Edição 385 | 19 Dezembro 2011

Mechthild de Magdeburgo, mestra e mãe da mística renana

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Moisés Sbardelotto

IHU On-Line – Qual o significado da alteridade na mística de Mechthild?

Maria José Caldeira do Amaral –


IHU On-Line – Em que aspectos mais aflora a sua feminilidade nos escritos místicos de Mechthild?

Maria José Caldeira do Amaral –
Na organicidade de sua obra, Mechthild vai dizer que Deus é o mais justo dos amantes. A linguagem sensual e erótica é absolutamente precisa para falar dessa união, por isso desenvolvi a ideia da equalização de eros e ágape na tradução hipotética da minne em minha tese de doutorado.

Orígenes  é o primeiro cristão que sustentou a ideia de que dentre todas as maneiras positivas ou catafáticas de falar de Deus, a linguagem erótica é a mais apropriada por ser ela capaz de ultrapassar ela mesma. Eros não é uma instância passível de disfarce ou idealização. Para Orígenes, eros opera uma transformação do desejo ao reconduzi-lo à sua forma original. Eros é, na realidade, uma força de Deus. A potência do amor não é senão aquela que conduz a alma às alturas sublimes do céu. Essa é a inovação audaciosa de Orígenes, a partir do eros platônico como o desejo direcionado ao perfeito e ao belo, que está em sua máxima sobre o amor de Deus no prólogo do Comentário sobre o Cântico dos Cânticos – Deus, Ele mesmo deve necessariamente ser eros se eros implantado em nós é o que nos reconduz a Ele: “Eu não acredito que nós seremos castigados se dermos a Deus o nome de amor apaixonado (Eros – Amor), da mesma forma que João deu a Ele o nome de caridade (agapé – caritas) [...] Em consequência, tudo aquilo que a Escritura diz sobre a caridade, assim ela o faz, como se falasse do amor apaixonado, sem se dar conta da diferença das palavras, pois trata-se, nesses dois casos, de expressar o mesmo significado . O amor apaixonado de Deus pelo mundo (Jo 1, 3-16) se traduz na paixão do Verbo que se esgota dele mesmo para revestir, na carne, o sofrimento de Deus: o amor de Deus descrito como um amor espiritual e intenso se ajusta à maneira de falar do amor físico e romântico em função de sua maneira soberana e irresistível por meio da qual ele se apodera da alma humana. Esse mesmo amor também se diz, doce e perfeito quando se refere a seu objeto – a própria Razão Divina, o logos que é o próprio amado e o próprio amor.

A partir dessa referência a Orígenes e seus desdobramentos na mística cisterciense, vou transcrever aqui essa fusão de eros e ágape na linguagem dessa mulher laica do século XII, para que ela mesma responda a essa pergunta: “A alma: Oh Amor, esta carta eu escrevi da sua boca. Agora, dá-me, Senhora, o seu selo [a sua garantia].O amor: Seja lá quem for que foi bem sucedido em amar Deus mais do que a si, sabe bem onde encontrar a garantia [selo]. Ele permanece entre nós dois (MM,I,3)”.

E, seguindo o Das flieBende Licht der Gottheit, a síntese de Mechthild a respeito da alma que se faz na Trindade se dá no diálogo instrutivo entre a alma e Deus: “Você deve pedir para Deus amar você [apaixonadamente] passionalmente, com frequência, e por muito tempo [longamente]; então você deve se tornar pura, bela e sagrada. Ah, Senhor, ame-me apaixonadamente [passionalmente], ame-me [frequentemente] sempre e ame-me longamente. Pois, quanto mais apaixonadamente você me ama, mais pura eu me torno. Quanto mais frequentemente você me ama mais bonita eu me torno. Quanto mais longamente você me ama, mais sagrada eu me tornarei aqui na terra” (MM,I,23).

Como Deus responde à alma: “Amar você apaixonadamente vem da minha natureza, porque eu sou amor em si. Amar você frequentemente vem do meu desejo, pois eu desejo ser amado apaixonadamente. Amar você longamente vem do meu ser eterno, pois eu sou sem fim e sem começo” (MM,I,24).

Mechthild continua recebendo as instruções de Deus por meio das quais ela deve manter as virtudes que compõem a sua solidão, e, provavelmente, não se tratam das virtudes externas, mas sim daquelas que a fazem ser merecedora da infusão da deidade eterna. No vazio que restar do desprendimento do medo e da vergonha ficará somente o desejo da alma que Deus infunde e preenche com o seu próprio desejo: “E então você deve se desprender de você ambos, o medo e a vergonha, e todas as virtudes externas. Mais precisamente, aquelas sozinhas que você carrega dentro de você. Você deve cultivar para sempre. Estes são seus anseios nobres E o seu desejo sem limites. Esses eu devo preencher para sempre com minha generosidade sem limite” (MM. I,44).

A alma nua coincide com o Deus glorioso e bem adornado, na eternidade, na paz e na única possibilidade da vida sem morte. “Senhor, agora eu sou uma alma nua e você em você mesmo é um Deus bem adornado. Nossa porção compartilhada é a vida eterna sem morte. Então, ambos os desejos vem sobre eles – uma paz abençoada. Ele se entrega a ela, e ela se entrega a ele. O que acontecerá, ela – alma – sabe, e é o que basta [e isto é bom para mim ou por isso estou consolada], mas isso não pode ser para sempre. Quando dois amantes se encontram secretamente, eles devem sempre se separar, inseparavelmente (MM. I,44)”.
O conhecimento, ou seja, “o saber que sabe”, reside na alma dissolvida que, a despeito do júbilo e da paz abençoada, que corresponde ao êxtase místico do matrimônio, torna-se o saber constituído no desdobramento dessa união.


IHU On-Line – Em sua obra Das flieBende Licht der Gottheit, Mechthild escreve e narra suas visões e experiências místicas. Que linguagem e simbologia são por ela empregados nessa narração?

Maria José Caldeira do Amaral –
A luz que flui da deidade (Das flieBende Licht der Gottheit) é uma expressão escrita por uma mulher sentida como fonte de luz – amor absoluto. Segundo Hans von Balthasar , nessa literatura vislumbram-se vários planos e significados: um primeiro plano, cosmológico e simbólico, com características de um texto profético similar ao de sua antecessora Hildegard de Bingen, escritora e mística medieval, morta em 1179; um segundo plano, no qual o texto bíblico – Cântico dos Cânticos – está presente em seus escritos, porém, não de forma interpretativa, mas sim dimensionado como um processo interior, como uma experiência interna; e num terceiro plano, Mechthild alcança certo radicalismo místico como o de Mestre Eckhart, a partir do qual o esvaziamento e a negatividade não estão a serviço da impossibilidade da expressão, mas sim a serviço de um caminho para o conhecimento da experiência de Deus. Para Mestre Eckhart, a descrição mística é sempre negativa, isto é, de Deus só podemos dizer o que Ele não é, por meio do aniquilamento de qualquer intencionalidade no discurso.

Mechthild escreveu um livro de natureza paradoxal, no qual a diversidade de formas e gêneros literários encontrados é o que ele considera a própria unidade em seus escritos. O esforço da autora está colocado na fragmentação, nos deslocamentos e na ambiguidade intrínseca da linguagem. Essa unidade se traduz no termo continuamente utilizado, minne, em torno do qual a expressão de amor se inspira na literatura cortês alemã no Das flieBende Licht der Gottheit.

Especificamente no Livro I, esse diálogo se dá entre a alma, senhora e rainha (frouwe kúnegin), e o amor, senhora amor (frouwe Minne). De acordo com a análise de alguns estudiosos, especialmente a de Elizabeth Alvilda Petroff, minne (desejo e amor) é um termo feminino e significa o desejo e o anseio por amor e, ao mesmo tempo, a natureza do amor e da alma. É importante, para o leitor, o cuidado ao sentir essa fusão de desejo e amor e a forma como opera no discurso de Mechthild: a alma – chamada de senhora e rainha – e o amor – personificado na linguagem como “senhora amor” – demonstram um tipo de dependência no que diz respeito à origem e à natureza da alma em amor e desejo (minne) e, ao mesmo tempo, do amor que é desejo (minne).

No diálogo entre a alma (frouwe kúnegin) e o amor (frouwe minne), o amor aparece como superior àquele amor que está na própria alma, porém, é também o mesmo amor – minne (o amor e o desejo) da alma. Essa dependência da alma em relação ao amor se dá no sofrimento causado pela senhora amor (frouwe minne) à senhora e rainha (frouwe kúnegin) – alma, pois a senhora alma é tomada por ele. O amor, então, aponta para o desejo verdadeiro da alma de perder sua condição terrena para adquirir a liberdade celestial: o conhecimento essencial que é desejo de Deus e desejo original da alma. A ação do amor coincide com o reconhecimento da alma de seu desejo, de sua constituição necessariamente disponível atrativa e desejante, entregue a Deus. Mas a alma, debatendo-se nesta lamentação, só se conforma com esse estado desejoso quando lhe é permitida, pelo amor, a posse dele mesmo (então, me possui). Só assim ela é capaz de compreender tal sofrimento, sendo essa ação o próprio sofrimento. E esse diálogo não é um capricho linguístico ou textual: é a expressão do sofrimento da alma em consonância com o sofrimento da paixão de Cristo (você devorou minha carne e meu sangue). A alma é tomada por minne (amor e desejo) a partir dessa união mística que garante essa unidade, da qual falamos.


IHU On-Line – Como se deu a relação entre Mechthild de Magdeburgo e as instituições eclesiais, sociais e políticas de sua época?

Maria José Caldeira do Amaral –
A questão da experiência mística sempre tem problemas com autoridades eclesiais e a instituição religiosa. Em relação à Mechthild, não temos referências suficientes para afirmar conflitos graves. Em algumas passagens ela escreve que teme que seus escritos sejam queimados, que ela não sabe o latim e que seu alemão também é frágil, que ela escreve e diz tudo o que diz porque o amor de Deus a leva a escrever. Na história de vida das místicas em geral, é comum encontrarmos o relato da presença de um confessor espiritual.

Mechthild vai para o convento de Helfa, na Saxônia, em 1270. Sua saúde estava debilitada, principalmente sua visão estava comprometida. Mechthild agradece a Deus sua acolhida em Helfa, no capítulo intitulado Got dem menschen dienet (Como Deus serve o homem), no Livro VII, escrito em Helfa. A história da obra de Mechthild é interessante para pensarmos um pouco nas relações de sua vida religiosa com as autoridades eclesiais: a primeira tradução do Das flieBende acessível ao leitor moderno foi realizada a partir de sua primeira versão do manuscrito traduzida para o alto alemão medieval realizada por Heinrich de Nördlingen, no século XIV. O Interesse pelos escritos de Mechthild por parte de leitores medievais está também na versão dos seis primeiros livros de Mechthild, datada no final do século XIII, em latim, realizada pelos Dominicanos de Halle e assim denominada: Lux divinitatis fluens in corda veritatis. O Das flieBende Licht der Gottheit é composto por sete livros escritos em ordem cronológica: os livros I a VI foram escritos entre 1250 e o livro VII foi composto durante os anos que Mechthild viveu no convento de Helfa. Mechthild de Magdeburgo, Mechthild de Hackerborn (1241-1298) e Gertrudes de Helfa, a Grande (1256-1301), foram contemporâneas e viveram no Mosteiro de Helfa, que floresceu rapidamente e contava com mais de cem participantes graças ao trabalho dedicado da abadessa Gertrudes, a Grande, e que produziu “o maior e único corpus de registros místicos femininos” da época.

Alguns pesquisadores acreditam que o fato do livro de Mechthild estar agrupado, em sua versão para o latim, aos livros de Mechthild de Hackerborn e Gertrudes de Helfa coincide, possivelmente, com uma circunstância histórica, mais do que uma afinidade. Os escritos de Mechthild são visivelmente descomprometidos com a linha tradicional monástica, tanto teológica como litúrgica, seguida pelas monjas de Helfa que escrevem em latim, a língua sagrada da Igreja. O livro de Mechthild está mais identificado com os escritos religiosos do norte da Europa do que contextualizado na literatura sagrada das mulheres religiosas da Alemanha. O teor, a semelhança e o sentido dado na construção da origem da alma na trindade, a via unitiva substanciada pela ideia da alma incriada e a ênfase na mística nupcial, fazem com que o Das FlieBende Licht der Gottheit esteja próximo ao conteúdo dos registros pertencentes à mística renana.


IHU On-Line – Como você afirmou, Mechthild de Magdeburgo também foi beguina. Como o movimento beguinal inspirou a sua vivência mística?

Maria José Caldeira do Amaral –
No âmbito das beguinas, essa perspectiva amorosa e erótica se sustenta com a influência da tradição monástica cistercience, a partir da interpretação literal e antropomórfica da linguagem bíblica, principalmente do Cântico dos Cânticos, iniciada por Orígenes e continuada na Idade Média por São Bernardo de Claraval. O fino amor, o amor cortês, o desejo, a distância, a falta, a loucura, o amor violento, o amor insano, o verdadeiro Amor, o aniquilamento estão lavrados na linguagem da experiência do amor de Deus na alma. Uma linguagem muito distante da linguagem scholar da época, mas que a contem em si mesma.

Existe uma diferença importante em relação a essas influências: tanto os autores da escola monástica do século XII sobre o Cântico dos Cânticos como as mulheres místicas do século XIII estavam convencidos de que o verdadeiro amor de Deus envolvia o sentido de violência e veemência, como a violentia caritas de Ricardo de São Vítor , por exemplo; mas a linguagem das mulheres religiosas ultrapassava a linguagem masculina na ênfase que era dada por elas no efeito devastador da loucura desse amor. O amor esponsal entre Deus e a alma, para elas, não era somente o amor de uma alma finita direcionada a algo infinito; o amor mútuo (amor mutuus) presente na teologia da mística monástica é o amor esponsal entre Deus e o homem no qual está o mais pleno e mais elevado de todos os afetos (affectus). Mechthild descreve essa mutualidade como contínua e verdadeiramente única: uma união de profundidade abissal na qual a alma torna-se completamente equalizada ao Amado e ao Amante Infinito.
Mechthild de Magdeburgo, Hadewijch de Antuérpia e Marguerite Porete integram um grupo de mulheres beguinas cujos escritos suplantam algumas características comuns, dentre elas: a presença da experiência carnal e espiritual no caminho para a experiência de união com Deus. Não sabemos nada a respeito da biografia de Hadewijch, apenas algumas menções de sua vida em seus manuscritos que aparecem em algumas bibliotecas religiosas no século XV. No século XIX, alguns estudiosos redescobrem suas cartas, poemas e visões. Um dos manuscritos (o de Louvaina) está nomeado como “a bem aventurada Hadewijch”, qualidade atribuída às beguinas: foi ela quem deu a maior contribuição à nascente corrente espiritual nórdica, habitualmente chamada dos renano-flamengos (os países baixos – nederland – são designados, na época, como a Holanda, Bélgica e a região de Flandres ou província Flamenga). Hadewijch era de Antuérpia, falava e escrevia no dialeto da Província de Brabante, o chamado médio-neerlandês. Marguerite Porrete, beguina francesa de Hainault, valenciana, morta pela Inquisição em 01-06-1310, em Paris, escreve o Le mirroir des âmes simples et anienties et qui seulement demourent em vouloir et desir d’amour. Não há registros sobre sua história de vida. O diálogo entre o amor, a alma e a razão constrói o movimento central da linguagem do Le mirroir. O amor (Dame Amour) e a alma (L’âme) podem ser identificados como os autores do livro que são também Deus, e o amor (Dame Amour) é, ainda, a força dentro da alma responsável pelo aniquilamento da alma e de Deus. A razão aparece como a principal opositora ao amor com a qual a alma entra em duelo para que ela (a razão) seja vencida no processo de aniquilamento, ainda que Marguerite descreva a paradoxal participação da razão na descrição da ação transformadora no Le mirroir. As almas simples e nadificadas são aquelas que ultrapassam as próprias virtudes e a própria razão no movimento de desprendimento e aniquilamento total, pois é no lugar desta nadificação que se encontra o espelho que reflete Deus.


IHU On-Line – No artigo apresentado em setembro de 2009 no V Congresso Sul-Americano de Psicologia Junguiana, em Santiago do Chile, você analisou os comentários de Carl Gustav Jung sobre Mestre Eckhart e Mechthild de Magdeburgo. Que relações existem entre esses pensadores?

Maria José Caldeira do Amaral –
Como psicóloga clínica, não posso ficar isenta à possibilidade de conversar com a mística (a experiência de Deus). Conheci Mechthild de Magdeburgo no livro Símbolos da transformação de C. G. Jung. Nós, junguianos, acreditamos na capacidade e no empenho de Jung como pesquisador da alma humana. A psicologia e a mística situam-se em oposição e na fronteira de si mesmas com conceitos desenvolvidos pela pesquisa em ambas: destino, liberdade, origem, substância, condição humana, sofrimento, morte, ordem, desordem, enfim.
Minha intenção, no artigo, foi conversar com esses pensadores a partir de alguns conceitos da psicologia analítica e minha constatação foi a de que a intuição de Jung rumo à coincidência de opostos – conceito extraído de Nicolau de Cusa  – à luz da função transcendente – conceito desenvolvido por ele após quarenta anos de estudo e prática clínica – trouxe contribuições importantes acerca da investigação original da experiência de Deus e a psique. O conceito, discutido aí, foi o “si mesmo” – conceito que, para Eckhart e Mechthild, ultrapassa o sentido arquetípico de Jung. Mas Jung sabia de suas limitações.
Numa de suas passagens ele mesmo se pergunta: “Pode o homem alcançar um aumento adicional de consciência? Existe um real valor no fato do homem progredir moral e intelectualmente? Esta é uma questão. Eu não quero forçar ninguém em relação meu ponto de vista. Confesso que me submeti ao divino poder desse insuperável problema e conscientemente e intencionalmente tornei minha vida miserável porque eu queria que Deus ficasse vivo e livre do sofrimento que o homem colocara sobre Ele ao amar mais a sua razão do que as intenções secretas de Deus. Existe um bobo místico em mim que prova ser mais forte do que toda minha ciência”.


IHU On-Line – Como a psicologia compreende a experiência de Deus e a experiência mística? E o que estas últimas ajudam a revelar sobre a psique humana?

Maria José Caldeira do Amaral –
A psicologia é filha do iluminismo e, portanto, sua investigação parte de uma ciência que é a investigação empírica do processo, dinâmica e desenvolvimento psíquico. O modelo clínico deriva da medicina. Freud , Jung e outros estavam inseridos na suficiência da razão humana ao desenvolverem suas teorias. Mas tomando os dois como exemplo, a psicologia do inconsciente encontra controvérsias epistêmicas e os desdobramentos teóricos de ambos esbarram no campo da experiência religiosa, ainda que de maneiras diferentes: enquanto Freud não parece estar preocupado com os desígnios de Deus, sua teoria abre a discussão para a condição humana de desejo e de mal estar, Jung intui a mesma condição, porém amplia a possibilidade do desejo instintual para além do princípio do prazer.
O fato é que os conflitos entre psicologia e experiência mística ou religiosa abrem um debate importante sobre a condição humana. A meu ver, uma experiência última, individual e única ascende o debate sobre a indeterminação da psique humana e essa conversa entre experiência humana e experiência psíquica é séria e deve ser verdadeira: a natureza da psique e a natureza divina são opostas para a psicologia analítica, por exemplo, e a dinâmica do numinoso se dá na coincidência dessa oposição.

Para além da psicologia, as relações da mística com a teologia e com a filosofia são também controversas a despeito das negociações que possamos fazer ao abordar temas como aqueles referentes aos relatos da experiência mística. Negociações que, muitas vezes, nos levaram a correr o risco em denunciar nossas falsas aspirações e desejos, segundo as palavras da própria Mechthild de Magedburg. Acredito no colapso presente frente a essas tentativas.

Seguindo, ainda, a nossa autora alemã teríamos que estruturar nossa busca psíquica por meio de um estado anímico no qual Sunder das minste teil irs lebendes belibet mit dem lichamen als in eime sủssen schlaffe (MM. I, 2): apenas um menor pedaço (possível) da força de vida permanece no corpo como num sono doce e profundo. Esse é o estado mais ou menos consciente com o qual ela descreve a infusão amorosa na alma. O estado anímico no qual permanece um pedaço – o menor possível – de força de vida no corpo é um estado, considerado como uma espécie de colapso psíquico, filosófico e teológico. A alma dissolvida não é capaz nem de ser, nem de criticar, nem de construir qualquer conhecimento acerca de Deus. Não é Deus, não constrói nada em relação a Deus e não critica nada do que pode ser falado em relação à experiência em Deus; apenas sabe que não há como saber a respeito de uma alma em renúncia que toca e é tocada por algo que teoria alguma jamais tocou.

Na união mística não há pensar, nem agir, nem fazer, nem querer, tampouco ser. Além disso, o conhecimento não pode ser normativo. Não há como normatizar uma experiência subjetiva, onde a própria subjetividade e identidade psicológicas se encontram dissolvidas.


IHU On-Line – Como a mística em geral – mas também a de Mechthild – pode inspirar ou tensionar a reflexão sobre Deus ou o Mistério transcendente?

Maria José Caldeira do Amaral –
A pesquisa em torno dos textos e relatos místicos, em minha opinião, é o campo de estudo que mais inspira, tensiona e instiga não somente a reflexão sobre o mistério (mística quer dizer mistério) de Deus, mas tensiona e instiga muito também a nossa reflexão sobre a realidade e a condição humana. Por isso, nesse mundo secular, os relatos místicos são vistos ou como patologia ou com muita descrença. A ideia de que a graça divina é soberana sobre a pretensa razão humana é algo que a humanidade não consegue suportar. Novamente, nas palavras de Mechthild de Magdeburgo, apreender que o amor e a misericórdia divina são, no mínimo, proporcionais à vida miserável do homem é inconcebível para a maioria de nós modernos; e que, ainda nas palavras da beguina alemã do século XII, também chamada de mestra e mãe da mística renana – “todo nosso conhecimento, sem o fogo do amor, é arrogância e hipocrisia” –, nos coloca diante de um certo constrangimento que, cá entre nós, sustenta um mundo no qual Deus pouco pode fazer, como diriam, de maneira geral, por exemplo, alguns pensadores da mística ortodoxa cristã, tais como Gregório Palamas , Nicolas Berdyaev , Paul Evdokimov , para penetrarmos em outro universo para além do tempo e espaço da mística feminina medieval cristã.

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