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Márcia Junges
Na opinião do sociólogo Zander Navarro, é pouco provável que a sociedade atual concorde com a imposição de limitar o tamanho da propriedade da terra: “Na prática, esta decisão afastaria as possibilidades de expansão da agricultura mais produtiva e eficiente. Seria uma insanidade do que, suponho, a vasta maioria dos brasileiros discordará”. Segundo ele, quem realmente defende a limitação da escala da atividade produtiva agropecuária no Brasil são apenas dois agrupamentos sociais, claramente identificáveis: “primeiramente, o MST e sua ‘órbita política’, o que inclui partidos de extrema-esquerda (como PSOL, PSTU e outros), além de seus aliados sociais, especialmente setores de estudantes universitários e uma parte (cada vez menor) do campo petista”. E completa: “Em segundo lugar, há outro segmento, este sociologicamente mais curioso, formado pelos aderentes de um catolicismo relativamente radicalizado, que ainda evoca ideias da Teologia da Libertação, os quais se associam à utopia de um comunitarismo cristão, sonhador de coletivos rurais ‘não integrados aos mercados’, produzindo para a autossubsistência e voltados especialmente à sua própria coesão social”. Navarro acredita que é quase impossível que a restrição do tamanho vingue algum dia, sobretudo por razões econômicas. Sobre o uso da terra no Brasil por estrangeiros, afirma que não há informações consolidadas, pois nem mesmo o Incra oferece dados mais precisos e esclarecedores. A respeito da reforma agrária, pontua que não existe mais uma demanda social relevante que a torne necessária. Essa demanda, diz ele, “hoje restrita a pequenos bolsões e, desta forma, o futuro agrário brasileiro deve manter uma singular dualidade estrutural, se comparado com outros países de desenvolvimento econômico capitalista mais avançado”. As informações fazem parte da entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Zander Navarro, sociólogo, professor associado no Departamento de Sociologia da UFRGS (Porto Alegre), é pesquisador visitante no Institute of Development Studies, na Inglaterra. Atualmente está cedido ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Brasília), através do qual também colabora com o Centro de Estudos Estratégicos e Capacitação em Agricultura Tropical da Embrapa (Brasília). É PhD em Sociologia pela Universidade de Sussex, na Inglaterra, com pós-doutoramento no Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos. Foi professor visitante nas universidades de Amsterdam e Toronto.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Poderia conceituar o que é o limite da propriedade da terra?
Zander Navarro – De fato, não existe um “conceito” de limite de propriedade da terra. O que pode existir é um preceito legal ou uma imposição política, mas não um conceito embutido em alguma teoria sobre o desenvolvimento rural. No passado distante, foram estabelecidos em alguns países limites no uso da terra, quando a noção de propriedade privada ainda não era determinante em tais contextos. Isto ocorreu especialmente em face da escassez de recursos de terra e a necessidade de prover alimentos para uma dada comunidade, povo ou nação. Ou seja, em determinados casos históricos existiu um limite imposto por uma fonte de poder local, ou então o Estado constituído. Em outras situações, ainda vigentes em alguns países, particularmente na África, um limite, não de propriedade, mas de posse e uso da terra, tem sido definido em função de um direito consuetudinário associado a comunidades tradicionais. Isto ocorre porque existe uma regra que atribui poder ao chefe (ou a um conselho de mais velhos) para alocar uma área a uma família recém formada que pretende trabalhar na agricultura. No período contemporâneo, sob o qual uma sociabilidade capitalista foi sendo fortemente difundida e, gradualmente, passou a conformar os comportamentos sociais (o que variou, é claro, entre as regiões e países), a ideia de estabelecer um teto para a propriedade da terra foi se tornando contraditória e, com o tempo, abandonada. Terra, sob tal sociabilidade, é não mais do que um recurso e, portanto, desenvolve um mercado específico, como quase tudo o mais em regimes sociais dominados por aquela sociabilidade. O que diferentes países impuseram foi, antes, um regramento relativo ao uso da terra, especialmente no tocante às fontes de água, à cobertura vegetal e à fauna, com o objetivo de evitar um uso predatório dos recursos naturais.
Restrição improvável
O crescimento da agricultura, no entanto, sempre implicou em desmatamento, perda de biodiversidade e algum grau de impacto sobre o meio-ambiente, o que tem sido inevitável com o aumento populacional e da renda e a concomitante expansão da demanda por alimentos. Durante um período histórico relativamente longo, a tensa associação entre a atividade econômica agropecuária e o meio-ambiente foi minimizada. Esta situação modificou-se a partir dos anos oitenta. Primeiramente, em função da emergência da noção de “desenvolvimento sustentável”, a qual implica em um diferente manejo do meio ambiente e, já no final da década de 1990, também resultou da emergência das mudanças climáticas, o que tornou ainda mais dramática aquela associação. Esses fatos vêm exigindo uma nova visão tecnológica sobre a atividade econômica agropecuária, centrada em imperativos ambientais, os quais, no entanto, não incidem necessariamente sobre o tamanho da propriedade.
No caso brasileiro, existe uma especificidade a ser salientada e que se refere ao bioma amazônico. Neste caso, pode ser possível que os anos vindouros não apenas estabeleçam novas restrições sobre o manejo dos recursos, mas talvez até mesmo imponham uma radical moratória no uso da terra em boa parte daquele bioma, especialmente sobre o maciço florestal ainda existente. Mesmo assim, dificilmente se restringiria o tamanho do imóvel rural. Em relação às demais regiões brasileiras, é muito improvável, para não dizer impossível, que a restrição ao tamanho vingue algum dia, por tantas razões de alguma obviedade, a principal delas sendo uma razão econômica: o Brasil é hoje o mais importante produtor e exportador da agricultura tropical, talvez o único que ainda ostenta potencial de crescimento significativo, o que o tornará ainda mais decisivo no comércio mundial de mercadorias agrícolas. Restrições à produção (como o limite de propriedade) significarão, ao final, perda de receitas extraordinárias, além de serem incongruentes com uma sociabilidade capitalista (exceto por aqueles imperativos ambientais citados). Preferirão os brasileiros descartar uma oportunidade única como esta, que assegurará um fluxo significativo e crescente de riquezas?
IHU On-Line – A ideia de limite da propriedade da terra é uma alternativa viável no caso brasileiro? Quais os benefícios e problemas?
Zander Navarro – É viável, conforme indicado, apenas por alguma especificidade ambiental típica de uma região específica (como no bioma amazônico). Não há nenhuma outra razão para implementar esta imposição, de nenhuma ordem, que seja justificável teoricamente, ou aceitável, social e politicamente. Do ponto de vista econômico, trata-se de uma noção completamente absurda e em inteira contradição com a lógica do regime econômico existente. De fato, as sugestões de estabelecer limites ao tamanho da propriedade, no Brasil, decorrem de uma argumentação estritamente moral, às vezes de cunho religioso, associada ao passado agrário. Trata-se de uma espécie de “punição moral” à grande propriedade territorial (o antigo latifúndio) que, em muitas regiões rurais, dominou o país, impôs o atraso político, exerceu a violência arbitrária, frequentemente se apropriou fraudulentamente de vastas extensões de terra, além de muitas vezes depredar recursos naturais. Esses são fatos históricos, não podendo ser desmentidos, embora de difícil comprovação factual, em muitos casos. Resta saber, no entanto, se existiriam condições políticas de preceituar atualmente aquela restrição aos produtores rurais, em função de um passado remoto. Esta é proposição que, por analogia, lembra a proposta de “reparações” aos atuais descendentes de escravos, em função de um regime social escravista que prevaleceu no passado. Moralmente, é proposição que para muitos parecerá razoável, pois eram regimes sociais inaceitáveis. Mas seria, em nossos dias, politicamente possível? É sempre importante lembrar que, em política, o razoável se associa ao que é factível. Assim como é pouco factível imaginar que as sociedades atuais aceitarão redistribuir fundos públicos a uma parcela da população (os descendentes de escravos) como forma de reparação, é também pouco provável que a sociedade brasileira atual, podendo acumular relevantes divisas no comércio internacional de produtos agrícolas (que a todos beneficiaria, ainda que indiretamente), venha a concordar com uma imposição. Na prática, esta decisão afastaria as possibilidades de expansão da agricultura mais produtiva e eficiente. Seria uma insanidade que, suponho, a vasta maioria dos brasileiros discordará.
IHU On-Line – Como vê o debate no Brasil sobre essa limitação da propriedade da terra?
Zander Navarro – Por que não afirmar mais claramente as motivações existentes? Quem realmente defende a limitação da escala da atividade produtiva agropecuária no Brasil? São apenas dois agrupamentos sociais, claramente identificáveis. Primeiramente, o Movimento dos Trabalhadores Rurais (MST), PSOL, PSTU e outros), além de seus aliados sociais, especialmente setores de estudantes universitários e uma parte (cada vez menor) do campo petista. Representam uma visão, atualmente muito circunscrita e periférica, de um “campo de esquerda” que vai sendo reduzido com o passar do tempo. Não apenas porque não tem alternativas sociais e econômicas inteligíveis para oferecer, mas porque são setores que tem sido incapazes de rediscutir sem dogmatismo o significado e o lugar social da esquerda em nossos dias, o que é uma agenda relevante, porém escapa ao assunto principal desta entrevista. Em segundo lugar, há outro segmento, este sociologicamente mais curioso, formado pelos aderentes de um catolicismo relativamente radicalizado, que ainda evoca ideias da Teologia da Libertação , os quais se associam à utopia de um comunitarismo cristão, sonhador de coletivos rurais “não integrados aos mercados”, produzindo para a autossubsistência e voltados especialmente à sua própria coesão social. São ideias curiosas porque defendidas particularmente por segmentos sociais urbanos que pouco conhecem sobre o meio rural, mas são noções que se tornam bizarras por que essas situações sociais de relativa autonomia e autarquia, em regiões rurais, não existem mais, e suas chances de ressurgirem, é claro, igualmente inexistem. Ou seja, são noções absolutamente fantasiosas, tão presentes em determinados âmbitos urbanos e católicos.
IHU On-Line – Como percebe o avanço do capital estrangeiro sobre as terras em nosso país?
Zander Navarro – Existe claramente uma tendência à “estrangeirização” no uso das terras para fins produtivos, em diversos países, e não apenas no Brasil. Há uma aposta por parte de investidores na elevação do preço dos alimentos (tendência que não parece ser provável), e esses pretendem apenas recolher os lucros correspondentes. Outros, em associação com seus respectivos governos, objetivam garantir a segurança alimentar futura de seus países, sobretudo em face das mudanças climáticas. Para tanto, procuram acordos com governos de países onde existe ainda alguma abundância de terras (países, por exemplo, como Madagascar ou Moçambique, entre outros), no sentido de iniciar atividades de produção agrícola de forma mais intensiva naqueles locais. O Brasil, em face de seu tamanho continental e a excepcional possibilidade de expandir a sua fronteira agrícola, é um alvo preferencial. Mas existem obstáculos previstos em lei e, desta forma, a entrada de capitais externos na produção agrícola, na atualidade, somente pode ocorrer na forma de associação com brasileiros. Provavelmente, em algumas situações, “laranjas” têm sido utilizados para tal finalidade, mas certamente em casos isolados, sem representativa estatística. Ou seja, dependerá do Estado brasileiro o controle de tais situações, pois a ele cabe a fiscalização deste movimento.
IHU On-Line – Deve haver um mecanismo para limitar a internacionalização de terras brasileiras? Por quê?
Zander Navarro – Depende da perspectiva de cada um sobre a natureza e os caminhos da economia brasileira. Para aqueles que entendem que o país faz parte de um mundo globalizado, no qual poderá ter um papel crescentemente relevante, a limitação, não apenas do tamanho da propriedade, mas do papel do capital externo nas atividades agrícolas, jamais deveria existir. Neste caso, prevalece especialmente uma ótica econômico-financeira visando à dinamização capitalista da agricultura. Para outros, existem imperativos ambientais (já citados) ou sociais (por exemplo, os baixíssimos salários pagos aos assalariados rurais) e, para esses, ou se mantém a atual legislação, que restringe a presença daqueles capitais, ou até mesmo se proíbe totalmente que esses investimentos ocorram, reservando-os apenas aos cidadãos brasileiros. E, finalmente, existem as correntes neoutópicas e ultranacionalistas, que não apenas querem o total afastamento de capitais de origem externa, como almejam mudanças mais radicais, como o limite ao tamanho da propriedade e uma “recampesinização” do mundo rural brasileiro. Esta última visão é impossível de prosperar e não merece sequer ser discutida, enquanto que a primeira é relativamente irresponsável em relação ao futuro do Brasil, movendo-se apenas pelo interesse de curto prazo. Creio que a segunda via é a que mais atende aos nossos interesses como nação: o capital estrangeiro seria bem-vindo, em associação com capitais nacionais, para dinamizar a economia rural, mantidos certos controles legais, como os imperativos ambientais e sociais acima referidos – mas não o limite de propriedade.
IHU On-Line – Como os estrangeiros estão usando a terra aqui no Brasil?
Zander Navarro – Não se sabe, a não ser superficialmente, pois sequer o Incra oferece uma informação mais precisa e esclarecedora. Existem diversas informações assistemáticas sobre algumas situações específicas. Um levantamento parcial com especialistas em mercados de terras, nas regiões mais dinâmicas da agricultura brasileira, indica que a presença de capitais externos é ainda muito marginal, em relação ao total, usualmente associado a empresários rurais brasileiros. Na realidade, a pujança econômica deste setor, que cresceu notavelmente nos últimos vinte anos pelas mãos dos empreendedores nacionais, de certa forma bloqueia a presença destacada de capitais externos. Ou seja, o “instinto de lucro” que move os empresários brasileiros deste setor contribui fortemente para obstruir, senão impedir, as chances dos empreendedores externos. Lembrando, igualmente, que a atividade agropecuária, a não ser em momentos excepcionais de demanda (como ocorreu durante alguns anos da presente década), raramente é lucrativa o suficiente, se comparada relativamente aos investimentos realizados em outros setores econômicos. Desta forma, momentos de grande liquidez internacional não significam, necessariamente, que investimentos na agricultura brasileira poderão ser atraentes para ampliar a presença estrangeira neste setor.
IHU On-Line – Em que aspectos o Novo Código Florestal brasileiro poderá causar impactos no tamanho das propriedades?
Zander Navarro – É impossível, no momento, asseverar tal relação, se esta existir. Existe um Código atualmente vigente que impõe um conjunto de restrições e, além disto, acarretará diversas consequências, quando a moratória assinada pelo atual governo deixar de existir, o que penalizará, inclusive, um enorme número de pequenos produtores rurais. E existe a proposta de revisar o Código, o chamado “substitutivo Aldo Rebelo” , que foi tornado público em junho. O Congresso Nacional, provavelmente, discutirá as mudanças somente no próximo ano, quando for renovado o Legislativo e, assim, desenvolvida sob outra conjuntura política.
Seria irresponsável, portanto, indicar mais firmemente o que poderá ocorrer. Este debate tem sido marcado por polaridades indesejáveis, seja pelo fundamentalismo ambiental desejoso de manter o atual Código a qualquer preço, ignorando que não existe mais o Brasil que viu a assinatura deste documento, em 1965, como, igualmente, pelos esforços de setores econômicos que desconsideram os imperativos dos tempos atuais e pretendem revogar a maioria dos preceitos ambientais, atualmente tão necessários. O substitutivo, se lido mais friamente, pretende, em especial, regularizar as situações de indefinição existentes e modernizar o Código, inclusive sugerindo o desenvolvimento de um “mercado ambiental”. Este poderá representar um mecanismo (entre outros) que não promova mais devastação e que regularize a situação daqueles que poderão se ver como criminosos ambientais; isto quando a moratória citada for levantada – a vasta maioria, saliente-se, é formada de pequenos produtores. É evidente que o substitutivo poderá ser aperfeiçoado, sendo o que se espera quando for discutido nos próximos meses, prevalecendo a sensatez equidistante daqueles dois extremos referidos.
IHU On-Line – Percebe relações entre a limitação da propriedade da terra com uma tentativa de implementação da reforma agrária? Por quê?
Zander Navarro – Como antes mencionado, a sugestão de limitar o tamanho da propriedade da terra é oriunda de setores sociais que têm motivações políticas bastante nítidas, os quais se situam em locus do espectro político que é atualmente bastante marginal, em termos de sua influência. É, sem dúvida, mais uma tentativa de relançar um tema que vai morrendo no Brasil, o da reforma agrária, pois se trata de uma política governamental que deixou de ter qualquer essencialidade, sob qualquer ângulo (inclusive o social) no Brasil de nossos dias. Como já escrevi em diversos outros textos, não existe mais demanda social relevante pela reforma agrária em nosso país, hoje restrita a pequenos bolsões e, desta forma, o futuro agrário brasileiro deve manter uma singular dualidade estrutural, se comparado com outros países de desenvolvimento econômico capitalista mais avançado (onde, com a exceção única da Austrália, predomina uma agricultura de farmers). No Brasil, manteremos, cada vez mais, uma agricultura capitalista empresarial de larga escala, especialmente no Centro-Oeste (ou outras regiões agrícolas bem delimitadas, como a zona canavieira paulista) e uma agricultura de pequenos estabelecimentos sob gestão familiar, este segmento sendo mais forte especialmente nos três estados do Sul. Será impossível evitar esta dualidade e sobre ela é que precisamos discutir o futuro rural do Brasil.
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Confira outra entrevista concedida por Zander Navarro ao sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU:
* ''Faz sentido ainda uma política de Reforma Agrária regional. O que não faz sentido é a política de Reforma Agrária nacional'', publicada nas Notícias do Dia 21-04-2009.