Edição 256 | 28 Abril 2008

Filme da semana: Serras da desordem

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André Dick

O fi lme comentado nessa edição foi visto por algum/a colega do IHU.

Ficha técnica:

Título original: Serras da desordem
Diretor: Andrea Tonacci
Gênero: Documentário
Tempo de duração: 135 minutos
Ano de lançamento (Brasil): 2008
Sinopse: É contada a trajetória do índio Carapiru, que escapa de um massacre de famílias de sua tribo, no Maranhão, e se refugia num vilarejo no sertão da Bahia, até ser encontrado por dois sertanistas.

Um olhar contra a violência

No cinema brasileiro, tratar do preconceito em relação aos índios ainda é tabu. O cineasta que melhor havia retratado a questão era o argentino naturalizado brasileiro Hector Babenco,  no excelente Brincando nos campos do senhor, com um elenco de astros estrangeiros.  Até, a meu ver, o ítalo-brasileiro Andrea Tonacci,  em seu semi-documentário Serras da desordem, que dividiu o prêmio de melhor filme com Anjos de sol no Festival de Gramado de 2006. O fato de ter levado quase dois anos para ser lançado mostra o desinteresse, também do público, pelos indígenas. Infelizmente, sem muita divulgação, apesar das boas críticas, o filme de Tonacci não tem tido a recepção de outros documentários inferiores ao dele, mas, com seu lançamento nos cinemas, é momento de corrigir o equívoco e abrir a ele o espaço merecido, pois trata-se de uma obra impecável do ponto de vista técnico (desde a montagem de Cristina Amaral, que a princípio parece caótica, mas é de qualidade singular, até a música de Rui Weber, que lembra um sentimento de solidão contemporâneo) e sobretudo  narrativo.

Com rara sensibilidade, Serras da desordem trata da trajetória do índio Carapiru, que sobrevive ao massacre de famílias de guajás em 1977, colocando o próprio para reproduzir sua trajetória. Há imagens documentadas (sobretudo de jornais televisivos da Globo), mas na maior parte do filme o índio reencena sua peregrinação. Durante os 40 minutos iniciais, não há nenhum diálogo compreensível, ou seja, é mostrada a vida em sua tribo numa das serras do Maranhão, com crianças brincando em meio aos animais, homens e mulheres tomando banho num riacho. De repente, o primeiro sinal de outra civilização: um avião sobrevoa as árvores da floresta. Em seguida, o ataque de alguns fazendeiros com espingardas, com o objetivo de exterminar os indígenas e ocupar suas terras. A cena que segue à fuga de Carapiru do local de extermínio é emblemática: ele corre até os trilhos de trem que cortam a serra onde habitava e espera, com um olhar perdido, o que seria o símbolo da modernidade passar. Nesses primeiros passos, delineia-se o que será Serras da desordem: um filme reflexivo interrompido por uma música que lembra o barulho de trens e aviões.

Depois dos minutos iniciais sem diálogos, entra uma música carnavalesca, mostrando imagens do país no fim dos anos 1970, com centenas de garimpeiros na Serra Pelada, os militares no poder, as hidrelétricas – representando o crescimento do país – e o Maracanã lotado. É interessante como Tonacci mostra esse salto do extermínio indígena para o que é considerado “moderno e avançado”. O diretor parece perguntar ao espectador o que seria o Brasil. Pois ele coloca o índio no extremo da modernidade em que o país está ingressando, ou seja, o índio registraria uma mística inadequada à busca incessante pelo poder e pelo dinheiro. A calmaria com que ele retrata a tribo cria um contraponto com a velocidade exigida pelo mundo capitalista, o que pareceria até simplista, não fosse retratado com bastante eficácia.
Em seguida, Tonacci mostra a fuga do índio, até a chegada a um vilarejo na região de Barreiras, no sertão da Bahia, em que é bem recebido e começa a entrar em contato com a cultura do homem branco. Até a chegada – nada amistosa – do Incra, e, em seguida, dos sertanistas Sydney Possuelo  e Wellington Gomes Figueiredo, que o levam para a cidade grande. Esta trajetória, apesar de simplória, não impede que o documentário se sustente sobretudo em seu poder de captação de imagens, o jogo entre a fotografia colorida e a fotografia em preto-e-branco e o carisma do índio. O espectador não entende nenhuma palavra dita por ele, mas é simbólico o que o sertanista Possuelo afirma, à determinada altura: de que os gestos falam mais do que as palavras – diante de uma televisão em que passam imagens de guerras e da bomba atômica. No entanto, nada é simplista ou maniqueísta na obra de Tonacci: tudo é pensado com extrema discrição, e os gestos dos personagens buscam sempre a compreensão do espectador.
A aculturação pela qual passa Carapiru é muito bem retratada, revelando, ao mesmo tempo, a solidão de um povo entregue, por vezes, quase ao esquecimento por parte das autoridades. A ida do índio para Brasília, à Praça dos Três Poderes, revela a carga emocional que Tonacci quer dar a esse personagem real, o conflito entre a ordem da selva e a ordem da política, da organização, do mundo plano e matemático que se abriga na cidade projetada por Niemeyer. Nesse sentido, não há como não pensar que sua obra também é uma crítica ao mundo obsessivamente arquitetado – e daquilo que implica justiça. Quando Carapiru se posiciona em frente às cataratas, ao lado de uma árvore, durante sua peregrinação, essa imagem se contrapõe ao avanço energético do mundo atual. Na sala de aula do pequeno vilarejo em que é acolhido, ele observa, um pouco a distância, as crianças aprendendo a ler e a escrever, sem conseguir se comunicar, a não ser por gestos. Em outro momento, assiste, num canal de televisão, a imagens de crianças vestidas de militares treinando na selva em contraponto com índios armados de espingarda e não mais de arco e flecha. Em vários momentos, Tonacci desenha esse embate entre a pura natureza e o mundo “sociável” do homem branco (por meio de elementos como a comida, o transporte e as brincadeiras) e às vezes traça uma interseção, quando o índio veste a camisa do Flamengo, ou seja, está inserido na falada cultura brasileira, em que o futebol é o “ópio do povo”. Impressiona, nesse sentido, como o índio Carapiru reinterpreta sua trajetória diante das câmeras de maneira irretocável. Do mesmo modo, os outros personagens – que realmente existem - ajudam a contar esta história com uma economia de gestos e falas que impressiona, pois todos estão conscientes de estarem posicionados diante das câmeras. Nenhum participante é flagrado em algum momento artificial ou menos interessante. Trata-se de um cinema exemplar no sentido da concentração e da reflexão, que dificilmente seria reproduzido em outra cinematografia. A trajetória de Carapiru não deixa de ter alguns pontos de contato com o road movie brasileiro, de transformação e perda, como se percebe sobretudo nos filmes de Walter Salles,  como Central do Brasil, ou seja, a constatação de que o indivíduo se desloca e é estranho em sua própria terra.

Além disso, a natureza, ao longo de toda a metragem, compõe como que outro personagem: o pôr-do-sol misturado às árvores sendo queimadas lidam com um caminho poético, em que as imagens – desta vez, como gestos – atuam na linguagem cinematográfica. A própria relação do índio Carapiru com outros personagens é construída com empatia que poderia soar artificial e, no entanto, reforça bastante a compreensão que temos diante de uma civilização que nos parece estranha, mas é parte da nossa constante construção – e, em alguns momentos, destruição. Tonacci já havia lidado com a temática indígena em Conversas no Maranhão, e em seu novo filme consegue reelaborá-la de forma contemporânea, abrindo espaço para uma nova discussão. Cada um dos pontos é bem explorado, e o espectador segue a narrativa curioso em saber sobre o destino de Carapiru, o que leva a se interessar pelo destino dos povos indígenas.

Serras da desordem não é um filme com mocinhos ou vilões evidentes. O fogo que abate as florestas e que visa à preservação é o mesmo que perturba o índio, perdido em meio a uma civilização que não lhe pertence. Não há estado que não tenha sido fundado pela violência, e o que mostra Tonacci é ainda mais contundente: o homem funda a violência por negar o outro, que não deseja, é óbvio, ser anulado, pois representaria a perda de sua cultura e de si mesmo. E o espectador, em determinado momento, levado pela sensibilidade narrativa, se coloca no lugar do índio, quando, finalmente, conclui sobre como, aos poucos, está sendo abandonado pela esperança e que, às vezes, é preciso ir na direção contrária do trem e da dita civilização. Certamente esta fuga não é fácil nem muitas vezes viável, mas é visível que, quando se expulsam indivíduos de suas terras e culturas são violadas, a desordem do que nos cerca é evidente. O olhar sensível de Andrea Tonacci, posicionado contra a violência, é um elemento contundente de reflexão para os dias atuais.

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