Edição 256 | 28 Abril 2008

Andréa Catrópa

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André Dick

Editoria de Poesia

A poeta Andréa Catrópa nasceu em 1974, em São Paulo (SP). É mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada, pela FFLCH-USP, e uma das editoras do jornal de literatura contemporânea O Casulo. Coordena, além disso, a série de programas de rádio Ondas Literárias, que tem o apoio da Secretaria de Estado da Cultura e irá ao ar de março a setembro de 2008 em São Paulo. Além de integrar a coletânea 8 femmes (São Paulo: Papel de Rascuho, 2006), organizada por Virna Teixeira, foi uma das organizadoras da Antologia vacamarela - 17 poetas brasileiros do XXI (São Paulo: Edição dos autores, 2007). Seu livro de poemas, Mergulho às avessas (São Paulo: Lumme Editor), se encontra no prelo.

Catrópa é uma das poetas mais originais de sua geração. Possuindo um verso com imagens de impacto e um senso sobre a linha tênue entre a realidade e o surrealismo do mundo moderno – sobretudo o da cidade grande, que enxerga com um olhar diferenciado, visualizando o caos –, ela compõe uma poesia de alta voltagem. Ao mesmo tempo, constrói uma dissolução entre poesia e prosa, com textos poéticos com sentido narrativo e narrações com jogos de metáforas, dominando tanto o verso curto quanto o verso longo. Ao mesmo tempo, Catrópa utiliza um senso de humor corrosivo em suas composições, brincando com tabus da sociedade. Não desaparece o “eu lírico”, mas esse nunca conduz o poema a uma linguagem em que passa a ser visto como confissão, procurando, às vezes, até a auto-ironia. Isso porque a poeta lida de maneira especial com imagens fortes, sobretudo remetendo a um indivíduo que se encontra solitário, antes ou depois do parto. O título de seu livro, Mergulho às avessas, exemplifica bem tal caminho. A poeta, ao mesmo tempo que deseja mergulhar no mundo, procura se refugiar dele. Esse refúgio, entretanto, a conduz sempre de volta às coisas das quais tenta, a princípio, escapar, e tanto emocional quanto reflexivo, está presente em poemas como em “pulso”: “luz fraca / buscando uma fresta por / onde converter o dentro em / fora / / filho / em suas mucosas em / seus canais congestionados / está o meu avesso / / ou início / no feto que não fui / flutuando no abrigo da / solidão”.

Com certo olhar negativo, Catrópa, ao se situar naquela linha tênue entre a realidade e o surrealismo, acaba compondo também um panorama estranho sobre a contemporaneidade. Seus versos não tentam elucidar as questões filosóficas que os cercam, mas compõem novas perguntas, que, impreterivelmente, ficam sem respostas. O que se constata, diante de seus poemas, é que o mundo sempre traz falhas, mesmo que elas não estejam evidentes, na superfície. Mesmo a infância é descoberta sob uma visão ligada à morte, como em “Museu del joguet”: “os fantasmas que inventamos para vencer a matéria / quando o corpo sob lava / é pedra / / quis ver o que você veria – / transfusão de olhos – mas não / encontrei meu temor / só a chuva seca / das crianças de 1920 / e seus brinquedos conservados / como peças de museu”.
Um certo traço lúdico é sempre corrompido pela negatividade, e a saúde acaba por se render à doença. Não por acaso, sob influência pictórica, ela desenha, no seu poema “Frida”, um retrato sobre a pintora mexicana que teve problemas de saúde durante sua vida: “primórdios da vida / sobre rodas / / cachucha Kahlo / desvia do rumo / não-traçado no bonde com destino à tela / / nela vértebras / do sofrimento, espadas do amor / em cores / / páginas cujas palavras são / abortos em flor / caveiras num baile / diário da suicida que exibe vísceras / / a morte ladra / rouba-lhe dores, e o que será dela, / rara señorita, / cicatrizada a sua ferida?”.
No entanto, a poeta não utiliza tal caminho para oferecer uma lição de vida, e sim para revelar que há uma verdade submersa em todas as coisas. Mesmo na paisagem vista como comum, ela descobre uma certa violência desagradável das coisas, como em “Urbanismo utópico”: “mulheres machucando o asfalto com saltos, / homens asfixiando a paisagem com carros – vagabundos observam exalando o cheiro esquecido / da cidade”. Toda a violência, no entanto, parece uma espécie de despiste para a nostalgia, visível no poema “1979”: “recupero o cheiro o ritmo de algumas / ruas da infância – o sol estendendo os raios / preguiçosamente como os gatos que eu perseguia / com os olhos sob arbustos nos jardins / das vizinhas com cabelos enrolados sob / lenços / / atrás das grades as mulheres, sempre velhas / acenando sorrindo com o propósito secreto / de vislumbrar no meu caminho seus pés / de criança”. Infância que parece representar o “mergulho” mais evidente no trabalho de Catrópa, que enviou alguns poemas inéditos especialmente à IHU On-Line.

 

pour faire le portrait d´un poème ideal

era o alvorecer
e o sol mais intenso
uma paixão de descompasso
as penas as glórias e os sabotadores
da história
a pequenez dos homens altos e a
grandeza das mulheres baixas
o gozo e o riso dos sem dentes
era minha infância tataravós e escola
teus sapatos altos debaixo da cama
varridos junto com o medo
a poeira acumulada
e que sempre retorna
a mônada que nos cabe
certamente tudo que não
este deserto

 

contágio

dia bem claro, zumbis esquivos. mas para onde iriam? a luz e a escuridão são para eles absoluta dualidade, não encerram futuros ou relógios. acordam na noite, miram a lua como mariposas. quando chega o sol, são ícaros. antes de perder as asas, se escondem. sabedoria inata. inocência do malefício. querem carne. porque assim deve ser. não questionam nada. vagam com dentes afiados – e só com a dor alheia podem se manter.

 

autópsia

desfolhando meus olhos
com seu bisturi em chamas
encontrará dois globos
vazios
de imagens
vasculhando
um pouco
mais
este corpo
nos vãos ou ali
entre as vértebras
sentirá o cheiro de um susto
e descobrirá a quase gêmea
ancestral que
antes de alcançar a caverna
foi devorada por ursos

 

legítima defesa

o que eu quero é incomodar. dependendo do ponto-de-vista, há criaturas que só vivem para isso: a ferroada, o desconforto, o mal estar. entenda minha intenção. este é só um carinho diferente, talvez inverso. não sou tímido o bastante para me calar. as palavras rumam para a boca como um exército de formigas. furiosas. espalham-se, deleite precoce. e o arrependimento é igualmente curto para que eu me esqueça e repita tudo como da primeira vez. como se os deuses tivessem ressuscitado para me dar uma punição exemplar. as formigas. se não as liberto, é contra mim que se voltam.

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