Edição 385 | 19 Dezembro 2011

Hildegard e Hadewijch: mística da luz viva, mística do amor

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Moisés Sbardelotto


IHU On-Line – Hildegard também é reconhecida como uma grande poetisa, compositora e dramaturga. Como você analisa seu veio artístico?

 

Felisa Elizondo – Desde meados do século passado, os estudos sobre essa mulher excepcional vêm se sucedendo com um bom ritmo, de modo que, agora mesmo, contamos com uma bibliografia ampla em que não faltam trabalhos sobre seus saberes de ciências naturais e medicina, sua arte culinária, e sobre as iluminuras dos códices e, certamente, sobre suas criações poéticas e musicais.
Reconhece-se que harmonia e voz foram altamente valorizadas por essa abadessa beneditina, que deixou um bom número de composições musicais “sem ter estudado nem neumas  nem canto”, segundo se afirma na Vida, livro que recolhe em vários lugares o próprio testemunho de Hildegard. O fato de que, além da Symphonia e de outras composições musicais, ela escreveu livros como Physica, Causa el curae, Subtilitates diversarum craturarum e muitas páginas, intercaladas em outras obras, em que aparece uma compreensão do cosmos que deriva da antiguidade e se mantém nos autores medievais, dá alguma ideia da cultura de Hildegard.
As imagens tomadas da natureza ou das descrições bíblicas são abundantes, e é marcante a simbologia – também de influência bíblica – que preenche seus textos. Mas, nela, o símbolo por excelência é a luz.

IHU On-Line – Uma das grandes contribuições de Hildegard foi como reformadora monástica. O que isso revela acerca de sua mística e de sua relação com o período social e histórico em que ela vivia?

Felisa Elizondo – Hildegard percebe as debilidades da Igreja. Nas visões, e consequentemente em seu profetismo, reflete-se uma forma de entender a história como história de salvação que continua de um a outro Testamento, até alcançar o presente. Uma leitura tipológica e alegórica da Bíblia, que descobre sentidos profundos “por trás do véu da letra”, segundo uma expressão que data daquele tempo, proporciona-lhe todo um mundo de símbolos que aparecem em suas descrições. Segundo essa convicção, os textos bíblicos, interpretados simbolicamente, são aplicados à vida da Igreja e à vida das pessoas. Daí o recurso da autora às páginas bíblicas para aplicar seu sentido ao que acontece em seu mundo e à conduta de seus contemporâneos, aos quais não poupa críticas severas.

IHU On-Line – Qual a sua opinião sobre a pensadora e a escritora Hildegard, que escreveu sobre suas visões, teologia, física e medicina? Quais foram as suas contribuições à teologia e à ciência desse tempo?

Felisa Elizondo – As três obras maiores respondem à sua experiência visionário-profética. A primeira, Scivias (Conhece os caminhos), mostra no título que obedece à mesma voz que lhe ordena escrever. O livro reúne 26 visões distribuídas em três partes. As da primeira referem-se a Deus, à criação, ao mundo e ao ser humano; as seis da segunda, à obra da salvação e à missão e ao tempo da Igreja; as reunidas na última parte, à atuação de Deus e do homem. Algumas dessas visões, nas quais abunda a luz, foram ilustradas, senão pela própria, ao menos em um ambiente próximo a ela, com esplêndidas miniaturas, como mostram os códices e fac-símiles que foram conservados .

A segunda obra é Liber vitae meritorum, com visões do homem, de Deus e de Cristo, e a terceira, o Liber divinorum operum, que contém o relato de dez visões que aparecem ilustradas em um códice conservado na Biblioteca pública de Lucca. Assim, boa parte das muitas páginas devidas a Hildegard são o relato e explicações de “visões”, um tipo de experiência em que se conjugam a visão e a audição. Uma experiência em que o dominante é a luz, feita sombra, centelha, fulgor, chama: “luz viva”.

Assim, na carta que escreveu em 1178 para Gilberto de Gembloux, ela confessa: “Desde minha infância, quando ainda não tinha nem os ossos, nem os nervos, nem as veias robustecidas, até agora, que já tenho mais de 70 anos, sempre desfrutei o dom da visão em minha alma. Na visão, meu espírito ascende, tal como Deus quer, até a altura do firmamento e até a mudança dos diversos ares, e se espalha entre povos diversos, em regiões longínquas e em lugares que são para mim remotos. E, como vejo essas coisas desse modo, as contemplo segundo a mudança das nuvens e das outras criaturas. Não ouço essas coisas nem com os ouvidos corporais, nem com os pensamentos de meu coração, nem percebo nada pelo encontro de meus cinco sentidos, mas sim em minha alma, com os olhos exteriores abertos, de tal forma que nunca sofri a ausência do êxtase. Vejo essas coisas desperta, tanto de dia quanto de noite (…).

“A luz que vejo não pertence a um lugar. É muito mais resplandecente do que a nuvem que leva ao sol, e não sou capaz de considerar nela nem sua altura nem sua longitude. Se me dizes que essa luz é a sombra de luz viva e, tal como o sol, a lua e as estrelas aparecem na água, assim resplandecem para mim as escrituras, sermões, virtudes e algumas obras dos homens formados nesta luz (…). E as palavras que vejo e ouço na visão não são como as palavras que soam da boca do homem, mas sim como chama cintilante e como nuvem que se move em ar puro. De modo algum sou capaz de conhecer a forma dessa luz, como tampouco posso olhar perfeitamente para a esfera solar (…).

“Tudo o que vejo e ouço nessa visão minha alma o apura como de uma fonte, embora esta permaneça sempre cheia e inesgotável. Minha alma não carece em nenhum momento da luz que eu chamo sombra de luz viva, e vejo-a como se contemplasse o firmamento sem estrelas, em uma nuvem luminosa, e nela vejo coisas das quais falo com frequência, e também vejo o que respondo às perguntas, e procede do fulgor da luz viva”.

Hildegard morreu em 17 de setembro de 1179, segundo se lê em Vida, que fala de um crepúsculo de domingo iluminado por dois arcos brilhantíssimos e de signos que vinham mostrar a claridade com que, definitivamente, ela tinha sido iluminada. Assim resumiram seus biógrafos, à maneira de uma época, de uma vida e de uma obra em que claramente domina a luz.

IHU On-Line – Por outro lado, qual a sua opinião sobre Hadewijch de Antuérpia e o seu olhar sobre o Mistério?

Felisa Elizondo – O esquecimento dos escritos de Hadewijch de Antuérpia (1220-?)  é um dos mais marcantes entre os que sofreram os textos escritos por mulheres. Depois de ter sido elogiada por João de Louvain como “mestra” e de ter influenciado em Ruisbroec, como hoje asseguram os estudiosos, ela teve de esperar ser redescoberta por um poeta que havia publicado a tradução das obras das Bodas de Ouro daquele místico e merecer em 1920 uma edição crítica. Sua mística é, muito marcadamente, uma mística do Amor.

IHU On-Line – Como se deu a relação entre Hadewijch de Antuérpia e o movimento beguinal? Que contribuições esse movimento trouxe à mística de Hadewijch?

Felisa Elizondo – As escassas notícias biográficas sobre essa autora tiveram de ser deduzidas de seus escritos, nos quais ela menciona outras pessoas e se refere a algumas tensões vividas no contexto cada vez mais bem analisado das “mulheres religiosas” ou beguinas. Hadewijch inscreve-se nesse movimento que, em diversas regiões europeias, ensaiou, fora dos claustros, uma vida pobre e dedicada à ação caritativa, ao mesmo tempo em que cultivava uma profunda interioridade. De fato, em suas cartas ela se refere à frugalidade e à misericórdia com que se conduziu e alude às tensões surgidas no grupo, assim como à incompreensão por parte daqueles a quem chama de “estranhos”. Uma incompreensão que derivou rapidamente em suspeita sobre “mulheres que pretendiam conhecer o que não lhes incumbe”, como sentenciou Henrique de Gante .
A “mística do Amor” tem em Hadewijch um expoente de relevo singular e supõe reação a uma teologia que, por influência de diversos filósofos, falava da incognoscibilidade de Deus e levava à separação entre as disputas teológicas e a espiritualidade. Mas são tempos cruciais em que tanto São Bernardo como Guilherme de Saint Thierry escrevem sobre o insubstituível do amor no conhecimento, uma questão a que o próprio Tomás de Aquino dedicará atenção em várias de suas obras para valorizar altamente esse saber que é o devedor do amor.

IHU On-Line – Quais são as ideias ou conceitos mais centrais da mística de Hadewijch de Antuérpia? Que Deus ou Transcendência a sua experiência mística nos revela?

Felisa Elizondo – Toda a obra escrita que nos chegou com a assinatura de Hadewijch de Antuérpia trata do amor como fonte e caminho para o Amor: 45 poemas estróficos, 16 poemas de rima mista, 31 cartas e 14 visões. O amor, que procede de Deus e torna possível a relação do homem com Ele, e o Amor como encarnação de Deus (Minne, um feminino na língua da autora) são o argumento. Um argumento único cujas variações percorrem esses textos, considerados hoje com os primeiros escritos no holandês nascente.
Nos poemas, ela mostra um domínio da lírica trovadoresca e um conhecimento nada desprezível sobre teólogos e autores espirituais. Mas poemas, cartas e visões refletem um itinerário pessoal e se dirigem a um círculo próximo para mostrar o caminho do amor: “O que eu considero primordial nas Escrituras é o mandato do amor que Deus deu a Moisés” (Carta XI, 2). A experiência a que a autora se remete seguidamente é a de ter sido “dominada pelo Amor”, “ferida pelo desejo insaciável do ‘Todo-Amor’”. E falam da “natureza do Amor”, centro de sua experiência e ensino.

IHU On-Line – Que simbologia se destaca nas obras de Hadewijch de Antuérpia? Como sua mística influenciou outros pensadores ou místicos cristãos?

Felisa Elizondo – Sobre a pauta livremente seguida de temas da teologia tradicional como a imagem de Deus no homem e a deificação, Hadewijch convida seguidamente a crescer no amor e nas virtudes “que prestam honra a Deus”. Aceitando toda a pena “com orgulho valente”, até alcançar o bem que é “a grande totalidade de Deus” (Carta VI), ela traça os marcos de um itinerário, como ocorre com a alegoria do peregrino e das “doze horas inomináveis” das Cartas XV e XX.
“Dominada por um Amor apaixonado”, como ela mesma reconhece, Hadewijch cantou como poucos o desejo, a calma e a tempestade, o gozo e o tormento do amor. Em um de seus poemas de rima mista, ela retoma nomes que a Bíblia lhe indica e vai glosando como o amor é laço, luz, carvão, fogo, orvalho e fonte viva, até chegar a dizer, em uma expressão extremamente chamativa:
“O sétimo nome é Inferno (…)
E como o Inferno tudo arruína,
Não se alcança no amor outra coisa
Que tortura sem piedade (…),
Aquele que conheceu o Amor e suas idas e vindas,
experimentou e pode entender
por que é verdadeiramente apropriado
que o Inferno seja o mais alto nome do amor” (Canção XVI)
Diz-se que, se a Idade Média chega a um auge no tratamento do amor, “arte de todas as artes”, nas palavras de Guilherme de Saint Thierry, Hadewijch expressou o que há de mais terno, ousado e sublime no amor de Deus e no amor humano.


IHU On-Line – Qual a atualidade do pensamento de Hadewijch e que contribuições ele pode dar ao debate teológico contemporâneo?

Felisa Elizondo – A obra dessa beguina – como aconteceu mais tarde com o próprio movimento beguinal – ficou em silêncio, embora tenha circulado pelas mãos de alguns autores que sustentaram a incidência do amor no conhecer. E deve ter corrido de mão em mão entre mulheres leigas e devotas, das quais apenas restaram alguns nomes próprios. Sua redescoberta coincidiu com momentos em que a mística é considerada como a vivência profunda da fé, que não se deixa esgotar por nenhuma especulação e transcende toda a ciência.

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