FECHAR
Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).
Graziela Wolfart
“Para nós, é animador e esperançoso que a Companhia (...) revele sensibilidade para o novo no campo social, que se amplia para além da pauta sócio-econômica hegemônica nos CIAS quando surgiram: a questão da diversidade que enriquece a igualdade (e liberdade) fundamentais desejadas e criam condição para mais solidariedade, a do cuidado que aperfeiçoa a justiça estrita, a superação de preconceitos – do machismo e racismo. A descoberta da dimensão dialogal da missão dos CIAS (...) deveria desabrochar no repensamento constante de nossas frentes de ação. É um desafio”. E quem apresenta esse desafio é o padre jesuíta Antônio Abreu, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Ele entende que “tanto o diálogo quanto a crítica se têm que munir com a reflexão e conhecimento da realidade, do processo histórico, e ser iluminados pelo que o seguimento de Jesus Cristo nos revela sobre o mundo e a nova humanidade que Ele instaura”. Para Antônio de Abreu, que também é economista, “certamente uma forma de gestão econômica que privilegia o lucro como fim e a hegemonia do capital financeiro sobre o atendimento às necessidades humanas na esfera real da produção, liminarmente não corresponde ao que desejamos como ambiente para a igualdade, liberdade e fraternidade”. E destaca: “a experiência da vida religiosa sugere (...) que não é tão simples ter – pessoal e comunitariamente – coração de pobre, dispondo de meios ricos de trabalho e convivendo com o discreto charme da gente “de bem”.
Antônio José Maria de Abreu é superior no CIAS-Ibrades (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento), de Brasília-DF, onde também é pesquisador e professor. É mestre em Economia pela University of Michigan e licenciado em Teologia pela Universidade de Innsbruck. Coordena a biblioteca do CIAS e escreve a história da casa. É coordenador de ministérios em meio popular.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O senhor pode nos contar os principais pontos da história do Ibrades?
Antonio Abreu - Refugiados do nazismo no Chile, jesuítas franceses e belgas fundaram em Santiago o ILADES , pensado como centro de formação de agentes de transformação social na América Latina, à luz da fé cristã. Uma das atividades principais do ILADES era o curso de um ano. Uma das conclusões mais evidentes sobre a América Latina no ILADES foi sua diversidade. De forma especial, o Brasil era diferente da Hispano-América. Daí, bispos brasileiros e jesuítas ligados ao ILADES (Pierre Bigo) ou à formação social no Brasil (Pedro Velloso ) desejaram um Centro para o Brasil tal como era o ILADES para a América Latina. Dom Hélder inventa o nome “IBRADES” para abreviar o nome descritivo que se dava ao ente a se fundar. Na fundação, não se discutiu o nome já usado pelos interessados. Em 1968, o IBRADES começou a existir por convênio entre a CNBB e a CRB , representadas pelas presidências, e a Companhia de Jesus no Brasil representada pelo presidente da CPJB (Conferência dos Provinciais Jesuítas do Brasil), na época o provincial do Nordeste. O CIAS já existente assumia o serviço à Igreja de “operar” o IBRADES. Em 1971 a Assembléia Geral da CNBB ratificava o acordo feito pela presidência; decisão importante considerando a invasão do Ibrades pela Polícia do Exército, em outubro de 1970. O IBRADES nasceu no “serviço à Igreja”. Ao longo de sua história, pela própria evolução da Igreja, da realidade nacional e das demandas que nos chegavam, foi-se tornando um serviço da Igreja à sociedade. O chamado “curso longo”, de início adaptou aquele do ILADES ao Brasil, uma terça musical abaixo na pauta acadêmica e acima na pastoral. A duração do curso, atendendo às demandas, passou de um ano (1969 a 1972) a quatro meses (a partir de 1973). Quando se encerrou no Rio, em 1996, era de pouco mais de três meses. Ao lado do “curso longo”, surgem, a partir de 1973, cursos breves (“mini-IBRADES”) nas dioceses, regionais, congregações, grupos de ação social que nos convidavam. Os cursos breves adaptavam seus conteúdos aos pedidos de quem os solicitava. Interagiam com o curso longo: deles surgiam candidatos àquele; ex-alunos do curso longo promoviam “mini-IBRADES”. A dinâmica evoluiu (nos breves de forma mais ágil e experimental) de cursos informativos para cada vez mais integrar elementos formativos. Conteúdos originalmente de introdução às Ciências Sociais e à formação sócio-econômica do Brasil, foram incorporando crescentemente temas mundividenciais (pensamento social cristão, Teologia, Filosofia) e de reflexão sobre a prática (”Pastoral Social”, trocas de experiências). O público alvo, hegemonicamente de “gente de Igreja” (padres, religiosas e religiosos, MEB , SAR , ações sociais diocesanas) evoluiu para pessoas atuantes fora do âmbito estritamente eclesiástico (e eclesial), ainda que a maioria comprometida a partir da fé e da formação da Igreja. A dimensão ecumênica foi sempre desejada, mas talvez menos presente do que desejaríamos.
IHU On-Line - Como foi o episódio de quando o IBRADES foi invadido pela Policia do Exército?
Antonio Abreu - Na segunda turma, em 1970, havia quatro alunos vindos da JOC (Juventude Operária Católica) ou ligados a ela. Ora, o Coronel Sucupira foi incumbido pelos órgãos de inteligência, de investigar e monitorar os movimentos da Ação Popular , organização surgida pela radicalização de jucistas (Juventude Universitária Católica). Imbuído inconscientemente de marxismo vulgar mecânico, o Coronel decidiu que juventude acadêmica não é revolucionária e sim a juventude trabalhadora; “o perigo” era a JOC. Descobriu nossos quatro alunos fazendo juntos este curso. Creu, então, ter detectado em suas palavras, “a célula mater da subversão católica no Brasil”; avaliação exagerada. Sucupira chamou o dia 7 de outubro de 1970: “a segunda batalha de Lepanto , em que as armas do Ocidente cristão mais uma vez debelaram a infiltração insidiosa e solerte vinda do Leste”. Nesse dia, algumas dezenas de homens da Polícia do Exército entraram no prédio da Bambina 115 - cercado inclusive nos terrenos dos vizinhos - e revistaram a casa. Quem foi encontrado no prédio foi tratado hostilmente, na velha lógica colonial de que todo súdito tem culpa no cartório até que se prove inocente. Coisas da casa foram pilhadas ou destruídas com descaso. Entre outras presas, levaram as matrizes mimeográficas da palestra que P. Ávila , a convite do general (quatro estrelas) Antonio Murici, haveria de fazer na Escola Superior de Guerra dias depois. Seriam em breve policopiadas às centenas em mimeógrafos militares se não tivessem sido levadas. Maços de números do Pravda recebidos por um jesuíta que lia russo foram descartados porque, como explicou um suboficial que “conhecia as letras, o alfabeto”: “não interessam, isso é grego”. O mais terrível da operação foi precisamente esta mistura de brutalidade e incompetência.
Dignidade da Igreja
O Irmão Caiuby, ecônomo da Província, conseguiu telefonar ao reitor da PUC e à CNBB. O governo provincial era em nosso prédio, no 4º andar. O telefone do Economato não constava na lista pública da TELERJ; não foi controlado. Os quatro alunos ligados à JOC foram presos. A cearense Irony, única mulher, casada com um líder operário católico carioca (hoje ambos falecidos), grávida, deu à luz na prisão à la Felicidade de Cartago. Outros alunos, ameaçados pelas investigações, se refugiaram no exílio. Foi aberto um Inquérito Policial Militar. A presidência da CNBB convocou a Comissão Episcopal de Pastoral e os cardeais para reunião de emergência. Dom Vicente Scherer (que não se pode chamar de progressista) defendeu a resistência à intrusão governamental militar: questão de dignidade da Igreja não aceitar intervenção drástica e sem fundamento claro, em organismo da CNBB. A firmeza de Scherer queimou os navios de quem pensava “minimizar o lamentável incidente”. Sua identificação e solidariedade objetivas conosco em parte compensavam a atitude de jesuítas bem pensantes, afetiva e efetivamente identificados com a elite sócio-econômica e suspeitosos e hostis para com o IBRADES. O Inquérito Policial Militar deu em nada, até porque alguns quatro-estrelas que desejavam suceder a Médici viam que valia a pena cortejar a Igreja e se interpuseram para “esvaziar o affair”.
IHU On-Line - O que de mais significativo o senhor aprendeu com o padre Fernando Bastos de Ávila? Qual foi seu principal papel?
Antonio Abreu - O P. Ávila vivia de sua maneira pessoal uma atitude tensional de que Santo Inácio é exemplo: a fidelidade carinhosa à Igreja hierárquica junta com a evangélica liberdade de crítica. Inclusive era estranhado por jesuítas que entendiam o contato com o episcopado como assunto de “relações públicas” curiais, algo como a postura correta e funcional de empresa bem gerida, ante fornecedores e poder público. Ávila ter conhecido Ivo Lorscheiter em Roma e criado com ele relação de mútua estima, ajudou para o papel junto à CNBB, de assessoria, sobretudo através das análises de conjuntura. Eram tempos em que os bispos sentiam necessidade de entender o processo da realidade nacional, para discernirem pastoralmente.
IHU On-Line - Como o IBRADES tem guiado suas ações hoje conciliando a proposta dos CIAS e a missão da Companhia de Jesus, com a realidade social, cultural e religiosa contemporânea?
Antonio Abreu - Além dos cursos, das análises de conjuntura e das assessorias, serviços do IBRADES, o CIAS no Rio de Janeiro (Centro João XXIII) promoveu seminários, jornadas, mesas redondas e encontros para ser espaço de diálogo do pensamento cristão com o mundo social e cultural de hoje. Procurava reunir não só várias disciplinas acadêmicas, mas – não raro - gente da prática com a do estudo. A receptividade e interesse pela nossa ação foram, em geral, maiores na Igreja e na sociedade em geral que na Companhia, ao menos na Província do Brasil Centro-Leste. É provável que isto venha em parte de não conseguirmos acertar as melodias e os compassos adequados para animar os coirmãos. Hoje sentimos mais abertura para a contribuição que poderíamos dar, mas não dispomos mais dos recursos humanos e materiais das décadas passadas. Para nós, é animador e esperançoso que a Companhia, em suas orientações das Congregações Gerais, revele sensibilidade para o novo no campo social, que se amplia para além da pauta sócio-econômica hegemônica nos CIAS quando surgiram: a questão da diversidade que enriquece a igualdade (e liberdade) fundamentais desejadas e criam condição para mais solidariedade, a do cuidado que aperfeiçoa a justiça estrita, a superação de preconceitos – do machismo e racismo. A descoberta da dimensão dialogal da missão dos CIAS, iniciada no Rio de Janeiro, deveria desabrochar no repensamento constante de nossas frentes de ação. É um desafio.
IHU On-Line - Como a missão da Companhia de Jesus e o trabalho dos CIAS no sentido de promover a justiça social se relacionam com a forma como a economia mundial está sendo conduzida? Não há uma contradição entre o capitalismo (na forma como o conhecemos) e a promoção da justiça social?
Antonio Abreu - As nossas diversas ferramentas combinam diálogo e crítica. Tanto o diálogo quanto a crítica se têm que munir com a reflexão e conhecimento da realidade, do processo histórico, e ser iluminados pelo que o seguimento de Jesus Cristo nos revela sobre o mundo e a nova humanidade que Ele instaura. A fé, como tal, não indica os rumos concretos que a organização do “outro mundo possível” deve tomar. Podemos supor fundadamente que estes rumos serão diversos, matizados, conforme as realidades históricas, geográficas, étnicas. Mas certamente uma forma de gestão econômica que privilegia o lucro como fim e a hegemonia do capital financeiro sobre o atendimento às necessidades humanas na esfera real da produção, liminarmente não corresponde ao que desejamos como ambiente para a igualdade, liberdade e fraternidade. O desafio é como descobrir passos, viáveis e seguros, que permitam alternativas eficazes e realistas na linha do que desejamos; ao mesmo tempo em que gerem bens e serviços e moldem, de forma nova, as relações entre as pessoas e grupos. Intuo que mais do que a análise crítica dos mecanismos de opressão - sem a deixar de lado - na missão dos CIAS, deve crescer a animação refletida de estruturas e métodos realistas, eficientes, capazes de se manter e se reproduzir para gerar o novo; que nos tornemos – sem deixar a penosa tarefa teórica – canteiros de trocas de experiência e de avaliação delas. Na crítica que deve ser feita ao capitalismo temos de nos acautelar com o vírus fariseu (ou maniqueu?) na tradição católica, de descobrir o “intrinsecamente mau” no Outro – do Islã à Reforma, do socialismo marxista ao capitalismo financeirizado. O “vírus”, entre outras coisas, dispensa argumentos objetivos e racionais e o diálogo franco, mesmo com os companheiros e aliados; divergências na compreensão dos mecanismos concretos da realidade se reduzem a um torneio de condenações adjetivosas ao “mal-em-si”; a lucidez não conta ponto. Tal postura, em geral, se associa com arrogância e etnocentrismo e é o contrário de semente do mundo novo.
IHU On-Line - Como compreender a promoção da justiça social considerando que as instituições de ensino jesuíticas são, em sua maioria, pagas?
Antonio Abreu - Pois é, excelente pergunta. O P. Luis da Grã, segundo provincial jesuíta do Brasil, é exemplo de resposta radical. Nas congregações provinciais do século XVI ele e Nóbrega - fraternalmente movidos pelo mesmo Espírito – se enfrentam a respeito. Da Grã julgava que no Brasil a Companhia não devia ter escolas para filhos dos colonos. (Mas assim, não teria sido expulsa mais cedo?). Da Grã raciocinava assim:
- ou os colégios são pagos: priorizamos a educação das famílias que podem pagar;
- ou somos subsidiados por El-Rei em Lisboa: dependemos dos provedores da fazenda real no Brasil, de seus interesses e amizades;
- ou El-Rei nos concede terras para “fundar” os colégios: vamos ter de administrá-las e ter escravos para operá-las.
Nóbrega acreditava que o bem que se podia fazer nos colégios compensava os riscos e problemas da solução a se encontrar. Para ele, era decisivo que nós, jesuítas, vivêssemos os Exercícios, tivéssemos coração (pessoal e comunitário) de pobre. No século XVIII, às vésperas da supressão , o Colégio do Morro do Castelo, no Rio de Janeiro, tinha a fazenda - primorosamente administrada - da Santíssima Cruz do Senhor Jesus, hoje o subúrbio de Santa Cruz. Graças ao trabalho dos negros em Santa Cruz, podia estudar de graça no Morro do Castelo o menino pobre, talentoso e esforçado, filho do padeiro – português. A contradição não é fácil de se administrar. A experiência da vida religiosa sugere (com todo respeito e carinho que Nóbrega merece), que não é tão simples ter – pessoal e comunitariamente – coração de pobre, dispondo de meios ricos de trabalho e convivendo com o discreto charme da gente “de bem”.
IHU On-Line - Como o senhor caracteriza o contexto econômico e social mundial da época da criação dos CIAS, que justificam seu surgimento? O que mais mudou de lá para cá?
Antonio Abreu - Os anos do surgimento dos CIAS são de reconstrução da Europa e de independências no Terceiro Mundo. A renovação bíblica, patrística e litúrgica, que vai desabrochar e se generalizar no Vaticano II , exatamente por sua eclesiologia renovada, começa a germinar em nova postura da Igreja frente ao mundo. O sucesso da ajuda internacional na reconstrução e a “descoberta” (pelos cristãos de vanguarda) das desigualdades existentes no mundo suscitam a meta de se ajudarem os povos “atrasados” a superarem o “subdesenvolvimento”. A imagem ainda é a de que estes países estão para aqueles industrializados, como o poldro para o cavalo, num estágio “anterior” da evolução comum. Décadas mais tarde fica claro que a relação é mais como a do jumento para o cavalo: espécie parecida, mas outra. Não deixa de existir também em muitas cabeças eclesiásticas o desejo de uma resposta positiva ao avanço do comunismo, que se expande não só pelas armas russas. Pessoalmente, tenho uma experiência traumática com um superior da Companhia – “anticomunista positivo” animado e transparente - de sua insensibilidade (bem intencionada) para com a diversidade de nossos povos e a necessidade de reflexão autônoma a respeito de nossas realidades. O P. Geral Janssens havia enviado um visitador para animar o trabalho social nas províncias da América Latina. Foi avisado que ele entrevistaria jovens jesuítas voluntários para o trabalho social. Eu, noviço, sonhava com realizar a paixão de meu pai pela dignidade humana, iluminado pela fé de minha mãe no amor de Deus. Conversava com um companheiro, paulistano, advogado e ex-jucista (que depois deixou a Companhia), sobre um serviço novo na PUC-Rio ou na FEI , para formar cristãos a partir da fé para a ação social e política. Então fui alegrinho e esperançoso falar com o visitador. Cortou-me rente: “Oigo que Usted es más bien un intelectual. En América Latina solo nos hacen falta hombres de acción. Lo que hay que pensar, los franceses y los belgas ya lo han pensado todo” .
O que mudou de lá para cá?
Primeiro, crescentemente se descobriu que o problema do “subdesenvolvimento” era mais o do “desenvolvimento desigual associado”, com mecanismos políticos expostos; não era só econômico, mas ainda mais social e político. A seguir, cresceu a consciência de que para chegarmos ao “outro mundo possível” (e desejável) não bastava mudar mecanicamente as estruturas socioeconômicas (que não deixam de ser decisivas), mas se impunha a revolução cultural do respeito à diversidade de gênero, étnica e de cultura, superação das desigualdades nestas relações. A justiça socioeconômica e de direitos iguais continuava importante, mas se completava por uma nova ética do cuidado.