Edição 257 | 12 Mai 2008

“O índio é um sujeito que foi vitimado pelo processo colonial, o que não o inviabiliza de ser sujeito”

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Graziela Wolfart

Paula Caleffi fala sobre a importância do respeito pela diversidade cultural indígena

Sobre a origem da imagem construída do índio em nossas sociedades, a professora e pesquisadora Paula Caleffi acredita que “temos um pouco a idealização das populações indígenas como populações que seriam a infância da humanidade. Seriam populações que pertenceriam a outro tempo, não o tempo presente, e que teriam dado origem a populações mais avançadas, mais evoluídas, como a civilização ocidental”. Em entrevista concedida pessoalmente à IHU On-Line, Paula identifica hoje “um uso político dessa idealização do índio”. Deslegitimando a existência de uma identidade indígena, “não precisa haver atribuição de terras, nem preocupações sociais com essa parcela importante da sociedade brasileira”, afirma. Paula Caleffi possui graduação em História, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e doutorado em História da América, pela Universidad Complutense de Madrid (1990). É professora da Unisinos e, atualmente, diretora da Unidade Acadêmica de Graduação Unisinos. Confira a entrevista:

IHU On-Line – Qual é a contribuição dos povos indígenas para a construção da identidade latino-americana? Como a senhora descreve essa identidade a partir da cultura indígena?
Paula Caleffi
– As identidades sempre são vistas frente a aspectos maiores. Se estivermos na Europa ou na Ásia, existe uma identidade latino-americana. Se olharmos a partir do Brasil ou de Porto Alegre, existem outras identidades, que não se contrapõem, mas se somam. Então, sim, existe uma identidade latino-americana e a contribuição das culturas indígenas é diversa nessa questão. O brasileiro, por exemplo, se sente latino-americano quando está fora do continente “América Latina”, e sente muito pouco a contribuição indígena na formação da sua identidade. Enquanto isso, em países como o Equador e a Bolívia, a contribuição é mais forte, pois neles a própria questão numérica indígena é maior. Temos teóricos ocidentais brasileiros que levantaram a questão das três raças (europeu, escravo e indígena), compondo uma identidade brasileira. Mas essa é uma visão intelectual sobre a formação do povo brasileiro.

IHU On-Line - Como a historiografia latino-americana tem contribuído para o registro da cultura e da história das populações indígenas?
Paula Caleffi
– A historiografia especializada tem contribuído bastante. Tem-se avançado muito sobre o paradigma da diversidade cultural, do respeito à diversidade cultural, e essa é uma bibliografia que está muito bem nas suas linhas de análise e na sua contribuição em relação ao reconhecimento da diferença e da necessidade de cidadania das populações indígenas. No entanto, temos um outro tipo de bibliografia não especializada, mais trabalhada por leigos ou uma bibliografia de divulgação. Essa, infelizmente, é ainda permeada por preconceito e desconhecimento do que é uma diversidade cultural, uma convivência entre povos com diferentes culturas.

IHU On-Line - Como entender o processo de “idealização dos indígenas e de suas sociedades”, e sua “não aceitação enquanto sujeitos históricos”? Qual é a origem da imagem indígena que foi construída em nossa sociedade?
Paula Caleffi
– O índio é um sujeito que foi vitimado pelo processo colonial, o que não o inviabiliza de ser sujeito. Ele sempre releu o processo colonial a partir do seu paradigma cultural. Temos um pouco a idealização das populações indígenas como populações que seriam a infância da humanidade. Elas pertenceriam a outro tempo, não ao tempo presente, e teriam dado origem a populações mais avançadas, mais evoluídas, como a civilização ocidental. Em realidade, essa é uma percepção de que a cultura é cristalizada e não é assim. A cultura é um processo. Esses indígenas que aqui estão também evoluíram e modificaram sua cultura, assim como a cultura ocidental se modificou. Eles são sujeitos contemporâneos. Os indígenas que hoje coexistem conosco não têm reconhecida a sua identidade. As pessoas colocam a identidade em cima dos elementos de divertimento, afirmando que, por exemplo, o índio não anda mais nu. Bom, o índio não anda mais nu porque se ele andar será preso, pois está convivendo com uma outra cultura. Então, as pessoas deslegitimam a existência de uma identidade indígena, nesse sentido. Assim sendo, não precisa haver atribuição de terras nem preocupações sociais com essa parcela importante da sociedade brasileira que é a parcela indígena.

IHU On-Line - Como todas as culturas são mutantes, quais são os caminhos para que os índios evoluam culturalmente, mas preservem os traços culturais das suas tribos?
Paula Caleffi
– Essa é muito mais uma preocupação não-indígena do que indígena. Para eles, a questão da manutenção da identidade é algo muito tranqüilo. Eles olham para o mundo a partir de uma teia de significados culturais original, que não é a nossa. E também há diferenças entre as culturas indígenas. Os Kaingang têm uma teia de significados culturais. Os Guarani têm outra, assim como os Terena. As populações indígenas também são diferentes entre si. O que é importante para elas e para todas as pessoas é que tenham assegurada a cidadania e as condições básicas para uma vida digna. Ou seja, acesso à educação, à saúde, à terra. Havendo essas condições básicas de vida, as populações indígenas irão muito bem, seguindo seus próprios cursos e suas próprias leituras de realidade.   

IHU On-Line - Qual é a sua opinião sobre as missões religiosas com os índios da América Latina? Em que medida elas interferiram na cultura dos índios?
Paula Caleffi
– Não podemos fazer uma análise das missões religiosas com a cabeça que temos atualmente. Precisamos entendê-las no momento histórico da época. Elas foram importantíssimos instrumentos das coroas ibéricas e propiciaram um terceiro espaço de vida para os indígenas. Aqui, no caso, falo das Missões Guarani. De um lado, temos, no Império Colonial Português, a instituição da escravidão indígena, e, do outro lado, do Império Colonial Espanhol, a instituição da encomienda.  Essas instituições não estão preocupadas nem com a manutenção da cultura nem com a manutenção do corpo físico do indígena. Elas olham o indígena exclusivamente como mão-de-obra. Na formação dessas fronteiras, entra uma terceira possibilidade de vida para esses indígenas que são as Missões Jesuíticas. Elas eram muito mais amenas, com uma negociação de aspectos de civilização que se trazia da Europa e que os jesuítas na época consideravam que iriam qualificar a vida do indígena, mas também não desnaturalizando totalmente as questões indígenas, como a própria língua guarani, que era falada nas missões. 

IHU On-Line - Ao observar os costumes dos índios, o que a senhora mais aprendeu sobre a forma de eles se relacionarem entre si, com a natureza e com os outros (no caso com o homem branco)?
Paula Caleffi
– Os povos indígenas são populações sem escrita. Essas populações trabalham a partir da transmissão oral das suas tradições. Nessa transmissão oral e nesse cosmos por eles vivenciados, não existe divisão entre sagrado e profano. Então, o aprendizado é geral. Mas aprendi com eles como é possível olhar para o mundo e entendê-lo de uma forma diferente da nossa. Pude entender que existe um mundo totalmente sacralizado, que não é dividido entre sagrado e profano, no qual as tradições orais são absolutamente respeitadas e a memória (e, por conseqüência, os anciãos) tem um papel importantíssimo. O principal aprendizado é que a civilização e a cultura ocidental não criaram nem a única forma de entender o mundo nem a forma mais importante. 

IHU On-Line - A senhora coordenou a gravação de um CD com um coral de crianças guaranis. O que guarda de mais fascinante desse trabalho? Qual é a importância da música e do canto para as populações indígenas? Há alguma relação com a espiritualidade, a mística e a fé?
Paula Caleffi
– Toda a música guarani é transmitida, não tem autoria. A música é “recebida” por algum índio dos ancestrais, dos heróis culturais, e é tecida em uma outra instância, que não a nossa instância do corpo físico, sendo transferida para as populações indígenas que estão nesse momento materializadas na terra. A música é da instância do sagrado. Uma vez, em conversa com os Guaranis, eles disseram que os ancestrais deles, que não estão nesse mundo, estão numa terra onde se canta todo o tempo. Então, a idéia do paraíso do Guarani é a de um lugar onde a música é permanente.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição