Edição 257 | 12 Mai 2008

A garantia do direito à diferença

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Graziela Wolfart

Na história do país, as leis relativas aos direitos indígenas foram cumpridas apenas enquanto interessavam às elites brasileiras, afi rma Antonio Brand

Para o antropólogo Antonio Brand, “desde 1988, estamos buscando superar as profundas marcas que ficaram dos 500 anos de política indigenista voltada para a integração dos povos indígenas”, sendo que essa “integração” é entendida como a “desintegração dos povos indígenas”. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele acredita que “há um largo caminho a ser percorrido para que possamos falar em respeito à diferença e em interculturalidade, pois não há como falar em respeito à diferença enquanto seguimos atropelando os direitos indígenas, em especial o direito à terra”. E dispara: “Os conflitos pela terra e o empenho das elites econômicas e políticas e do próprio judiciário em dificultar a demarcação das terras indígenas, ao total arrepio das leis e recorrendo a argumentos próprios das ditaduras reacionárias, não podem ser dissociados da questão de fundo da superação da sociodiversidade”. Antonio Brand é graduado em História, pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande. Tem doutorado na mesma área, pela PUCRS. É professor da Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande, MS, onde desenvolve diversos projetos de pesquisa na área de História, com ênfase em História da América, atuando principalmente nos seguintes temas: educação indígena, território, população Kaiowá-Guarani e sustentabilidade.

IHU On-Line - Para o senhor, o que é ser índio brasileiro hoje? Quais são os principais dilemas dos povos indígenas atuais?
Antonio Brand
- Para compreender essa questão, é importante lembrar que desde 1988 estamos buscando superar as profundas marcas que ficaram dos 500 anos de política indigenista voltada para a integração dos povos indígenas, entendendo-se essa integração como superação da distintividade étnica. Ou, em outras palavras, a integração enquanto desintegração dos povos indígenas. A Constituição de 1988, pela primeira vez na história brasileira, reconhece aos índios o direito de seguirem sendo o que são, povos etnicamente diferenciados, cabendo ao Estado não mais legislar sobre a sua integração, mas garantir-lhes o direito à diferença. A incorporação dessa novidade no texto constitucional de 1988 foi resultado de uma intensa mobilização dos próprios povos indígenas. No entanto, passados 20 anos, está cada vez mais claro que a elite econômica brasileira, os políticos dos diversos partidos, o próprio judiciário e, especialmente, os militares, não concordam com essa mudança e vem mostrando claramente sua firme disposição em não cumprir o que está previsto na constituição. Assistimos, nos últimos dias, à plena retomada de velhas bandeiras da ditadura militar, buscando caracterizar a demarcação de terras indígenas em algumas regiões como ameaça à integridade do país. Esses setores vêm deixando de lado, cada vez mais, de forma clara, qualquer escrúpulo em afirmar a sua decisão em ignorar os direitos indígenas definidos na Constituição. Aliás, na história do país, as leis relativas aos direitos indígenas foram cumpridas apenas enquanto interessavam às elites brasileiras e foram ignoradas, como acontece nesse momento, quando não interessava seu cumprimento. Os povos indígenas vêm afirmando, com crescente clareza (e visibilidade), não só no Brasil, mas em toda a América Latina, sua identidade indígena. Mas tem encontrado barreiras quase intransponíveis para afirmar seus direitos sobre os territórios. E como seguir nessa perspectiva sem as suas terras?

IHU On-Line - Como os povos indígenas convivem com as leis do “homem branco”? O direito do índio a “ser diferente” é respeitado? 
Antonio Brand
- Uma importante antropóloga, Aracy Lopez,  afirmou, certa vez, que, frente à questão da diferença, o Estado brasileiro tinha feito meia conversão, apenas: o direito à diferença é reconhecido no âmbito constitucional e em outras disposições legais, mas ignorado na implementação, ou seja, na execução das políticas públicas. Não se demarcam os territórios necessários para a sua vida, e ignora-se a especificidade da cultura indígena (com raras exceções) na implementação dos programas de saúde, de desenvolvimento e outros.

E, nesse sentido, creio importante destacar a omissão do próprio judiciário. Estamos concluindo, aqui na UCDB , um levantamento, em parceria com o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), dos processos envolvendo índios presos no Mato Grosso do Sul. Uma das questões que ficou clara nesse levantamento é o fato do judiciário, em suas decisões, ignorar totalmente de que se trata de índios e, portanto, amparados por uma legislação especial, e ignorar, inclusive, a própria Convenção 169, da OIT, da qual o Brasil é signatário. Creio que há um largo caminho a ser percorrido para que possamos falar em respeito à diferença e em interculturalidade, pois não há como falar em respeito à diferença enquanto seguimos atropelando os direitos indígenas, em especial o direito à terra.

IHU On-Line - Como está a situação dos índios do Mato Grosso do Sul, em relação às mortes por desnutrição, à fome, à miséria? Qual é o impacto psicológico que esse cenário provoca entre os índios?
Antonio Brand
- O Conselho Indigenista Missionário (Cimi)  acaba de divulgar o levantamento referente à violência que atingiu os povos indígenas em 2007. Nesse levantamento, constata-se um aumento de 99% nos casos de assassinatos entre os Kaiowá e Guarani de Mato Grosso do Sul. É muito grave o fato de que a maior parte dessas mortes resulta de conflitos internos, ou seja, ocorreram entre os próprios índios. Isso indica um profundo mal-estar, uma grande tensão no interior dessas comunidades, resultado direto do confinamento a que esses povos foram, historicamente, submetidos. Cada morte violenta gera e aprofunda o processo de desintegração interna. Não há, portanto, como pensar em futuro para esses povos sem os territórios, como, aliás, vem claramente afirmado no texto constitucional. No entanto, percebe-se que as dificuldades interpostas, especialmente pelo judiciário, tornam a demarcação das terras indígenas cada vez mais difíceis. Por isso, infelizmente, é possível prever um aumento cada vez maior dessa violência.
 
IHU On-Line - Como o senhor define a visão de mundo de um índio? O que um índio pensa sobre a vida, a morte, a natureza e sobre a espiritualidade e a mística? Como esses valores se relacionam com os valores da cultura ocidental?
Antonio Brand
- As populações indígenas concebem conceitos distintos de natureza, sendo que suas cosmologias explicitam como homens, plantas e animais interagem e se articulam. As etapas que marcam o plantio e a colheita do milho, entre os Kaiowá, são acompanhadas por um ciclo de rituais e rezas, destacando-se a cerimônia do batismo do milho (avatikyry), sinalizando para a interdependência entre organização econômica, social e religiosa. Para essas populações, a esfera da economia e das relações sociais e religiosas são inseparáveis. Por isso, a questão de fundo dos territórios e a luta pela preservação da biodiversidade é tão importante para o futuro desses povos, frente ao longo e sistemático processo histórico de busca de imposição de modelos monoculturais de desenvolvimento. Por isso, cada vez mais a luta pela sociodiversidade tende a se encontrar e articular com as lutas pela biodiversidade. Até hoje, os povos indígenas seguem orientando-se por concepções distintas de economia, de uso do solo e de desenvolvimento. Seguem, por isso mesmo, sendo considerados como um sinal de atraso.
 
IHU On-Line - Como entender o conflito pela posse de terras entre índio e homem branco? O que isso significa considerando a importância que a terra e o território têm para os índios?
Antonio Brand
- Os conflitos pela terra e o empenho das elites econômicas e políticas e do próprio judiciário em dificultar a demarcação das terras indígenas, ao total arrepio das leis e recorrendo a argumentos próprios das ditaduras reacionárias, não podem ser dissociados da questão de fundo da superação da sociodiversidade. A presença dos povos indígenas segue sendo vista como uma ameaça à integridade do país e aos interesses das elites brasileiras. Todos sabem muito bem que o confinamento imposto aos Guarani e Kaiowá, em Dourados, inviabiliza a vida desse povo e significa de fato um genocídio. A passividade e omissão frente a tão grave problema permite concluir que é isso que se deseja.

IHU On-Line – Qual é sua opinião sobre o que vem ocorrendo em Raposa Serra do Sol? O governo tem se posicionado da melhor forma?
Antonio Brand
– Inicialmente, o governo federal mostrou-se demasiadamente indeciso, atrasando ao máximo a desintrusão da área. Permitiu, dessa forma, que os invasores se organizassem e se articulassem contra a medida. É, no entanto, profundamente, lamentável que, nesse caso, alguns militares sigam se prestando ao triste papel de defensores de pessoas e grupos que vem atropelando os direitos indígenas e desrespeitando claramente a própria Constituição. Não é possível, também, entender o posicionamento do Judiciário a quem caberia, teoricamente, garantir o cumprimento do que determina a Constituição.
Os arrozeiros, que ocuparam a maior parte das terras, as quais, hoje, reivindicam como suas, quando o processo de demarcação já estava definido e, portanto, tinham plena consciência de que se tratava de terras indígenas, foram a público afirmar que estavam contratando pistoleiros e comprando armas para resistir a uma ação da polícia federal. Eles não só ficaram impunes, mas tiveram, nessa ação totalmente ilegal, o apoio de setores do exército e do judiciário. Esse episódio mostra o quanto ainda é difícil aos povos indígenas terem acesso aos seus direitos como cidadãos brasileiros. Seguem, efetivamente, como cidadãos de segunda categoria, cuja presença em regiões de fronteira “põem em risco a soberania do país”.
 
IHU On-Line - Quais são as conseqüências da falta de terra/pouca terra para as populações indígenas? A perda de autonomia para produzir o próprio sustento é causadora de quais problemas?

Antonio Brand - Já destaquei acima as conseqüências da perda dos territórios para esses povos. No caso dos Guarani e Kaiowá, em Mato Grosso do Sul, já estamos no quinto ano com programas de segurança alimentar, ou mais exatamente, de fornecimento de cestas básicas. Uma ação emergencial, para conter a desnutrição acabou sendo transformada em política de longo prazo. Isso é extremamente grave porque, nesse momento, qualquer interrupção no fornecimento desses alimentos provoca conseqüências cada vez mais graves. Ou seja, as comunidades indígenas estão cada vez mais profundamente dependentes desse tipo de ação, que sempre dependerá da boa vontade do governante. Por outro lado, o custo desses programas sociais não é pequeno e tende a aumentar cada vez mais, sem qualquer perspectiva de autonomia. Ao contrário, que futuro pode ser visualizado, especialmente pelos jovens, nesse contexto? Viver de cestas básicas? E tudo isso para evitar a demarcação de terras, que junto com um programa de assistência técnica, seria a única possibilidade de restituir a esses povos sua capacidade de voltarem a produzir seus alimentos. Essa dependência é sobremaneira grave se tivermos em conta que, segundo abundantes fontes históricas do período colonial e pós-colonial, os Guarani foram grandes produtores de alimentos.

IHU On-Line – Qual é a importância do incentivo ao ingresso de índios nas universidades e na lei sancionada em março pelo presidente Lula, que obriga o ensino da história e da cultura indígena no ensino médio e fundamental?
Antonio Brand
- Eu coordeno um interessante programa, que conta com recursos da Fundação Ford, de apoio aos acadêmicos índios de Mato Grosso do Sul em suas trajetórias nas universidades. Mato Grosso do Sul tem cerca de 500 acadêmicos índios. A Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul é talvez a única que tem cota para estudantes indígenas (10%). O Programa Rede de Saberes reúne, além da UCDB, a Universidade Estadual e as duas Universidades Federais de Mato Grosso do Sul. Vem crescendo o interesse das comunidades indígenas pelo estudo. Reivindicam com crescente força escolas de ensino fundamental e médio de qualidade, empenham-se em ter professores índios bem formados e buscam cada vez melhor qualificação técnica. Essas demandas indicam a percepção indígena da importância do estudo em sua luta por melhores condições de vida, ou, em outros termos, em sua luta por maior autonomia frente ao entorno regional que historicamente vem negando seus direitos. Estão se capacitando cada vez mais, sem abrirem mão de suas bandeiras históricas de luta pela terra. A perspectiva para a maior parte dos estudantes não é mais buscar emprego fora de suas comunidades, mas retornar como professores, técnicos em saúde e outras áreas. Quanto à lei sobre o ensino da história indígena, penso que tardou demais. Porém, mesmo assim, o Ministério da Educação e as Secretarias de Educação têm pela frente uma tarefa difícil, que é preparar material didático e formar professores para essa tarefa.

IHU On-Line - O que falta ainda para garantir dignidade às populações indígenas e para que a sociedade brasileira acolha os índios como parte do cotidiano e da teia social?
Antonio Brand
- Penso que falta implementar o que vem determinado na Constituição e na legislação decorrente. Quero destacar duas ações que considero mais relevantes: resolver a questão das terras indígenas e investir em programas de formação, para que esses povos voltem a ter condições de sustentabilidade, fundamental para a sua autonomia, além de  se investir pesado numa melhor informação da população sobre a relevância das culturas indígenas e suas inéditas contribuições ao país. Nesse sentido, a lei acima citada representa uma iniciativa importante, mas não basta. Infelizmente, os meios de comunicação, especialmente no âmbito regional, contribuem mais para desinformar, ou melhor, para confirmar estereótipos e preconceitos do que para informar e esclarecer.

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