Edição 339 | 16 Agosto 2010

Reforma agrária e limitação da propriedade: requisitos para justiça no campo

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Márcia Junges

 

IHU On-Line – O que mudaria no mapa da produção agrícola brasileira com a limitação da propriedade da terra?

Jacques Alfonsin – A produção agrícola receberia vantagens sociais, políticas, e econômicas. Sociais, porque facilitaria o acesso das pessoas pobres à terra, coisa que, de regra, somente acontece com quem, por já ser proprietário de terra, tem crédito facilitado, dinheiro e, consequentemente, poder de estender a sujeição do seu direito (!) a mais terra; políticas, porque o território do país, melhor partilhado e distribuído entre seus próprios filhos e filhas, teria mais chance de resistir à verdadeira desterritorialização que está sofrendo com o avanço das empresas transnacionais sobre ele, interessadas apenas na terra enquanto mercadoria; econômicas, porque a mudança do destino atualmente prioritário que nossa terra dá ao agronegócio exportador – que prefere mandar para fora daqui o fruto da terra que falta à grande parte do nosso povo – abriria maior possibilidade de um consumo de massa, acessível à maioria, ampliando a tendência atual de a propriedade familiar rural alimentar o povo.

IHU On-Line – Com tantas terras improdutivas no Brasil, como podemos compreender que ainda existam agricultores que não têm onde plantar e viver?

Jacques Alfonsin – Produtivos ou improdutivos os espaços físicos (terra), eles seriam mais do que suficientes para todos, brasileiros e brasileiras, de modo particular àqueles sem terra. A economia capitalista, todavia, só reconhece a necessidade alheia na medida em que ela possa comprar a sua satisfação. Entre os tipos de economia, há o do sempre mais é o melhor (típico do capitalismo), chamado de crematística (do grego, açambarcamento de riquezas por prazer, puramente especulativo, constituindo reserva de valor, indiferente aos efeitos que isso possa causar) e o do sempre garantir o suficiente para todos os membros da comunidade (típico da economia solidária). Ao primeiro, corresponde o chamado produtivismo, uma espécie de exploração da terra indiferente ao futuro dela, mesmo que esse seja a sua morte. Ao segundo, corresponde a produtividade, ou seja, uma espécie de uso desse bem, que preserve todo o potencial de vida que ele comporta. Esse tipo, como acontece com a palavra solo, também traduz mais adequadamente a etimologia da palavra economia (oykós, do grego, casa; nomos, norma, regra). A gente esquece com facilidade que a própria etimologia da palavra solo traz em si a sua finalidade prioritária. Solo tem a mesma raiz de sola, de sal e de sala, como a nos advertir de que a finalidade primeira de sua posse (não necessariamente propriedade) é a preservação da vida e dos meios para que essa se conserve, como a comida e a casa.

IHU On-Line – Qual é a relação que existe entre a criminalização dos movimentos sociais, como o MST, e a demora na realização da reforma agrária?

Jacques Alfonsin – É princípio elementar de qualquer legislação que a todo o direito corresponde a possibilidade, a garantia de sua defesa. Uma das maiores incongruências que a interpretação dada ao nosso ordenamento jurídico é a de que todos os direitos que a pobreza, por si só, atesta como violados (falta de comida ou de casa para ficar com os exemplos mais visíveis) não são só considerados como infringidos. Então, o país vive esse paradoxo. Não havendo limite para a expansão da propriedade da terra, não há limite, igualmente, para o crescimento da pobreza da população sem terra, exatamente aquilo que a reforma agrária visa remediar, com base, inclusive, na Constituição Federal. Mesmo que, em desespero, como acontece com agricultores sem terra, sejam forçados a apelar para a justiça de mão própria, ocupando terras, isso lhes é imputado como crime. Entretanto, a pré-exclusão da ilicitude de tais gestos encontra apoio implícito e explícito em mais de uma disposição do Código Civil e do Código Penal. Eu não tenho conhecimento de que algum latifundiário brasileiro, inclusive grileiro, tenha sido denunciado ou condenado criminalmente, por exemplo, pelo fato de interpretar e praticar a seu modo a justiça de mão própria (!), descumprindo com a obrigação de garantir função social ao seu direito de propriedade sobre terra, quando aberrações como essas, por si sós, constituem crime, no mínimo, contra a preservação do meio-ambiente e a economia popular.

IHU On-Line – Qual a importância da participação popular no plebiscito de setembro?

Jacques Alfonsin – Além da pressão política que o plebiscito deve exercer sobre os poderes públicos, ele pode alcançar outros efeitos nada desprezíveis em favor do povo trabalhador e pobre do nosso país. Primeiro, o de se constituir em mais um fator de conscientização e de organização dos movimentos populares, impulsionando antigas e novas ideias-força em favor de novas conquistas traduzidas em efetivas garantias de seus direitos humanos fundamentais; segundo, provar, mais uma vez e de público, em que medida a economia solidária da propriedade familiar rural é muito mais eficaz em favor da alimentação e da moradia do povo, do que a imposta pelo latifúndio, especialmente o do agronegócio exportador; terceiro, ampliar o empoderamento das reivindicações das populações sem terra, dos pequenos proprietários e proprietárias rurais, das comunidades atingidas por barragens, em favor da reforma agrária, atrasada em décadas pela força contrária da Confederação Nacional da Agricultura – CNA e da bancada ruralista no Congresso Nacional.

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