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Patricia Fachin
Ao estudar a expansão dos povos guarani no Brasil, o historiador Jairo Rogge constata que há “uma forte articulação dessas populações com um ambiente ecológico específico, que é o das matas e várzeas de rios e áreas de solo fértil”. Essa relação destes povos com o meio ambiente “parece ter moldado um sistema sócio-cultural muito marcado, que deu origem a um modo de vida tradicional e sempre exaltado”, enfatiza.
Em entrevista à IHU On-Line, por e-mail, ele ressalta que, embora a cultura guarani tenha sido influenciada pelo contato com diversos colonizadores, os povos indígenas também deixaram marcas na cultura gaúcha. “Talvez a maior influência dos guarani é nos fazer perceber que as sociedades indígenas não são uma ‘entidade do passado’, não estão congeladas no tempo e no espaço e não correspondem à noção popular de que ‘índio é tudo igual’. Muito pelo contrário, estão aí, convivendo conosco, tendo desejos semelhantes, angústias semelhantes às nossas, lutando por espaço, comida, saúde, educação, embora possuindo uma lógica distinta da nossa”. E dispara: “Somente quando soubermos respeitar essa diferença, que ao mesmo tempo tem tantas coisas em comum, é que aprenderemos a ser mais ‘humanos’”.
Jairo Rogge é doutor em História pela Unisinos. Desde 1992, é pesquisador da Universidade e desenvolve atividades no Instituto Anchietano de Pesquisas, na área de Arqueologia, com ênfase em Arqueologia Pré-Histórica.
Jairo Rogge ministrará, juntamente com a professora Maria Cristina Bohn Martins e com o professor Walmir Pereira, a palestra Introdução ao seminário: integração e algumas reflexões iniciais, parte da programação do Seminário Jogue Roayvu: História e Histórias dos Guarani. Pré-evento do XII Simpósio Internacional IHU: A Experiência Missioneira: território, cultura e identidade, em 12/8/2010, às 19h30min, na sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU. A inscrição pode ser feita no endereço eletrônico <http://migre.me/ZudT>.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais as datações mais aceitas para a presença Guarani no sul do Brasil? Como, por que e em que contexto histórico ocorreram as primeiras ocupações dos povos guarani no sul do Brasil?
Jairo Rogge - Os sítios arqueológicos guarani mais antigos que conhecemos e que possuem datações confiáveis são encontrados por volta do final do primeiro século da Era Cristã, há cerca de 1.800 anos. As populações de língua tupi-guarani, entre as quais encontram-se os guarani, têm uma origem amazônica. Embora ainda faltem muitos estudos nesse sentido, a hipótese é de que esses grupos tenham iniciado, por questões de aumento de densidade populacional nas áreas de origem, uma ampla migração em direção sul há cerca de cinco mil anos, tendo alcançado o sul do Brasil e o litoral atlântico através da colonização progressiva das florestas que acompanham os vales dos grandes rios das bacias do Paraguai/Paraná, Uruguai e Prata. Nessa época, uma série de expansões indígenas estavam ocorrendo no território brasileiro e, junto com elas, quase sempre estava associada a utilização de plantas domesticadas, como o milho, a mandioca, a batata doce entre outras.
IHU On-Line - No processo de migração pelo Brasil, como os Guarani se dispersaram ao longo de todo o país? O que os levou a optar por determinadas regiões?
Jairo Rogge - O que houve realmente foi um amplo processo de expansão através de diversas ondas migratórias, gradualmente ocupando os vales dos grandes rios e seus tributários, buscando áreas dominadas pela floresta tropical e sub-tropical, com solos férteis e alto índice pluviométrico. Essas condições ecológicas eram procuradas, pois havia toda uma adaptação anterior a esse tipo de ambiente, criando um modo de vida próprio que os guarani buscavam replicar incessantemente. Em geral, regiões onde tais condições não ocorriam, não eram ou eram pouco ocupadas pelos grupos tupi-guarani.
IHU On-Line - Que aspectos o senhor destaca na formação e dispersão dos grupos proto-guarani no sul do Brasil?
Jairo Rogge - Uma coisa que chama a atenção quando se estuda a expansão guarani é justamente a forte articulação dessas populações com um ambiente ecológico específico, que é o das matas e várzeas de rios e áreas de solo fértil. Essa estreita relação ecológica também parece ter moldado um sistema sócio-cultural muito marcado, que deu origem a um modo de vida tradicional e sempre exaltado pelos guarani. Outro aspecto importante é a incrível prescritividade da cultura, especialmente quando tratamos da arqueologia guarani.
IHU On-Line - Como se deu a organização do espaço guarani nas reduções jesuíticas?
Jairo Rogge - O modo de vida tradicional dos guarani, no período missioneiro, foi dramaticamente modificado pela estrutura da vida nas reduções, não só no aspecto ideológico como sobretudo no aspecto da organização social e espacial. Embora os missionários tenham, eventualmente, mantido determinados elementos da estrutura social nativa, a adaptação ao espaço missioneiro, caracteristicamente europeu, certamente não deve ter sido fácil. Da aldeia tradicional à forma urbanizada da missão, principalmente o que mudou foi o controle sobre os indivíduos, facilitado pela planta da missão.
IHU On-Line - Como descreve a relação dos Guarani com os jesuítas? Como eles influenciaram a cultura e a identidade desse povo?
Jairo Rogge - As principais referências sobre a vida nas reduções provêm de um tipo específico de documentação, as “cartas ânuas”, que eram uma espécie de relatório escrito pelos padres e enviadas a seus superiores. Em muitas delas (ou praticamente todas), os relatos mostram que as condições não eram muito fáceis, para ambos os lados. De uma maneira geral, os padres se queixavam muito dos índios, mas certamente o inverso também era verdadeiro. Com certeza, os padres tiveram uma dificuldade muito maior com determinados indivíduos, os líderes religiosos tradicionais. Com esses, o conflito era permanente. No entanto, a influência jesuítica (e, consequentemente, europeia) sobre os índios acabou sendo enorme e, em certo sentido, prevaleceu e se incorporou à própria história indígena guarani. É interessante notar que, para muitos m’byá ainda hoje, seus “ancestrais” não são apenas os índios missioneiros, mas os próprios padres jesuítas.
IHU On-Line - O que a arqueologia tem revelado sobre a história dos Guarani que habitaram o sul do Brasil?
Jairo Rogge - O grande trunfo da pesquisa arqueológica é poder extrair conhecimento a partir de elementos aparentemente estáticos, como é o caso dos objetos que compõem parte da cultura material dos guarani do passado. Porém, essa percepção estática é totalmente enganosa, pois é possível tornar dinâmico esse conhecimento e compreender como uma população humana, no caso os guarani, viviam e se relacionavam entre si, com outros grupos e com o meio físico que exploravam e ocupavam.
IHU On-Line - Que reflexões o evento Seminário Jogue Roayvu: História e Histórias dos Guarani propõe sobre a trajetória dos guarani no Brasil?
Jairo Rogge - A ideia do seminário é difundir o conhecimento gerado por diferentes abordagens, tais como a arqueologia, a etnohistória e a etnografia sobre os guarani de ontem e de hoje. Nesse sentido, pretende trazer à tona uma avaliação e discussão sobre a importância desse grupo étnico e, em uma perspectiva de história contínua, compreender os diferentes processos ligados à continuidade e mudança cultural dessas populações.
IHU On-Line - Qual a influência do povo Guarani na formação da cultura gaúcha?
Jairo Rogge - Fora as influências mais óbvias, como na onomástica e em determinados hábitos culturais e alimentares, talvez a maior influência dos guarani (e de outras etnias indígenas) é nos fazer perceber que as sociedades indígenas não são uma “entidade do passado”, não estão congeladas no tempo e no espaço e não correspondem à noção popular de que “índio é tudo igual”. Muito pelo contrário, estão aí, convivendo conosco, tendo desejos semelhantes, angústias semelhantes às nossas, lutando por espaço, comida, saúde, educação, embora possuindo uma lógica distinta da nossa. Somente quando soubermos respeitar essa diferença, que ao mesmo tempo tem tantas coisas em comum, é que aprenderemos a ser mais “humanos”.
IHU On-Line - O antropólogo Bartomeu Melià disse que “os guarani são, ao mesmo tempo, um povo sem história e um povo com muitas histórias”. Como o senhor interpreta essa citação?
Jairo Rogge - Tive o prazer de ter sido aluno do Pe. Meliá quando cursei o mestrado em História na Unisinos, no início dos anos 90, e lembro de uma colocação sua que não esqueço: parafraseando Todorov, ele dizia que Colombo havia “descoberto” a América, mas não os “americanos”. Desde então, tem havido um processo sistemático de “encobrimento” das sociedades nativas. E é nessa perspectiva de “encobrimento” que passamos a ver as sociedades indígenas como sociedades “sem história”, incapazes que são de construir uma historicidade própria. Será isso verdade? Logicamente que não. Os guarani têm seus próprios modos de produção histórica e, entre eles, a história se repete e é construída a cada dia, pelos mitos, pelas músicas, pelas rezas. São, sim, muitas as histórias dos povos guarani.
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Jairo Rogge já concedeu outra entrevista à IHU On-Line.
• O resgate da cultura material confirma a diversidade cultural e étnica indígena. Publicada em 4/5/2008, nas Notícias do Dia e disponível no link <http://migre.me/ZuwE>.
>> E sobre a questão indígena, leia também:
• Os Guarani. Palavra e Caminho. IHU On-Line número 331, de 31-5-2010. Disponível no link <http://migre.me/10fer>;
• Em busca da terra sem males: os territórios indígenas. IHU On-Line número 257, de 5-5-2008. Disponível no link <http://migre.me/10fer>.
• As sociedades indígenas e a economia do dom: o caso dos guarani. Entrevista com Maria Cristina Bohn Martins, publicada na IHU On-Line número 324, de 12-04-2010, disponível em http://migre.me/13mOc
• As sociedades indígenas e a economia do dom - O caso dos guarani. Cadernos IHU ideias número 138, de autoria de Maria Cristina Bohn Martins, disponível para download em http://migre.me/13mPR