Edição 257 | 12 Mai 2008

Índio e “homem branco”: duas humanidades diferentes que se encontraram em determinado tempo e espaço

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Graziela Wolfart

Na opinião do sertanista Sydney Possuelo, a atual política indigenista brasileira está distorcida, distanciando-se dos interesses das populações indígenas

“Só se formam cidadãos respeitando-se os princípios que estão estabelecidos na constituição e nos direitos humanos; o respeito ao diferente; a solidariedade aos mais desprotegidos e justiça aos que viram tombar seus antepassados em defesa de suas terras imemoriais. A nossa sociedade foi arquitetada para nós, digo, os brancos. Ela não abre espaço para vários segmentos que a compõe, principalmente os povos indígenas.” A afirmação é de Sydney Possuelo, renomado indigenista e sertanista brasileiro. Ele aceitou conceder a entrevista que segue, por e-mail, para a IHU On-Line, onde fala sobre a situação dos povos indígenas brasileiros e sobre os conflitos envolvendo os índios e o “homem branco”. Sydney Ferreira Possuelo iniciou sua formação em São Paulo, aos 17 anos, trabalhando com os sertanistas brasileiros Cláudio e Orlando Villas Boas. Foi nomeado presidente da Funai em 1991, onde trabalhou até 2006. Voltou sua gestão para a demarcação de terras, sobretudo dos Yanomami, e estabeleceu forte diálogo entre o governo e organizações não-governamentais, convocando ativistas para compor seus quadros e firmando parcerias com essas entidades. Já foi chamado “guardião dos povos invisíveis” por seus mais de 40 anos dedicados à causa dos povos indígenas isolados na Amazônia. Ele pode ser visto no documentário Serras da desordem, de Andrea Tonacci, que aborda a tragédia vivida pelo índio Carapiru, único sobrevivente do massacre de seu grupo familiar, em 1977, tornando-se nômade até ser encontrado por Sydney Possuelo e Wellington Gomes Figueiredo. Sobre o filme, foi publicado o artigo “Um olhar contra a violência”, de André Dick, doutor em Literatura Comparada, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e revisor das publicações do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. O material integra a edição número 256, intitulada O mundo do trabalho no Brasil de hoje. Mudanças e novos desafios, e também pode ser conferido na nossa página eletrônica: www.unisinos.br/ihu . Confira a entrevista:

IHU On-Line - Como o senhor avalia a política indigenista brasileira e os órgãos de apoio aos índios (Funai, Cimi etc.)?
Sydney Possuelo
- Há uma incoerência na política do governo quando ele, tendo uma Fundação Nacional do Índio, a sufoca quase à exaustão, não lhe repassando orçamento, não efetuando novas contratações, ao mesmo tempo em que distribui bilhões a organizações não governamentais, as quais têm sido alvo de CPI para investigar a lisura na aplicação dos recursos. O conjunto das disposições legais que determinam a política indigenista brasileira sempre foi visto como um dos mais avançados nas Américas. Entretanto, atualmente a política aplicada está distorcida, distanciando-se dos interesses das populações indígenas.
 
IHU On-Line - Como entender a postura do Exército brasileiro em relação às terras indígenas já demarcadas pelo governo? Qual é a dificuldade de entender que demarcar a terra dos índios não fere a soberania nacional?
Sydney Possuelo
- Talvez porque, quando se passa a vida inteira ao lado das armas, passamos a acreditar que elas, ou sua força, são a solução para todas as divergências. 
 
IHU On-Line - Qual é a sua opinião sobre o que vem acontecendo em Raposa Serra do Sol? O governo tem agido da melhor maneira? Como entender a atitude dos arrozeiros, que insistem em não sair de uma terra que não é deles? E como os índios se sentem nessa situação?
Sydney Possuelo
- O governo demorou muito para demarcar a terra indígena e o tempo que passa, por omissão, descaso, ou pela eterna morosidade da justiça, ou dos entraves que os políticos arquitetam, trabalham sempre a favor dos não-índios, fornecendo-lhes tempo para consolidarem suas invasões e se justificarem. Raras são as grandes extensões de propriedades particulares, cujas origens não estiveram envolvidas com violência e grilagem de terras. É por isso que os chamados “brancos” não querem deixar as terras que não lhes pertencem, porque acreditam que o processo acima descrito lhes será favorável.

IHU On-Line - Em que sentido a demarcação da reserva dos Yanomami pode servir de exemplo para o que vem acontecendo em Raposa Serra do Sol?
Sydney Possuelo
- Como presidente da Funai, conduzi o mais intenso e substancioso processo de demarcação de terras indígenas até então efetuado. Num ano, conseguimos duplicar a superfície das terras indígenas no Brasil. Buscávamos cumprir a Constituição de 1988 que, como as anteriores, determinava que todas as terras indígenas deveriam ser demarcadas no prazo máximo de cinco anos. Passaram 16 anos após as demarcações e a terra Yanomami e a Amazônia continuam tão brasileiras como antes, apesar de que, quando a demarcávamos, a gritaria era exatamente igual e efetuada pelos mesmos que hoje não querem demarcar Raposa Serra do Sol.
 
IHU On-Line - Quais são os caminhos para garantir a cidadania e a dignidade aos povos indígenas? Enquanto isso não acontece, quais as conseqüências psicológicas que os índios sofrem?
Sydney Possuelo
- Só se formam cidadãos respeitando-se os princípios que estão estabelecidos na Constituição e nos direitos humanos; o respeito ao diferente; a solidariedade aos mais desprotegidos e justiça aos que viram tombar seus antepassados em defesa de suas terras imemoriais. A nossa sociedade foi arquitetada para nós, digo, os brancos. Ela não abre espaço para vários segmentos que a compõe, principalmente os povos indígenas.
 
IHU On-Line - Em que aspectos os índios mais podem ensinar o “homem branco”, pensando sobre a forma de lidar com a natureza e com o poder/dinheiro? Quais as maiores divergências culturais entre índio e “homem branco”?
Sydney Possuelo
- Vários “antigos” diziam que são duas humanidades diferentes que se encontraram em determinado tempo e espaço. Penso que compete a mais forte, a que se diz mais “inteligente e civilizada”, a atitude ponderada, o estender a mão, a iniciativa de conciliação, a solidariedade e o gesto de justiça.

IHU On-Line - O senhor escreveu recentemente que “estaremos na contramão da história se não reconhecermos os direitos dos povos que precederam a invenção dos brasileiros”. Qual é a origem da construção histórica que se fez dos povos indígenas? Como se formou a imagem dos índios que aprendemos na escola?
Sydney Possuelo
- Os conquistadores justificaram suas atitudes durante a conquista da América através de um mar de preconceitos infundados que forneciam o respaldo moral para a extrema violência que empregaram. Com o passar do tempo, fomos incorporando na sociedade que então se iniciava os estereótipos que durante a conquista a Coroa e depois a República, sempre com a participação da Igreja Católica, ajudaram a difundir. Faz alguns anos que o Canadá devolveu ao povo indígena Inuit a extensão de dois milhões de Km2 no Território do Noroeste do Canadá. O que me chamou a atenção foi um pedido de desculpa que acompanhou a devolução. O governo canadense pediu desculpas pela violência e pelas injustiças que haviam sido cometidas contra aqueles povos durante a conquista. Mais recentemente, o governo da Austrália procedeu da mesma forma e, através de seu Primeiro Ministro, apresentou um formal pedido de perdão aos aborígenes australianos. Observe como são tratados os povos autóctones da Nova Zelândia, pelos quais o povo e governo têm admiração e respeito. Enquanto isso, aqui, do outro lado do mundo, estamos cada vez mais na contramão da história, negando aos povos indígenas as suas terras tradicionais e, ainda, lamentavelmente, matando-os a tiros como aconteceu recentemente na região de Roraima.
 
IHU On-Line - O que de mais marcante o senhor aprendeu com a experiência ao lado do índio Carapiru? O que a história dele lhe ensinou de mais significativo sobre os povos indígenas e sobre como os "outros" se relacionam com o índio (e vice-versa)?
Sydney Possuelo
- Carapiru é uma lição de vida. Seu drama é tão triste como o de Jó. Perdeu todas as referências da sua vida e ficou condenado vagando solitário, por dez anos, na selva. Carapiru, despojado de tudo, sem ter absolutamente nada mais do que seu arco e sua flecha, não se entregou ao desespero, não ficou demente, não cometeu vilanias ou atrocidades. Antes, manteve-se tranqüilo e procurou viver como que lembrando a todos nós que o nosso bem maior é a vida e tudo mais é efêmero e passageiro.

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