Edição 255 | 22 Abril 2008

A desigualdade de gênero como constituinte das ações de violência

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Graziela Wolfart

Martha Narvaz acredita que a lei Maria da Penha tem dificuldades de ser efetivada em função da cultura machista brasileira

“Sabemos pelas estatísticas que a maioria dos casos de femicídio ocorre justamente quando as mulheres estão tentando se separar. O sujeito que se acha dono não aceita perder a sua escrava. Então ele vai atrás dela e a mata.” A declaração é da psicóloga e psicoterapeuta Martha Narvaz, em entrevista por telefone à IHU On-Line, na qual falou sobre a necessidade de mudar o paradigma cultural de gênero na sociedade brasileira. Ao final de suas respostas, a professora da UFRGS constata: “Precisamos desconstruir os estereótipos de gênero”.
Martha Narvaz é especialista na área da violência doméstica, pela USP. Concluiu o mestrado em Psicologia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2005, tendo defendido a dissertação de mestrado intitulada “Submissão e Resistência: Explodindo o discurso patriarcal da dominação feminina”. Atualmente, cursa doutorado em Psicologia na mesma universidade. Desenvolve atividades como psicoterapeuta, como professora e supervisora em Centros de Formação em Psicologia e Psicoterapia Familiar, como pesquisadora e assessora na capacitação da rede de saúde e de educação em projetos comunitários de atendimento e prevenção na área da violência, da sexualidade e das relações de poder e gênero. Militante feminista, atua na ONG Coletivo Feminino Plural de Porto Alegre e coordena o Núcleo de Relações de Gênero do Centro de Estudos Psicológicos de Meninos e Meninas da UFRGS. Coordena a Regional Sul do Observatório da Lei Maria da Penha e sua trajetória profissional vem-se constituindo a partir do trabalho com famílias, mulheres e meninas vítimas de violência doméstica e de abuso e de exploração sexual. Eis a entrevista:

IHU On-Line - Como tem se desenvolvido o projeto de articulação e qualificação das universidades gaúchas para o enfrentamento das desigualdades de gênero e de todas as formas de violência contra as mulheres? Quais são as universidades participantes?
Martha Narvaz
– O projeto vem acontecendo informalmente já alguns anos. Somos várias universidades, vários núcleos de estudos de gênero e várias pesquisadoras que não necessariamente têm núcleos estruturados em suas universidades e institutos, mas que já vêm trabalhando com essa temática há muito tempo. Essas pesquisadoras vêm da UFRGS, da PUCRS, da Faccat, de Taquara, da Ulbra, de Torres, do IPA, da Cátedra de Gênero, da Unisinos, da Universidade de Caxias, e outras universidades que estão se agregando a essa articulação. São pessoas que estavam, de alguma forma, um tanto isoladas em suas universidades e fazendo essas parcerias de forma mais pontual, não institucionalizada, mais informal. Então, a partir desses contatos, nós, do Núcleo de Psicologia e Estudos de Gênero da UFRGS, fizemos um convite chamando essas outras professoras e pesquisadoras para uma reunião, para iniciar essa articulação de forma mais institucionalizada. E essas reuniões têm acontecido quase que semanalmente desde o último dia 8 de março, envolvendo os núcleos de universidades e alguns outros parceiros, como o Grupo Hospitalar Conceição. O projeto tem um pouco mais de um mês, mas tem se desenvolvido. Nosso objetivo é que esses núcleos e essas pesquisadoras possam ter um espaço comum, compartilhado, para desenvolver pesquisas. Também queremos estender essa articulação para além das universidades, com os movimentos sociais, principalmente os movimentos feministas, que têm trabalho com essa questão de gênero e da violência contra as mulheres. Trata-se de uma articulação interdisciplinar, envolvendo profissionais da educação, da psicologia, da antropologia, da enfermagem, do direito. Entendemos que para o enfrentamento de todas as formas de violência seja fundamental a articulação de vários saberes.   

IHU On-Line - Como a academia pode contribuir para a redução e o combate da violência contra as mulheres?
Martha Narvaz
– É preciso falar de todas as formas de violência, não só da violência física, mas das violências simbólica, psicológica e discriminatória. As mulheres negras, indígenas, quilombolas, lésbicas e idosas sofrem discriminação, que também é uma forma de violência. É importante contemplar essas questões nos currículos das universidades, nas disciplinas, para que todos possam discutir essas questões. Outras iniciativas são a organização de encontros, seminários, debates nas universidades, no sentido de transversalizar por todos os currículos essas questões. É fundamental oportunizar para nossos alunos e alunas campos e locais de estágio, como, por exemplo, as delegacias da mulher e centros de referência ao atendimento às mulheres, e também poder incluir essas questões da violência nas políticas de trabalho dos estágios da área da saúde, nos postos de saúde, nos programas de saúde da família, no trabalho dos psicólogos com a assistência social etc. A idéia é levar para dentro das universidades essa discussão para que os alunos e alunas possam ter conhecimento, possam ampliar a sua reflexão sobre esses tópicos e, além disso, serem instrumentalizados para estarem atuando contra a violência, senão fica algo desconectado da realidade.   

IHU On-Line - Qual é a importância da Lei Maria da Penha? Ela tem concretamente ajudado as mulheres vítimas de violência?
Martha Narvaz
– A lei é fundamental porque ela vem dar visibilidade e trazer algumas especificidades novas na questão do enfrentamento da violência contra as mulheres. A lei é nova, tem dois anos apenas, mas existe um observatório que está fazendo um monitoramento da implantação dessa lei, do qual eu faço parte, que é constituído por todas as regiões do Brasil. Temos nos reunido e implantado algumas técnicas de investigação exatamente para avaliar o que a sua pergunta pede. Não temos ainda dados estruturados no âmbito nacional para poder realmente avaliar a efetividade da lei. O que se tem são alguns resultados parciais, de algumas regiões. Mas posso dizer que, no Brasil, temos uma legislação extremamente bem feita. Em termos de legislação, somos um país de Primeiro Mundo. No entanto, a efetivação e a concretização da lei passam pelos sujeitos, pelas pessoas. Sabemos que no Brasil ainda temos uma cultura muito sexista, machista, que ainda vê as mulheres vítimas de violência de forma preconceituosa, sem uma abordagem complexa e crítica. Os operadores da lei (advogados, juízes, servidores de delegacias e do ministério público), e todos os equipamentos envolvidos e utilizados, ainda têm uma dificuldade da efetivação da lei em função da cultura brasileira. Na medida em que a cultura ainda é machista, a lei tem resistência para ser integrada. O que acontece é que as pessoas ainda têm a visão de que as mulheres acabam voltando para seus companheiros, que no fundo elas não querem separar, e aí surgem tentativas de mediar o conflito do casal, ou seja, de desvalorizar essa queixa da mulher. O imaginário social tem toda uma visão das mulheres como queixosas, como histéricas. Mas, apesar disso, com a Lei Maria da Penha, esses aspectos todos voltaram à discussão, estão na agenda. 

IHU On-Line - A desigualdade social e cultural entre homens e mulheres contribui para a prática da violência contra a mulher?
Martha Narvaz
– Com certeza. Ela não só contribui como é constituinte das ações de violência. O problema não são as desigualdades. Sabemos que homens e mulheres são diferentes, com algumas especificidades, que não passam só pelo corpo, pela genética, mas por uma gama ampla, complexa de jeitos que foram se construindo historicamente, como a forma de se colocar e perceber o mundo e no jeito de comunicar desejos e expectativas. Porém, é preciso lembrar que essas diferenças são transformadas em desigualdades, mas do ponto de vista de hierarquias, ou seja, o desigual passa não só a ser diferente. Ele se insere numa divisão entre um superior e um inferior, em uma leitura de hierarquia de gênero. Na hierarquia de gênero, fica pressuposto que existem alguns seres superiores e alguns inferiores. E isso, historicamente, condicionou as mulheres a ficarem no pódio da subordinação. É o que vai legitimar alguns sujeitos a abusar, explorar, oprimir e violar os direitos desses sujeitos ditos inferiores, o que fica muito evidente se pegarmos o escravagismo. Os negros e negras, na medida em que não eram vistos como humanos, podiam ser explorados, abusados, como animais. Essa é a mesma lógica que, de alguma maneira, vai aparecer no racismo e no caso de homens e mulheres no sexismo. Na medida em que se acha que alguns humanos são mais humanos do que outros, esses “menos humanos” podem ser oprimidos, e aí está a origem da violência. Cabe destacar que no âmbito da violência doméstica, conjugal, que se dá entre parceiros afetivos, o sujeito (em geral o sujeito masculino) se considera dono, proprietário da sua companheira, mulher, esposa ou namorada. Quando os “sujeitos coisificados”, que no caso são as mulheres, pretendem ter mais autonomia, sair de uma relação, ou trabalhar fora, ou estudar, ou pintar as unhas de vermelho, esses sujeitos que se acham donos, não gostando dessas tentativas de autonomia, praticam a violência física, as ameaças, e inclusive o assassinato. Sabemos, pelas estatísticas, que a maioria dos casos de femicídio ocorre justamente quando as mulheres estão tentando se separar. O sujeito que se acha dono não aceita perder a sua escrava. Então ele vai atrás dela e a mata.

IHU On-Line - As mulheres vítimas da violência costumam sofrer que tipo de preconceito na sociedade em que vivem?
Martha Narvaz
– Infelizmente, isso realmente acontece, pois está disseminado na cultura. Elas sofrem uma série de formas de descriminação e uma das questões que dificulta muitas vezes a denúncia é a vergonha. Essas mulheres têm vergonha de denunciar, porque ser uma mulher vítima de violência traz sentimentos de vergonha e de culpa. Ainda circulam na sociedade algumas idéias preconcebidas de que se a mulher apanhou é porque ela fez algo para merecer isso. Há ainda alguns preconceitos que circulam em piadas e discursos machistas, de que as mulheres gostam de apanhar e precisam apanhar para saber quem é o dono, quem é que manda na relação. Isso sem falar quando elas chegam nas delegacias (que não são delegacias da mulher) para fazer as suas queixas. São recebidas, em geral, por homens que acabam também compartilhando dessa visão machista. Elas são olhadas ou como coitadas ou como alguém que fez algo para merecer a violência, ou que elas estão querendo destruir a família por querer se separar, que elas deviam agüentar a pressão. Enfim, há uma série de preconceitos sobre essas mulheres. Muitas delas permanecem muitos anos na situação de violência porque têm medo da crítica e do julgamento social.

IHU On-Line - Que tipo de ação educativa pode ajudar no sentido de prevenção da violência contra a mulher?
Martha Narvaz
– Esse é um ponto importante, um dos eixos que o projeto da articulação entre as universidades tem procurado trabalhar. A forma fundamental é incluir o debate na educação, desde o jardim da infância até o pós-doutorado, passando pela mídia, pelos livros educativos e pelos discursos na universidade. Precisamos desconstruir os estereótipos de gênero.

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