Edição 385 | 19 Dezembro 2011

Marguerite Porete: a alma entre aniquilamento e nobreza

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Moisés Sbardelotto


IHU On-Line – Na vida de Marguerite, como se deu a relação entre teologia, mística e heresia?

 

Ceci Baptista Mariani – Em primeiro lugar é preciso considerar a relação entre mística e dogma na dinâmica da teologia. O dogma é uma etapa necessária à constituição de uma tradição religiosa, ele reflete o esforço da comunidade para explicitar as razões de sua fé, explicar-se diante de si mesma e diante dos outros. O dogma é a formulação racional daquilo que é essencial na recepção e vivência do mistério revelado.
No entanto, conforme essa mesma tradição, Deus continua agindo na história e na vida, para além do período constitutivo, pela atuação do Espírito. A tradição cristã verá a dinâmica renovadora do dogma, como fruto da atuação do Espírito. O dogma se renova e a tradição permanece viva porque, entre os conceitos e fórmulas dogmáticas e a verdade de Deus que se autocomunica em Jesus Cristo, está o Espírito Santo. Em seu sentido teológico, o dogma é a verdade definitiva sobre Deus e sobre o homem, comunicada a nós por Jesus Cristo, no Espírito Santo, em vista de uma verdadeira relação com Deus. Permanece, no entanto, para a tradição cristã, em se tratando de dogma, a consciência de que essa verdade nos remete ao mistério do Incriado, “Luz que ultrapassa qualquer luz”, “Treva superluminosa”, nas palavras de Dionísio Areopagita, e a convicção de que não se possui conceito adequado de Deus e que os conceitos e as fórmulas dogmáticas apenas tendem à Verdade impossível de se apreender conceitualmente.
Em vista disso, podemos dizer que o dogma só é Verdade de Fé na medida em que se deixa interpelar pela mística. Ao longo da trajetória histórica da Igreja, no entanto, em função do status que o cristianismo foi adquirindo na sociedade, de sua elevação à religião oficial do Império Romano, surge uma exigência de uniformidade da fé que se resolve pela instituição de uma autoridade dogmática vertical, um magistério hierárquico responsável por definir “os limites” de uma verdade de validade universal. A ortodoxia se faz sentir como imperativo político e a pluralidade dogmática como ameaça perigosa para a Igreja e para a sociedade. No período medieval, sob o regime de cristandade, aprofunda-se uma noção de dogma como verdade certa a ser defendida e guardada pelo magistério. Ele será a base da instituição eclesiástica e seu instrumento de poder. Nesse contexto, muitos discursos místicos acabam sendo julgados como heresia.

Esse foi o caso de Marguerite Porete que compôs um dizer sobre a relação com Deus sob a influência da teologia negativa e em relação crítica com a orientação institucional que dominou a Igreja nessa época. Além de anunciar que Deus, de infinita delicadeza, transforma a nossa pequenez em grande nobreza em língua vernácula, portanto, fora do domínio do clero, Marguerite tira daí consequências muito ousadas. O livro, consta no processo, teria sido condenado com base em 15 artigos suspeitos. Os dois artigos mencionados no processo-verbal que relata a condenação do livro testemunham a ousadia dessa mulher. Desses artigos, o primeiro é o seguinte: “Que a alma aniquilada dá licença às virtudes, não está na servidão delas, porque não as tem quanto ao uso, mas as virtudes a obedecem a um sinal”. Igualmente o décimo quinto artigo é: “Que tal alma não cuida das consolações de Deus nem de seus dons, porque ela é toda voltada para Deus, e assim estaria impedida sua intenção para Deus”.
Em sua relação com Deus, despojada de tudo, defende Marguerite, a alma adquire tal liberdade que já não precisa das mediações propostas como caminho de salvação pela instituição Igreja. Como podemos ver nesses artigos condenados, Marguerite aprofunda a relação entre mística e dogma, tira dela consequências ousadas e, por isso, acaba sendo alvo do medo da instituição eclesiástica, que vai declarar seus escritos como heresia.

IHU On-Line – Afirma-se que Marguerite Porete influenciou Mestre Eckhart. Concorda? Em que pontos podem-se encontrar convergências entre esses dois pensadores cristãos?

Ceci Baptista Mariani – Marguerite e Mestre Eckhart habitaram o mesmo mundo. O Movimento Beguinal esteve sob a orientação espiritual das ordens mendicantes: os franciscanos se dedicaram aos begardos, e os dominicanos, às beguinas. Marguerite participa da tradição renana. No tema da relação entre aniquilamento e nobreza, por exemplo, que é um tema nuclear na obra de Marguerite, encontramos um claro paralelo em escritos de Mestre Eckhart. Para ambos os autores, a nobreza é condição que nos vem do aniquilamento. No sermão O homem nobre, Mestre Eckhart vai descrever o homem nobre como aquele que avança no caminho do desprendimento, degrau a degrau até “despojar-se da imagem (humana) para revestir a imagem da eternidade divina, pelo esquecimento total e perfeito da vida transitória e temporal, de tal modo que, feito filho de Deus, e atraído por Deus, o homem se transmude em imagem de Deus”.

A nobreza, para Marguerite Porete, é também a condição que nos vem do aniquilamento. Esta alma que não tem nada de vontade, afirma a autora, não se importa de que Deus faça isso ou aquilo, contanto que faça nela a vontade Dele. Não lhe faz falta “nem inferno, nem paraíso, nem alguma coisa criada”. Mais vale à alma, ela diz, o nada querer em Deus que o bem querer por Deus. A alma aniquilada é nobre porque, pelo aniquilamento, acolhe a obra de Deus nela. Essa alma que leva a marca de Deus como o lacre toma a forma do selo; sabe que a obra de Deus na criação não é condená-la, mas conformá-la a Ele. Eis o segredo do Filho que é dado a ela pelo amor do Espírito Santo, diz Marguerite. A alma aniquilada é, portanto, semelhante à divindade. A liberdade perfeita que define a nobreza vem pela graça de Deus que dá à alma o conhecimento do seu nada, conhecimento que leva do mais profundo abismo à mais elevada condição. Em sua nobreza, a oração e a prece da alma já não pedem mais nada, repousam em paz.

IHU On-Line – Como e em que aspectos a mística em geral – mas também a de Marguerite – pode inspirar, tensionar ou instigar a teologia contemporânea?

Ceci Baptista Mariani – A mística tem provocado a teologia contemporânea desde que a ela toma consciência da importância da experiência. Grandes teólogos contemporâneos foram profundamente tocados pela mística, entre eles Karl Rahner  e Edward Schillebeeckx . A mística põe o dogma em movimento. Usando as palavras deste último podemos dizer que, ao orarmos ao Deus vivo, como faz o místico, temos as nossas mediações esfaceladas. A experiência do encontro imediato com Deus provoca a visão de uma possibilidade nova, radicalmente diferente do que foi e do que é. Caem por terra as velhas imagens e as palavras em que depositamos toda a nossa confiança, as nossa escadas, as nossas pontes, as nossas construções. A mística explicita a relatividade do nosso dizer sobre Deus, faz ver o limite, lembra-nos da necessidade da humildade. Ao mesmo tempo, a mística promove em nós inspiração, faz nascer a poesia, essa palavra divina que, sem exigir mérito algum, nos toma e nos faz dizer. Isso é o que nos ensina toda a tradição mística e, nesse contexto, a mística Marguerite Porete, uma mulher que ousou teologia, tomada que foi pela poesia. A mística também, além de ajudar a dar movimento ao dogma, com essa dinâmica que ajuda a reconhecer a relatividade de toda elaboração dogmática em contraposição à afirmação do mistério de Deus, hoje tem ficado cada vez mais claro, ajuda a teologia a abrir-se ao diálogo, torna claro que todas as tradições são, ao mesmo tempo que capazes de captar a verdade de Deus, limitadas nessa tarefa.

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