Edição 256 | 28 Abril 2008

O preço do silêncio: mulheres que se calam sofrem conseqüências violentas nas relações conjugais

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Bruna Quadros

“Onde a voz cala, no sentido do dizer e de suportar escutar o outro, o corpo e as relações padecem”, afirma Sônia Maria Bley, sobre o comportamento silencioso de algumas mulheres, diante de agressões no âmbito familiar

Na próxima terça-feira, dia 29 de abril, acontece a exibição do filme O piano (1993), de Jane Campion. A atividade integra a programação do evento Cinema e Saúde Coletiva III: mulheres e seus múltiplos desafios. Quem conduz o debate posterior com o público é a psicanalista Sônia Maria Bley, psicóloga e pós-graduada em Filosofia da Linguagem e Teoria do Conhecimento pela Unisinos. Além de ser diretora clínica da Associação Clínica Freudiana de São Leopoldo, tem consultório de psicanálise em São Leopoldo e Novo Hamburgo. Ao falar sobre o filme O piano, na entrevista que segue, concedida por e-mail, ela afirma que “o feminino e o masculino, no filme, manifestam não estarem livres de uma formatação cultural da época. Para o homem se tratava de colocar uma mulher ‘sem voz’, em todos os sentidos, no lugar preconcebido e sem brechas do que seria uma esposa”. E, sobre a mudez da personagem central da trama, Sônia declara: “Onde a voz cala, no sentido do dizer e de suportar escutar o outro, o corpo padece e as relações padecem”. Confira a entrevista: 
Sônia Maria Bley

IHU On-Line – Em O piano, a personagem central decide parar de falar aos seis anos de idade. Podemos atribuir esta opção ao rumo que a sua vida tomou, tendo em vista, também, mais tarde, que ela se submete a um casamento arranjado, o que muda completamente o seu destino?
Sônia Bley
– Pode-se pensar que o que vem depois, por exemplo, quando suporta começar a ouvir a sua voz, reordena o destino de até então, que incluía o mutismo co-extensivo ao casamento arranjado. Ou seja, só é possível supor que o seu deixar de falar aos seis anos de idade tenha sido da ordem do emudecimento, diante de algo onde a fala perde o valor, ou fica supervalorizada num “sem-lugar”, a não ser como denúncia de impotência. Nesse sentido, seu destino muda quando ela consegue “desarranjar” o casamento. Porém, essa sua grande expressão, mesmo não veiculada, propriamente por uma fala, cobra seu alto preço.

IHU On-Line - Como você avalia a questão da liberdade feminina que, em O piano, ficou sufocada pela opressão exercida pela figura masculina?
Sônia Bley
- O feminino e o masculino, no filme, manifestam não estarem livres de uma formatação cultural da época. Para o homem, se tratava de colocar uma mulher “sem voz”, em todos os sentidos, no lugar preconcebido e sem brechas do que seria uma esposa. A ele, portanto, não cabia a liberdade de viver uma relação de trocas com a mulher enquanto sujeito e sim cumprir um protocolo que incluía, igualmente sem furo, uma concepção para si, de homem voltado para suas ambições. Tanto que, para o marido, não fazia diferença se a esposa era muda ou não. Mesmo porque a primeira e única manifestação peculiar a ela, de levar o piano consigo, não teve e, talvez, não tivesse acolhimento, mesmo que ela falasse. Então, esse silêncio era providencial para sua condição de mulher, dentro daquele modelo de casamento. O lugar estava pronto para ambos, bastava conformar-se a ele. O marido diz, num dado momento: “...eu pretendia amar você...”, e tudo iria para seu lugar previamente delimitado. O que desconcerta, no entanto, é que a mulher destoa do cenário pronto, reduzido e montado para o casamento, ou seja, ela fala demais, nesse sentido, mesmo no seu emudecimento. Isso, por não ter lugar de fala nem para o homem, custa a ela ter sido violentamente cortada de uma parte de seu corpo que, de alguma forma, dava seu “toque” de manifestação singular. E quando, minimamente, essa leitura do que seria o desejo dela pôde ser feita pelo marido, ele supôs que isso teria passado por um “sussurro”. Algo muda junto a outro homem, onde passa a existir um lugar para o que ela sentia.

IHU On-Line - Assim como em O piano, hoje em dia, ainda é comum que as mulheres prefiram silenciar, principalmente diante de circunstâncias de agressão familiar. Ao que se deve este comportamento? Por que as mulheres preferem sofrer, por causa do seu próprio silêncio? Há alguma circunstância em que se calar seja a melhor saída?
Sônia Bley
- Existem vários tipos de silêncio. Considerar o silêncio, no sentido do serviço que presta à situação, dependerá do contexto em que ele tem lugar. Em muitas circunstâncias, alguém de fora de uma situação não compreende nem aceita facilmente o pacto silencioso, que é estabelecido com a agressão ou a violência. Obviamente que a alteridade disso seria a tentativa de desfazer esse pacto. Ocorre que, não raras vezes, a pessoa envolvida não consegue perceber ou produzir sozinha uma abertura suficiente, na complexidade do seu cálculo inconsciente, para desaferrar-se de algum ganho ou acomodação que lhe é singular, mesmo no sofrimento. Esse ganho, por mais estranho que seja, é a força mais ativa, mantida na aparente passividade.

IHU On-Line - A música e o piano são duas grandes paixões da protagonista. No entanto, para ter de volta o seu instrumento musical, a personagem se rende a uma relação afetiva extraconjugal. Este fato fortalece a idéia de que as mulheres ainda são vistas por alguns homens apenas como objeto de desejo e manipulação?
Sônia Bley
- De início, a personagem submete-se a uma espécie de contrato de compra e venda. Porém, algo do desejo que ultrapassa essa relação se impõe. É no momento em que Beines consegue vê-la, não mais como um objeto de satisfação e “manipulação”, em que ela se permite expressar, ao mesmo tempo, seu repúdio à proposta anterior e considerar aquilo que nasce para ela enquanto sentimento por ele. Que as mulheres sejam vistas e/ou se pretendam objetos de anseios de completude masculina é sempre uma possibilidade que constatamos através dos tempos. No entanto, o filme possibilita uma virada nisso, quando Beines desiste de mantê-la, por chantagem, naquilo que a situa como “prostituta” e a si mesmo como um “desgraçado” e submete-se ao que pode advir do querer dela: “...se não sentires nada por mim vá...”  Aí ela escolhe.

IHU On-Line - A personagem central do filme tem a sua filha como aliada para enfrentar as conseqüências das suas escolhas. De que maneira a família contribui para o fortalecimento dos indivíduos, principalmente de mulheres vítimas de violência doméstica e que acreditam não haver solução para transformar a sua realidade?
Sônia Bley
- Onde a voz cala, no sentido do dizer e de suportar escutar o outro, o corpo e as relações padecem. Às vezes, algum membro do grupo familiar consegue uma distância mínima daquilo que, de outra forma, seria a conivência com a manutenção da violência e apóia na busca de alternativas de auxílio. Um passo importante é conseguir que as pessoas implicadas como agressores e vítimas busquem ajuda para se reposicionarem frente aos seus atos.

IHU On-Line - E quais são os impactos psicológicos para uma criança que acompanha a violência dentro de casa, na qual a mãe é a vítima?
Sônia Bley
- A criança é um sujeito psíquico em constituição, sendo, por isso mesmo, a parte mais frágil no grupo familiar. Disso decorre que, em muitos momentos, ela denuncia, pelo seu comportamento, de forma mais aguda, a sintomatologia familiar. Ou seja, busca mostrar, nos espaços que se apresentam para suas manifestações aquilo que não vai bem. Um cuidado para com a criança é de que esse apelo possa ser lido de alguma maneira, pois é endereçado para ser considerado pelo outro, por alguma alteridade. Do contrário, pode estar implicado ter como escolha alguma cristalização do lugar de agressor, de vítima e mesmo de espectador da violência.

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