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Stela Nazareth Meneghel
O diretor Cristian Mungiu, ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes, faz cinema de qualidade com um orçamento modestíssimo. Quatro meses, três semanas e dois dias é uma narrativa densa e tocante que se traduz em um filme sério, limpo sem deixar de dizer o que se propõe, sem retoques e efeitos especiais.
A história central: duas moças que vivem em um alojamento universitário, uma delas grávida (Gabita) pede ajuda à companheira de quarto (Otília) para realizar um aborto. Otília se vê às voltas com todos os detalhes do problema, desde o empréstimo de dinheiro com o namorado (o dela porque o de Gabi não aparece), arranjar uma vaga em um hotel de segunda categoria que deveria ter sido reservado pela amiga, encontrar o aborteiro, até, finalmente, livrar-se do feto morto.
Lendo algumas críticas sobre o filme, percebi que alguns consideraram “o aborto” como uma metáfora da decadência do comunismo. Porém, o aborto, antes de ser uma metáfora disto ou daquilo, é um evento concreto, cruento, que pode marcar para sempre o corpo de uma mulher, trazendo a possibilidade de complicações de ordem física (infecção, hemorragias, morte) e jurídica (prisão) para os autores. O filme se passa nos últimos anos da ditadura de Ceaucescu, quando o aborto era proibido e criminalizado.
Na realidade, considero que o filme diz mais sobre o sistema patriarcal de dominação/subordinação das mulheres, presente tanto em regimes de direita quanto de esquerda. A experiência pessoal do aborto vivida pelas duas moças denuncia uma sociedade moralista e deixa claro que o regime comunista não conseguiu eliminar a desigualdade de gênero. O patriarcado é um sistema de poder em que os homens ou o Estado, representando a ordem androcêntrica, possuem o direito de propriedade dos corpos das mulheres. No filme, as mulheres escapam à violência da prisão para cair na violência do estupro, evitam a sanção pública para mergulhar no infortúnio privado.
Como Gabita na Romênia de Ceaucescu, milhares de adolescentes, ao realizarem as primeiras explorações da sexualidade, se deparam com uma gravidez indesejada. E essas moças/adolescentes/meninas, ao decidirem abortar, enfrentam situações de adversidade, risco e morte. Situações, às vezes, mais precárias que as vividas pela personagem do filme. Seus corpos são manipulados grosseiramente, e isso se acentua quando elas não têm dinheiro como Mungiu nos esfrega na cara sem eufemismos. E isso ocorre no Brasil, na África, na Europa e na Romênia. Em qualquer local onde a ordem patriarcal dita as regras do jogo, por meio do pacote heteronormativo que objetiva normalizar e controlar as mulheres.
É a partir do corpo e da sexualidade feminina que se expressam a opressão e a dominação do gênero masculino, diz a teóloga Ivone Gebara. A sexualidade feminina é o lugar onde se marca a posse masculina sobre as mulheres. Essa dominação se expressa através de uma divisão injusta do trabalho social e doméstico, através de uma legislação que acaba mantendo os privilégios de gênero e manifesta-se, igualmente, nas questões de descriminalização e legalização do aborto, como se os homens, ou a sociedade que representam, tivessem a última palavra sobre nossas decisões e escolhas (Gebara, 2006).
No Brasil, o aborto representa um grave problema de saúde pública e de justiça social. A prática do aborto é crime, sendo permitido pela lei penal somente em duas circunstâncias: no caso de violência sexual (estupro) ou riscos à vida da mulher. No entanto, o aborto é amplamente praticado, através de meios inadequados que podem causar danos e provocar a morte da mulher. Estimativas para 2005 apontam um total de 1.054.243 de abortos realizados. As mulheres em situação de aborto incompleto ou com complicações, geralmente, sentem constrangimento e/ou medo em declarar seus abortamentos nos serviços de saúde, resultando em grande subnotificação do fenômeno. A distribuição geográfica de abortos entre as adolescentes de 15 a 19 anos aponta para as Regiões Norte e Nordeste como as que apresentam maiores riscos de aborto induzido (http://www.ipas.org.br/arquivos/pesquisas/factsh.PDF).
Em uma pesquisa encomendada pelo Ministério da Saúde para delinear o perfil do abortamento no Brasil, os autores (Adesse, Monteiro e Levin, 2008) pontuaram que o abortamento inseguro cria um ambiente ameaçador, de violência psicológica e de culpabilidade que leva muitas mulheres a apresentarem sintomas de depressão e ansiedade. Além disso, recomendam o enfrentamento da gravidez não desejada com políticas públicas que reconheçam os direitos humanos reprodutivos das mulheres, que incluam os homens nessas políticas e criem, nos municípios brasileiros, ações de saúde reprodutiva, educação sexual e atenção à anticoncepção.
Voltando ao filme, Gabita esconde a idade gestacional real (mais de quatro meses, de onde o nome do filme), o que a faz procurar um aborteiro que, além de embolsar o dinheiro das jovens, engloba no “pagamento” o abuso sexual das duas moças.
“Por que você escondeu a data real da gravidez? Quem te indicou este homem?”, ou seja, por que se expor a esse acréscimo de violência, é o questionamento que Otilia faz à Gabi, buscando entender o que está se passando, embora Gabi proponha “não tocar mais no assunto”. Ou seja, se o conhecimento ocorre por meio da linguagem e do discurso, Gabita recusa esta possibilidade.
Otilia, sem dúvida, é a heroína do filme de Mungiu, construída a partir do compromisso, do comprometimento e da solidariedade. O aniversário da mãe do namorado acentua a diferença entre a moça preocupada com a amiga e o grupo de comensais, no qual as conversas giram em torno de temas banais, podendo-se perceber neles a futilidade, o arrivismo e os papéis convencionais de gênero. “Não existe um mundo dividido entre personagens bons e maus – o que há em Quatro meses são pessoas tentando sobreviver a adversidades, em especial àquelas advindas do Estado. Se Otília será uma pessoa melhor ao final de sua trajetória não podemos saber”, nos diz o crítico de cinema Alysson Oliveira (http://cineweb.oi.com.br/index.html).
Acredito que sim, que Otilia se torna uma pessoa melhor ao longo do trajeto representado no filme. A trama narrativa baseada na retidão e na capacidade de Otília de olhar os fatos de frente, sem tergiversar, faz com que por meio dela questionemos uma série de valores da sociedade romena/da nossa sociedade: as hipocrisias sociais, os papéis estereotipados de gênero presentes nos comportamentos de Gabi (passiva e infantil) e da sogra (preconceituosa e esnobe), o individualismo exacerbado, o tráfico de influências e regalias (expresso nas propinas, no mercado negro, no autoritarismo das pequenas autoridades), as hierarquias de gênero (o aborto criminalizado, a conduta truculenta, agressiva e sexista do aborteiro, a tradicional cena de casamento no hotel).
Bem, mais do que uma estória de época, o filme é uma narrativa marcada pelo viés de gênero, abordando um tema capaz de nos mobilizar tão intensamente que nem todos conseguimos perceber o quanto ele constitui um dos pilares da dominação patriarcal em relação às mulheres.
Ficha técnica
Nome original: 4 luni, 3 saptamani si 2 zile / 4 Months, 3 Weeks and 2 Days
Cor filmagem: Colorida
Origem: Romênia
Ano produção: 2007
Gênero: Drama
Duração: 113 min
Classificação: 14 anos
Direção: Cristian Mungiu
Elenco: Anamaria Marinca, Laura Vasiliu, Vlad Ivanov
Sinopse: Romênia, 1987. O país passa por uma crise, enfrentando racionamento de comida, entre outras coisas. Em meio a esse cenário, a jovem Gabita (Laura Vasiliu) tenta fazer um aborto ilegal. Ela só pode contar com a ajuda de sua amiga Otília (Anamaria Marinca), que irá fazer grandes sacrifícios por ela.