Edição 340 | 23 Agosto 2010

Descolonização e Viver Bem são intrinsecamente ligados

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Moisés Sbardelotto | Tradução de Anete Amorim Pezzini

IHU On-Line – A partir do conceito de Pachamama, como o Bem-Viver entende a relação entre o ser humano e a natureza?

Katu Arkonada – Viver Bem
é sair da dicotomia entre ser humano e natureza. É despertar para uma consciência de que somos filhos da Mãe Terra, da Pachamama, de Ama Lurra como dizemos em euskera, meu idioma, e tomar consciência de que somos parte dela, de que dela viemos e com ela nos complementamos.

Nesse sentido, é interessante a ideia do nosso presidente, Evo Morales , de criar uma lei dos Direitos da Mãe Terra, da Pachamama. E, mais uma vez, voltamos a ver uma forma híbrida entre um conceito ocidental e moderno, como é o caso dos direitos, e um oriental e milenar. Direitos da Pachamama é uma metáfora do que a Bolívia é hoje, um laboratório de conceitos, uma aprendizagem contínua e uma confrontação entre diferentes formas de pensar, na busca de um novo paradigma, de uma nova forma de vida.

IHU On-Line – Que desafios o paradigma do Bem-Viver apresenta à atual cultura capitalista, ocidental e moderna de desenvolvimento e progresso?

Katu Arkonada –
O que é desenvolvimento? O que é progresso? Aqui na Bolívia, as ONGs têm nos ensinado que o desenvolvimento é medido com uma série de indicadores, que o motor do desenvolvimento é o avanço tecnológico, colocando as pessoas em posição de supremacia frente à natureza e em um vale-tudo para alcançar a sociedade do bem-estar, esse modelo exportado da Europa e que também se refere aos grandes interesses econômicos, que nos impuseram o capitalismo depredatório como modelo sócio-econômico. Progresso são os índices do PIB e da renda per capita mais elevados, mesmo que seja às custas da uma deterioração social e ambiental, como a que nos levou a essa crise de civilização que sofremos.

Nessa conjuntura, o paradigma do Viver Bem ensina-nos não a viver melhor, mas sim a viver bem com menos. Ele precisa ser um marco na educação. Precisamos criar uma ética de Viver Bem e reconstruir um pensamento e uma forma de vida mais comunitária, com outras formas de repensar as relações interpessoais e a economia, um equilíbrio entre a cultura e a Mãe Terra, em que a complementaridade ou a reciprocidade sejam as duas faces de uma mesma moeda.

IHU On-Line – Em termos econômicos, como o Bem-Viver nos ajuda a repensar a produção e a produtividade?

Katu Arkonada –
Aqui temos de ver como passar da teoria à prática: repensar e caminhar em direção a novos paradigmas e, no plano econômico, desenvolver a economia comunitária.

Novamente, temos que aprender muito com o mundo indígena, com o funcionamento do Ayllu, o sistema de organização tradicional, a comunidade, mas não entendida como um conjunto de indivíduos, mas sim como um todo complementar entre as pessoas, os animais, o ar ou a Mãe Terra. Assim, ao sairmos da concepção humanista e individualista, não é possível conceber o termo “recurso”, e, portanto, tudo é complementar, todo o ayllu contribui e recebe, de forma comunitária.

E se isso pode ser aplicado à microeconomia, mediante o ayni – que nada mais é do que essa reciprocidade, em que se dá sem esperar nada em troca, e também se recebe –, temos que ver como repensamos o Viver Bem em nível macroeconômico, onde o Estado tem que se converter em um ente redistribuidor da terra e da riqueza, e preservador dos recursos naturais. E o mesmo vale para as relações internacionais, em que temos intenção de levar isso a cabo, a complementaridade e a reciprocidade, na ALBA.

IHU On-Line – Você diz que “nos educaram e nos ensinaram a viver melhor, mas não a Bem-Viver”. Nesse sentido, Bem-Viver é o caminho para a Yvy marã ei (terra sem males), sonhada pelos Guarani?

Katu Arkonada –
Para aqueles que cresceram e foram educados na Europa do capital, na modernidade ocidental, Viver Bem significa viver melhor, ter mais. No entanto, em toda sua polissemia, seja a concepção aimará, quéchua ou guarani de ivi maraei , que a nova Constituição Política do Estado boliviano também inclui, o Viver Bem se converte em uma esperança para a crise de vida que sofremos, em um novo paradigma para o qual é preciso caminhar.

Parece-me muito interessante que haja diversas aproximações ao termo e que continuemos tentando aterrissá-lo nas questões práticas, além dos discursos mais retóricos. Nesse sentido, se a partir da teoria, do confronto de ideias e de termos – inclusive, às vezes, gerando contradições – conseguimos avançar e nos aproximar um pouquinho mais desse novo paradigma, creio que debates como este ganham sentido.

Precisamos ouvir aqueles que estão caminhando há milhares de anos, aqueles que não veem o tempo como algo linear, mas como algo circular, em que o presente é contínuo, e o passado e o futuro são um só. Só assim, saindo da lógica ocidental, eurocêntrica, cristã e moderna, repensando a nós mesmos e aquilo que nos rodeia, poderemos começar uma verdadeira descolonização e uma aproximação ao Viver Bem.

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