organização dos saberes na Idade Média (2. ed. Porto Alegre: Edipucrs, 2000).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Poderia situar a Segunda Escolástica no Brasil?
Luiz Alberto De Boni - Creio que convém, inicialmente, explicar o que foi a assim chamada Segunda Escolástica. Tratou-se de um movimento filosófico e teológico, que teve seu apogeu nos séculos XVI e XVII, dentro das universidades, principalmente da Espanha e Portugal, mas também da Itália e de alguns outros países. Partindo do estudo dos escolásticos medievais, principalmente de Tomás de Aquino , esses autores procuravam dialogar com a sociedade de seu tempo na qual haviam surgido alguns fatos novos, como as descobertas científicas na área da Física, que haveriam de culminar com os nomes de Copérnico (†1543), Galileu (†1642) e Newton (†1727); as descobertas marítimas que levaram os europeus a contatar novas civilizações, nas Américas e no Oriente; e a Reforma protestante.
Os missionários que vieram para o Brasil haviam recebido uma formação fundamentada na Segunda Escolástica. Aqui, eles não precisaram muito debater noções da nova ciência, nem combater os protestantes, mas foi de suma utilidade o que aprenderem em questões de Ética, como, por exemplo, a respeito da dignidade dos indígenas, que não poderiam ser escravizados. Infelizmente, com relação à escravidão negra, não fizeram - ou não conseguiram fazer - o que seria de esperar.
IHU On-Line - Como se deu a formação das universidades no Brasil?
Luiz Alberto De Boni - A universidade é uma instituição tardia no Brasil. Se olharmos para a América Espanhola, constataremos que já desde os primeiros tempos de colonização foram sendo criadas universidades. Assim, a Universidade de São Marcos, em Lima, foi fundada em 1551. Universidade Autônoma de Santo Domingo, na República Dominicana, teria sido fundada antes, em 1538, mas só mais tarde recebeu a documentação real; a Universidade do México, em 1551; a Universidade Santo Tomas em Bogotá, em 1580; a Universidade de Córdoba, na Argentina, em 1621; a Universidade Maior de São Francisco Xavier em Chuquisaca, na Bolívia, em 1624; a Universidade de Rosário, Argentina, em 1654; a Universidade de São Carlos de Guatemala, em 1676; a Universidade de Havana em 1721; a Real Universidade de São Felipe, Chile, em 1747.
Como se pode ver, cerca de 250 anos após o descobrimento, os espanhóis já haviam criado 10 universidades. Isso significou muito para aquela época, como se constatou quando, no início do século XIX, aconteceu a independência política da América Espanhola: havia naquelas jovens nações uma elite intelectual apta a assumir a direção dos negócios públicos.
“Universidade do Brasil”
No Brasil, o caso foi bem diferente. Estou falando sério, não é piada o que vou contar a respeito de nossa primeira universidade. Ela surgiu em 1922. Naquele ano, comemorava-se o centenário da independência e, entre os convidados para os festejos, encontrava-se o rei Alberto I, da Bélgica, um monarca que se transformou em mito, devido à luta em defesa da pátria invadida pela Alemanha, quando da Primeira Guerra Mundial. Entre outras coisas, pensou-se em conferir a ele título de doutor honoris causa. Todos concordaram com a ideia, mas então alguém deve ter observado que, para tanto, era necessário haver uma universidade. Então, às pressas, as diferentes faculdades existentes no Rio de Janeiro foram reunidas, constituindo a “Universidade do Brasil”. E a primeira e honrosa missão de nossa primeira universidade foi a de conferir um diploma de doutor honoris causa.
Na verdade, a primeira universidade brasileira, de fato, foi a USP, a Universidade de São Paulo. Esta também possui uma história interessante. Como se sabe, em 1930 Getúlio Vargas chegou ao poder no comando de uma revolução dirigida principalmente contra o estado de São Paulo, acusado de se haver “adonado” da República. Em 1932, os paulistas reagiram também com uma revolução, que chamaram de constitucionalista (pois Vargas estava governando sem constituição). Na realidade, era a tentativa de uma elite conservadora e superada voltar ao poder. Mas, felizmente, foram derrotados. Por que felizmente? Em primeiro lugar, porque o passado não voltou ao poder; em segundo, e principalmente, porque depostas as armas, os vencidos se reuniram para pensar o futuro do Estado e, entre outras coisas, criaram, em 1936, uma universidade, que teve entre os organizadores o antropólogo Paulo Duarte, a quem Getúlio enviou duas vezes para o exílio e, depois, em 1969 - creio por ser inteligente demais – foi cassado pelos militares. A França tinha, na época, uma grande ascendência cultural sobre o Brasil – Paul Claudel e Darius Millaud foram adidos culturais no Rio de Janeiro. Por isso a USP surgiu dentro de um modelo francês e diversos professores franceses se encontram entre os primeiros que lecionaram na nova universidade (Claude Levy-Strauss foi um deles).
Reforma do ensino superior
Sem dúvida, alguns leitores poderão reclamar ao lerem estas linhas. Os paranaenses, por exemplo, vão dizer, que a universidade deles foi fundada em 1912. E é verdade. Aconteceu, porém, que, na visão política do então governo federal, ela não devia existir e, por isso, em 1920, foi dissolvida em suas faculdades, só voltando a ser universidade após a redemocratização de 1945. Por reunião de faculdades foram criadas, antes da USP, algumas que hoje são universidades federais, tais como a UFMG, em 1927, e a UFRGS, em 1934. A partir de 1941, com a fundação da PUC-Rio, surgem as universidades particulares.
Cabe mencionar, enfim, que nossas universidades, tal como estão funcionando hoje em dia, são fruto da reforma do ensino superior empreendida pelo governo militar. Em 1964, após o golpe de estado, o governo percebeu que não conseguiria superar o gargalo que estrangulava a procura pelo ensino superior. Por isso, facilitou a criação de universidades particulares que, em pouco tempo, duplicaram o número de universitários no país. Depois, dentro do célebre e discutível acordo MEC-USAID, reformulou-se o sistema universitário: entre outras coisas, suprimiram-se as cátedras, foi criado o tempo integral, organizou-se o plano de carreira docente, foi instituída e regulamentada a pós-graduação.
IHU On-Line - Por que essa formação é tão tardia em nosso país?
Luiz Alberto De Boni - No período colonial não tivemos universidades porque Portugal não as quis instituir. E tinha lá seus motivos. Portugal era uma nação pequena e relativamente pobre em seu solo, mas tinha administradores de visão. Eles sacrificaram os domínios no Oriente, entregando-os à Holanda e à Inglaterra, mas salvaram para si a mais rica e lucrativa colônia da época: o Brasil.
A extensão e a riqueza da colônia poderia, porém, transformar-se em tentação para os habitantes dela que, um dia, seriam levados a sonhar com a independência, como, de fato, aconteceu no caso da Inconfidência Mineira . Contra este perigo foram tomadas certas medidas, entre as quais a de impedir a fundição de ferro (numa região que encontrava o minério à flor da terra e tinha escravos que, na África, haviam aprendido a fundi-lo), a de proibir a impressão de livros e a tecelagem, e a de manter um baixo nível cultural, tanto não promovendo o ensino primário como impedindo a criação de universidades.
O pouco de cultura que a colônia conheceu esteve asilado em colégios religiosos, principalmente os dos jesuítas. Infelizmente não temos muita documentação a respeito aqui no Brasil, mas é de supor que em Portugal, no Arquivo da Torre do Tombo, esteja guardado material importante dos colégios da época. Para todos os efeitos, é bom recordar que o padre Antônio Vieira , uma das mais brilhantes cabeças de nossa história, fez todos seus estudos, inclusive de Teologia, no colégio dos jesuítas, na Bahia.
Riqueza financeira, pobreza cultural
Quando a corte portuguesa, no início do século XIX, fugindo das tropas de Napoleão, chegou ao Brasil, pôde ver de perto a situação calamitosa da colônia, sem dúvida a mais rica financeiramente e a mais pobre culturalmente de todo o mundo. Para suprir as necessidades mais agudas, foram então criados dois cursos de Direito, um em Recife e outro em São Paulo, e duas faculdades de Medicina, uma no Rio e outra em Salvador. Com isso, procurava-se formar administradores nativos da coisa pública e garantir um mínimo de assistência médica à população. E assim o país se tornou independente e conheceu quase 70 anos de império, tempo durante o qual quase nada se fez em favor do ensino superior.
Veio, enfim, a República, e novamente a desgraça. Os positivistas, com a queda da monarquia, talvez não obtiveram tanto espaço político como esperavam, mas foi importante sua contribuição ideológica. Baseados na doutrina comteana , eles defendiam a obrigação de o governo abrir escolas primárias, porque, a seu modo de ver, se tratava de um ensino sem conteúdo ideológico. Ao mesmo tempo, porém, defendiam que o poder público não devia se imiscuir no ensino superior, porque este era ideológico, devendo ser promovido por grupos particulares que por ele se viessem a interessar.
Graças a essas ‘sábias’ medidas históricas, fomos criar nossas universidades 370 anos depois que os espanhóis fundaram as deles em continente americano. E só a partir das décadas de 1970 e 1980 do século passado, isto é, há 30-40 anos, é que o fluxo contínuo de formação de mestres e doutores passou a funcionar no Brasil.
IHU On-Line - Qual é a relevância dos jesuítas na Segunda Escolástica?
Luiz Alberto De Boni - Os grandes nomes da Segunda Escolástica foram, quase todos, de dominicanos e jesuítas. De início encontramos mais dominicanos, e isso tem uma lógica, pois o texto que foi adotado para ser comentado em aula foi a Suma Teológica de Tomás de Aquino, um dominicano; havia também renomados frades desta ordem lecionando já antes que fosse fundada a Companhia de Jesus. Foram dominicanos, entre outros Silvestre Prierias (1456-1523); Tomás de Vio Caietano (1469-1534); o grande Francisco de Vitoria (1483-1546); Domingos de Soto (1494-1560) e Domingos Bañez (1528-1602). Aos poucos, porém, os jesuítas encontraram o próprio espaço e tiveram brilho próprio. Chegaram a tanto por dois motivos: em primeiro lugar, pela convicção da Companhia de Jesus de que, naquele momento histórico, era necessário investir pesado na educação e, por isso, as melhores cabeças foram encaminhadas para as universidades; em segundo lugar, porque Tomás de Aquino foi adotado pela Companhia como o pensador a ser seguido como modelo. E assim surgiram nomes como os de Luís Molina (1535-1600); João Mariana (1536-1624); Roberto Bellarmino (1542-162); Francisco Suárez (1548-1617); Gregório de Valência (1549-1603); Gabriel Vasquez (1551-1604) e Leonardo Lessio (1554-1623).
Para falar da relevância desses jesuítas, dou apenas dois exemplos. Hugo Grócio, calvinista, goza de grande consideração no mundo jurídico, como sendo aquele que sistematizou a teoria do direito natural. Pois bem, basta ver a quantidade das citações em O direito da guerra e da paz nas quais apela para esses nomes da Segunda Escolástica e se constatará que na leitura desses dominicanos e jesuítas ele encontrou quase todo o arcabouço teórico de que precisava. O segundo exemplo tem a ver com Francisco Suárez, o filósofo mais lido no século XVII e início do século XVIII. Ora, como os protestantes haviam criticado acerbamente os escolásticos, alegando que estes deram muita atenção aos filósofos e pouca à Bíblia, eles acabaram por não produzir nenhum grande pensador nas primeiras décadas de sua história. Daí, quando quiseram fazer Filosofia, descobriram que as suarezianas Disputationes metaphysicae (atualmente sendo traduzidas para o português) eram um excelente livro para tanto (e continua sendo). São as surpresas da história: protestantes de tempos passados aprendendo filosofia na obra de um papista! Aliás, costumo dizer a meus alunos que, se Suárez, em vez de ser um espanhol católico, fosse um alemão luterano, ou um holandês calvinista, ou um inglês anglicano, seria muito mais citado e o apresentariam como um dos grandes filósofos da História, o que ele, de fato, foi.
IHU On-Line - Com quais áreas do conhecimento a Segunda Escolástica dialoga atualmente?
Luiz Alberto De Boni - Há ciências nas quais os autores são sempre atuais; noutras, não. Um aluno, que tenta construir um pequeno telescópio, não irá pesquisar a obra de Al-Hazen, de Rogério Bacon ou de Galileu; ele vai logo procurar um manual atualizado que trata do tema. Do mesmo modo, os engenheiros que lançam uma sonda em direção a Marte não vão ler a obra de Newton sobre a lei da atração dos corpos, mas se valem de um programa de computador para fazer os cálculos. Isto é, não é preciso ler a obra de Galileu ou de Newton para ser um grande físico.
Já no Direito, por exemplo, Cícero, Ulpiano, Grócio continuam vivos e atuais; juristas, juízes e advogados os citam. O mesmo acontece com a Filosofia. Pobre do aluno que julgasse que, para ser um bom filósofo, seria suficiente dominar a obra de Heidegger ou de Wittgenstein. Aristóteles, Agostinho, Kant são autores atuais que têm ainda muito a nos dizer. Umberto Eco – o autor de O nome da Rosa –, ateu confesso, escreveu que, quando se depara com grandes problemas teóricos, costuma recorrer a Tomás de Aquino (morto em 1274).
O mesmo acontece com a Segunda Escolástica. Devem ser poucos os economistas que vão ler um autor desse período para saber o que ele escreveu sobre a teoria da moeda; poucos também os físicos que vão procurar lá o que se aventou a respeito do movimento. Entretanto, em questões de Metafísica, de Ética e de Política aqueles velhos escolásticos estão presentes.
E concluo com um exemplo. Quando George Bush , o pai, resolveu invadir o Iraque, solicitou autorização ao senado, e este pediu parecer aos assessores jurídicos. Um colega da USP, numa conferência, mostrou que a resposta dos assessores seguia exatamente a argumentação de Francisco de Vitoria, nas duas Relectiones de indis (Conferências sobre os índios), ao tratar do direito natural, do direito dos povos e das relações entre as nações. Não é preciso dizer que Vitoria discordava frontalmente do furor bélico busheano.
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>> Confira outra entrevista concedida por Luís Alberto De Boni à IHU On-Line.
* Repensando a política atual através da Idade Média. Edição número 198, Revista IHU On-Line, de 02-10-2006