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Moisés Sbardelotto | Tradução de Benno Dischinger
As experiências místicas remetem às experiências do sujeito. Mas também são “experiências singulares que se destacam porque superam o modo de relação sujeito/objeto vigente no resto das experiências humanas”. E todos esses aspectos “remetem, como sua raiz, a algo mais fundamental que outorga a todas essas experiências seu verdadeiro significado. É a referência a um termo, o dado na experiência, seu conteúdo, que os sujeitos designam com os mais variados nomes: o Todo, o Absoluto, o Divino, o Tao, Brama, Deus, o Espírito”. Para Juan Martín Velasco, professor emérito de Fenomenologia da Religião da Universidade Pontifícia de Salamanca e da Faculdade de Teologia San Dámaso, na Espanha, para entender o fenômeno religioso é preciso entender o “mistério”, aquela “realidade anterior e superior – um supra e um prius – presente em todos os sistemas religiosos e que pode inclusive manifestar-se ao homem sob formas não religiosas”.
Esse mistério também foi “entendido” por Teresa de Jesus, que marcou a história do pensamento – “adiantada à experiência moderna da subjetividade” –, a história da Igreja – “como promotora de uma reforma que serviu de modelo à renovação católica da vida religiosa” – e até a história em si – “pela influência social que sua forma revolucionária de viver a condição feminina exerceu”, afirma, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Inspirado em Teresa, Velasco questiona os cristãos de hoje: “Saberemos interpretar, como Igrejas, o sinal dos tempos que supõe, por uma parte, o abandono de tantos de seus membros, e, por outra, a sede de experiência, o desejo de transcendência, o interesse pela mística, a busca do espiritual que manifestam grupos cada vez mais importantes e variados de pessoas?”. Mas oferece uma resposta confiante: “Místicos hoje? Estou certo que sim. Místicos enquanto existam seres humanos, embora provavelmente sob formas tão variadas como eles e os tempos em que lhes caiba viver”.
Juan Martín Velasco é professor emérito de Fenomenologia da Religião da Universidade Pontifícia de Salamanca, em Madri e da Faculdade de Teologia San Dámaso, especialista em temas relacionados à mística. É doutor em filosofia pela Universidad Católica de Louvain, na Bélgica. Foi reitor do Seminário de Madri (1977-1987) e diretor do Instituto Superior de Pastoral da Universidade Pontifícia de Salamanca durante 16 anos. Em português, publicou Doze místicos cristãos (Ed. Vozes, 2003) e A experiência cristã de Deus (Ed. Paulinas, 1994). Dentre suas outras obras, destacamos El fenómeno místico (Ed. Trotta, 1999) e Introducción a la fenomenología de la religión (Ed. Trotta, 2006).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que é mística para o senhor? Como a interpreta no contexto contemporâneo?
Juan Martín Velasco – Os elementos visíveis do fenômeno místico remetem, como elemento central do mesmo, às experiências do sujeito. São experiências singulares que se destacam porque superam o modo de relação sujeito/objeto vigente no resto das experiências humanas. Elas produzem ou comportam com frequência estados alterados de consciência; vão acompanhadas de profundas comoções afetivas; e levam consigo um alto índice de referência à realidade, o qual produz no sujeito a segurança de estar com o verdadeiramente real.
Mas todos estes aspectos remetem, como sua raiz, a algo mais fundamental que outorga a todas essas experiências seu verdadeiro significado. É a referência a um termo, o dado na experiência, seu conteúdo, que os sujeitos designam com os mais variados nomes: o Todo, o Absoluto, o Divino, o Tao, Brama, Deus, o Espírito. Uma realidade que comporta em todos os casos e sob essa enorme variedade de nomes uma série de traços originais que conferem sua peculiaridade última à experiência pela qual o sujeito entra em contato com ela. Qual é essa realidade?
Se nos perguntássemos por essa realidade somente a partir dos testemunhos da tradição mística cristã teríamos que identificá-la com Deus, sob a forma de Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que se nos dá como Espírito vivificante. Mas a presença de experiências de tal tipo em tradições religiosas que desconhecem essa forma de identificação, que não dispõem de uma representação para ela em termos propriamente teístas, ou inclusive carecem de toda representação para a realidade à qual remetem, força o estudo comparado das experiências místicas a buscar uma categoria para a identificação dessa realidade mais ampla do que aquela que constitui a representação cristã de Deus. Em nossa maneira de entender o fenômeno religioso essa categoria está resumida no termo “mistério”. Com ela nos referimos à realidade anterior e superior – um supra e um prius – presente em todos os sistemas religiosos e que pode inclusive manifestar-se ao homem sob formas não religiosas, como sucede em algumas formas de espiritualidade à margem das religiosas nas sociedades submetidas a uma forte secularização e a uma aguda crise das religiões tradicionais.
A leitura das referências religiosas à realidade significada com essa categoria nos símbolos, nas orações e nas representações conceituais das teologias nos tem levado a descobrir alguns poucos traços comuns a todas essas representações, configurações e concepções do “além” absoluto ao qual remetem os diferentes elementos de todos os sistemas religiosos. Tais traços são: a absoluta transcendência, expressa simbolicamente em sua condição de invisível, em sua total “outridade” em relação com todo o mundano, em sua superioridade absoluta e, sobretudo, no fato de que o homem só pode entrar em contato com ela transcendendo as possibilidades de todas as suas faculdades e passando pela noite ou negação e superação de todas elas.
Podemos concluir que a experiência dos místicos, cume da experiência religiosa, remete como ao seu conteúdo, seu termo e sua raiz, à Presença originante da mais absoluta transcendência no mais íntimo da realidade e da própria pessoa, que estabelece com ela uma relação inteiramente original.
Se tivesse que resumir num só traço o peculiar da experiência mística em relação com o comum das experiências religiosas, diria que se trata de uma experiência imediata por contato amoroso com a realidade experienciada. “Imediata”, porque isso é justamente o que o místico anelou ao longo de todo o processo: “Descobre tua presença / e mate-me tua vista e formosura...”. Daí que São João da Cruz, por exemplo, fale de sua experiência como “toques substanciais de divina união entre a alma e Deus”; “toque somente da divindade na alma, sem forma nem figura alguma intelectual nem imaginária” . Porém com uma imediatez que, dada a absoluta transcendência da Presença com a qual o sujeito entra em contato, não pode ser mais do que “imediatez imediata”, porém mediada na própria alma convertida em meio da experiência da união.
IHU On-Line – No contexto das sociedades contemporâneas, especialmente nas crises econômicas e sociais dos últimos anos, ainda há espaço para a experiência mística? Qual a atualidade da mística?
Juan Martín Velasco – Alguns traços da atual situação parecem tornar nossa época refratária a qualquer forma de mística. Pensemos na grave crise das religiões estabelecidas, o crescimento da descrença e a crise de Deus, que poderia estar afetando em boa medida não poucas pessoas que creem. Sem embargo, não faltam indícios da aparição em sintomas às vezes ambíguos, de profundas necessidades humanas que deixam insatisfeita a cultura contemporânea somente científico-técnica e centrada no econômico como valor supremo. Disso dá conta a proliferação de novos movimentos religiosos e, sobretudo, o aparecimento de numerosas formas de busca espiritual com manifestações que contém não poucos traços, pelo menos no nível psicológico das experiências que suscitam, comuns com os que têm tornado presentes as tradições místicas. Em não poucos casos, alguns de seus representantes identificam como místicas suas próprias experiências e não receiam identificar-se a si mesmos como místicos, isso sim, sui generis.
Isso faz com que, se em outras épocas o problema mais importante para os estudiosos da mística era justificar a existência do objeto de seu estudo, o principal problema para eles agora é pôr ordem na exuberante floração de fenômenos que recebem esse nome e em discernir entre as formas religiosas e não religiosas de mística e, em nosso caso, sublinhar o que tem de peculiar a mística cristã.
Mas, a situação atual abre outro campo importante à atenção dos estudiosos da mística. Os místicos têm refletido ao longo da história as situações históricas em que viviam. Os de nossa época não são uma exceção. Assim, o “eclipse de Deus”, seu obscurecimento social e cultural, parece haver influído na agudização – para os grandes místicos de nosso tempo: Teresa de Lisieux, Dietrich Bonhoeffer , Teresa de Calcutá e outros – da passagem pela noite que toda verdadeira mística comporta.
Por outra parte, a sucessão de catástrofes humanitárias ao longo do século XX e sua continuação em nossos dias, na injustiça generalizada que condena massas de pessoas a formas desumanas de vida e a uma morte prematura, fizeram reaparecer os acentos proféticos em não poucos dos místicos atuais. Surgiu assim a mística de olhos abertos à injustiça e ao sofrimento que comporta, à mística de compaixão por suas vítimas, representada pela espiritualidade surgida no seio da teologia da libertação, com Madre Teresa de Calcutá, Simone Weil, Etty Hillesum e tantos outros menos conhecidos.
Assim, a situação de pluralismo religioso provocada pelo acesso à consciência planetária e o fato da globalização levou não poucos místicos cristãos: Thomas Merton, W. Johnston, entre outros muitos, a prestarem atenção às místicas presentes em outras tradições, sobretudo orientais, e a entabular com elas um diálogo “intrarreligioso” (R. Panikkar) no nível mais profundo da vida espiritual. Por último, talvez a situação atual de evidente crise do sujeito, de perigo de desumanização para os humanos, explique a aparição de estudos que começam a destacar a relação entre mística e humanismo e a inestimável contribuição à causa do homem que poderia supor a vida mística encarnada em sujeitos atentos à atual situação e sensíveis às oportunidades e aos perigos que comportam para o humano.
IHU-On-Line – Em sua opinião, qual a natureza específica da linguagem mística?
Juan Martín Velasco – A comparação das linguagens, comuns em muitos aspectos, das tradições místicas tem colocado em relevo uma série de traços que as caracterizam até o ponto de que se possa falar de um modus loquendi, de uma linguagem mística, ou uma linguagem dos místicos. Ela não se reduz a nenhum gênero literário preciso. Os místicos falam como tais sob formas poéticas, em relatos autobiográficos, em textos parenéticos e declarações com intenção pedagógica, e até sob a forma de reflexões de índole filosófica ou teológica. Naturalmente, em cada um de tais gêneros se manifestam de formas distintas os traços próprios da linguagem mística. Esses traços podem reduzir-se no essencial ao seguinte: a linguagem mística se propõe em todos os casos como linguagem de uma experiência e estreitamente ligada a ela. Disso resulta que nela, sobretudo em suas formas mais originárias, predomine a função expressiva da linguagem sobre todas as outras funções da linguagem humana. “A linguagem mística é necessariamente diversa da filosófica – e também da teológica, poder-se-ia acrescentar –, porque aqui se trata de tornar sensível a mesma experiência – e que experiência! –, a mais inefável de todas” .
Desta primeira propriedade da linguagem mística seguem-se todas as outras e, em primeiro lugar, a condição simbólica de todos os seus elementos. Não é somente o fato que a linguagem mística esteja esmaltada de símbolos; é que toda ela é simbólica. Basta aludir ao prólogo de São João da Cruz às Declarações a seus poemas para se ter expressões de uma clareza meridiana sobre o que impõe à linguagem mística sua condição simbólica.
A referência a uma realidade de outra ordem do que as que significam em seu sentido literal os termos que utiliza forçam o místico ao recurso constante ao paradoxo, à antítese, ao oxímoro. Essa mesma referência explica a presença nessa linguagem de constantes alusões à inefabilidade do que pretende expressar e a presença do silêncio como horizonte e clima – “tudo envolto em silêncio” (São João da Cruz) – no que o místico inscreve palavras que sempre considera insuficientes. Em definitivo, é a condição “anagógica” da experiência que está na origem da linguagem mística o que origina a necessária analogia, o caráter simbólico e metafórico de todos os termos de que se serve.
IHU On-Line – Em linhas gerais, quem foi Teresa de Ávila? Qual a atualidade de sua vida e obra?
Juan Martín Velasco – Teresa de Cepeda y Ahumada, Teresa de Ávila, Teresa de Jesus, como quis chamar-se a si mesma, é uma figura de talhe extraordinário. Seus dotes pessoais, seus escritos, sua ação reformadora lhe valeram um lugar na história da literatura espanhola, devido “à pureza e facilidade de estilo”, “graça e boa compostura das palavras”, “elegância desafetada que deleita em extremo” (Frei Luis de León); na história do pensamento, como adiantada à experiência moderna da subjetividade; na história da Igreja, como promotora de uma reforma que serviu de modelo à renovação católica da vida religiosa; e até na história em si, pela influência social que exerceu sua forma revolucionária de viver a condição feminina.
Um texto da santa resume com admirável concisão as razões de seu prestígio espiritual e de seu magistério. Essas razões não consistem em dotes ou méritos seus. Consistem numa tríplice mercê com que Deus a agraciou: “Porque uma mercê é dar o Senhor a mercê, outra é entender que mercê e que graça, e outra é saber dizê-la e dar a entender como é”. A mercê da qual fala é a estreita união com Deus no fundo da alma, uma presença dinâmica que é presente e dom permanente que origina no ser da pessoa sua condição de imagem, sua elevação à relação de filho de Deus. A segunda mercê: “Entender qual é a mercê e qual é a graça” caracteriza as pessoas que acederam ao nível da vida mística. Nelas a presença originante e divinizante, reconhecida e consentida pela fé, aflora ao nível da consciência e é vivenciada, sempre no interior da fé, difundindo-se num novo conhecimento, numa nova forma de querer e de viver, que dão transparência ao próprio sujeito e aos que vivem com ele, o manancial do qual brota sua vida.
Essas duas primeiras mercês fazem de Teresa um eminente testemunho da vida mística cristã. A terceira mercê: “Saber dizê-la e entender como é”, nos simples colóquios com suas irmãs e na continuação desse magistério em seus escritos, convertera Teresa na mestra da vida espiritual reconhecida ininterruptamente durante os quatro longos séculos que passaram desde sua morte e, de forma oficial, na atribuição por Paulo VI do título de Doutora da Igreja.
IHU On-Line – Como se manifesta a mística de Teresa? Em que consiste sua experiência?
Juan Martín Velasco – Como todos os místicos, santa Teresa fala de experiências, fala por experiência. Mas não é fácil encontrar um autor no qual o tema da experiência adquira a multidão de modulações que alcança na Santa. Assim, a experiência é o fundamento de seu saber e da credibilidade de seu magistério: “Não direi nada que eu não tenha experimentado muito”; “o que eu disser, ei-lo visto por experiência”; “creiam-me isso, porque o tenho por experiência”. A experiência se refere sempre ao conhecimento que procura ter passado por aquilo de que se fala, tê-lo vivido pessoalmente: “Sei por experiência, que a alma que neste caminho de oração mental começa a caminhar com determinação... tem andado grande parte do caminho”; “mostra-se Senhor verdadeiro. Isso tenho experimentado muito”. A experiência procura um saber mais claro e certo que qualquer outro conhecimento: “Quem tem experiência o vê muito claramente”; “sei eu por experiência que é verdade isso que digo”.
A experiência é, ademais, o único caminho para saber o que, por exceder suas capacidades, não depende do sujeito e é a base que permite aos que recebem seu testemunho conhecer o que lhes manifesta: “Faz Deus outra mercê bem dificultosa de entender se não há grande experiência”; “a experiência dará isso a entender, que quem não a tivesse, não me espanto lhe pareça muito obscura”; “é uma amizade... que somente as que a experimentais a entendereis”. A experiência é também o recurso mais eficaz, e algumas ocasiões o único eficaz para discernir a verdade, a autenticidade e a origem divina das vivências e estados de consciência pelos quais passa o sujeito: “Quem tiver experiência do bom espírito entenderá se é de Deus ou do demônio”. A experiência, que garante o expressado por quem a vive, é, ademais, o fundamento da clareza e da coerência das expressões que suscita: “Algumas vezes consiste em experiência o sabê-lo dizer”; “eu sei isso muito bem por experiência e assim o soube dizer”; “do que não há experiência, mas se pode dar razão certa”.
Uma última referência me parece decisiva para mostrar a lucidez que comporta este recurso da santa à experiência como meio para a vida cristã. A experiência não se reduz a um estado de ânimo com as conotações psicológicas que comporta; ademais, não substitui a de quem a vive. Ao contrário, as múltiplas experiências, por mais gostosas e certas que sejam, procedem da fé, meio único para a união com Deus: “Eu sei que quem nisso não crer não o verá por experiência”. Uma sentença, fundamental para entender o alcance deste capítulo importante da espiritualidade teresiana, na qual ressoa o eco de toda a tradição cristã: “Pois quem não crer não terá experiência, e quem não tiver experiência não conhecerá” (Santo Agostinho).
Por último, a experiência da qual fala santa Teresa não consiste tão somente nos acontecimentos extraordinários, nos fatos internos extraordinários que balizan sua vida. Ao contrário, é sua vida inteira que oferece o conteúdo à relação de Deus com ela e a suas respostas ao amor com que Deus a presenteia. À luz da presença reconhecida de Deus, sua vida inteira se converte em “matéria” para a experiência de Deus. Daí resulta a importância dos escritos autobiográficos no conjunto de sua obra e o componente autobiográfico de toda a sua doutrina espiritual.
IHU On-Line – Quais foram as grandes etapas da “busca mística” de Teresa de Ávila?
Juan Martín Velasco – A vida de Teresa passa por uma primeira etapa semelhante em tudo à de numerosos crentes. Nascida numa família de cristãos de origem judaica, por linha paterna, e fervorosamente cristã, vive a infância num clima piedoso: aos doze anos perde sua mãe e se recomenda, como à sua nova mãe, à Virgem Maria; é depois internada num colégio de religiosas agostinianas e sente o chamado à vida religiosa, que a conduz, apesar da oposição de seu pai, ao mosteiro carmelita da Encarnação.
Após superar uma grave enfermidade que a teria levado às portas da morte e lhe deixara sequelas para o resto de seus dias, volta ao convento onde realiza a profissão religiosa. Seguem alguns anos de crise e estancamento na vida interior da qual vai tirá-la, aos 39 anos, uma dúplice experiência, suscitada pela contemplação de uma imagem “de Cristo muito chagado” e a leitura das Confissões de Santo Agostinho. Essa experiência vai supor sua conversão definitiva. O essencial dessa passagem decisiva consiste numa inversão da orientação da busca de Deus que nunca abandonara e do esforço por consegui-la. “Não me faltavam determinações”, porém “todas... aproveitaram-me pouco”. “Buscava remédios, mas sem resultados”, até que, quando suas forças começavam a fraquejar, abandona o intento de conseguir com seu próprio esforço que a Presença se produza, abandona a pretensão de autoafirmar-se, entrega-se a quem por diferentes caminhos está se anunciando em sua vida e aprende por experiência que “tudo aproveita pouco se, retirada a confiança em nós, não a pomos em Deus”. A partir deste momento, a vida de Teresa vai ser um processo continuado de chamadas, graças e dons de Deus a Teresa e de sucessivas entregas de Teresa nas mãos de Deus: “Para que fosse toda vossa”, “dar-me de todo a Deus”, “deixar a alma nas mãos de Deus, e Ele faça o que queira dela”.
A partir daí a nova vida que não fez mais do que iniciar-se desenvolver-se-á em três frentes principais. Duas exteriores e uma interior e determinante. A primeira leva-a a iniciar e desenvolver a tarefa, cheia de dificuldades, da reforma do Carmelo e a converte em fundadora de numerosos conventos reformados; a segunda no-la mostra entabulando relação com os mestres espirituais e os teólogos mais importantes de seu tempo, para discernir suas profundas experiências e, desenvolvendo uma infatigável tarefa de escritora, amplia o magistério oral que vinha exercendo com suas Irmãs. Mas o acontecimento fundamental de sua vida estava tendo lugar em seu interior. É o desenvolvimento de uma continuada experiência mística que havia começado como “um sentimento da presença de Deus, que de nenhum modo podia duvidar que estava dentro de mim ou eu toda engolfada nele”; continuaria na experiência cada vez mais intensa do mistério de Cristo e de sua presença em sua vida, e culminaria numa profunda experiência do Deus trinitário que, após havê-la convidado a buscá-lo em seu interior – “busca-me em ti” –, manifestava-se que era ela que precisava encontrar-se Nele – “busca-te em mim”.
Baseada nesta experiência pessoal, Teresa propõe em suas obras um itinerário preciso, um caminho de perfeição para suas filhas, as monjas que encheram seus conventos reformados, e para todos aqueles que se sentem atraídos por essa forma de vida centrada em “o único necessário”.
Santa Teresa aprendeu, graças à sua conversão, que o princípio do caminho para Deus está no próprio Deus, que tudo depende de sua presença e tem sua origem em seu chamado. Ao homem toca tão só tomar consciência e concordar com ele para assim coincidir com a força de atração que ele imprime no mais íntimo de sua alma. Essa consciência se concretizará na conformidade da própria vontade com a vontade de Deus e em poder dizer com toda verdade e com toda a vida: “Faça-se tua vontade”. Aqui está a substância e o fim da vida cristã.
Para chegar a esse fim, é indispensável dar muitos passos, utilizar muitos recursos, servir-se de numerosos meios. O primeiro, o mais importante, o caminho real para chegar a “beber da água da vida”, é a oração. Por isso a descrição do caminho da perfeição cristã vai centrar-se, para a Santa, na descrição da oração. Porque fala para suas monjas que a oração é “o ofício dos religiosos”. Embora ela nunca perca de vista que a oração é porta, meio e caminho, e que a meta e o fim é a união com Deus pela conformidade da própria vontade e de toda a vida com a vontade de Deus.
IHU On-Line – Na experiência mística de Teresa de Ávila, qual é o valor e o lugar da oração? A quem se dirige em seus momentos espirituais?
Juan Martín Velasco – Geralmente, a Santa centra seu magistério na oração mental, da qual correntes muito poderosas de seu tempo queriam excluir leigos e mulheres. No entanto, para que haja oração mental, não é preciso que a boca esteja fechada. Recitar o Pai Nosso “inteiramente, entendendo e vendo que falo com Deus, com mais advertência que nas palavras”, é ao mesmo tempo oração vocal e mental. Por outra parte, oração mental não consiste em “pensar muito”, “por que o negócio não está todo no pensamento”. O essencial da oração se reduz, para a Santa, ao trato amoroso com o Deus que nos ama: “Não é outra coisa a oração mental... senão tratar de amizade, estando muitas vezes tratando sozinha com quem sabemos que nos ama”.
“Trato” refere-se a toda forma de comunicação interpessoal, com especial insistência na simplicidade, cercania e familiaridade: contanto que a raiz e a substância seja a resposta amorosa ao amor de Deus. Tem-se dito com razão, e temos recordado antes, que a oração é religionis actus, colocação em ato da relação religiosa; fidei actus, colocação em ato da fé. Santa Teresa parece coincidir no fundamental com tais definições, porém insistindo nesta outra dimensão da atitude teologal que é o amor, a caridade. A oração em sua essência é assim, para ela, a colocação em ato do amor de Deus, o amor de Deus em exercício. Antes que atos concretos, e sustentando sua inevitável variedade, a oração é atitude de advertência e reconhecimento da Presença de Deus, escuta de seu chamado e intercâmbio amoroso com quem “sabemos que nos ama”.
O desenvolvimento desta atitude fundamental e seu exercício concreto dependem da condição humana, corporal e histórica do orante, por uma parte, e do Mistério divino, origem e termo da relação que se estabelece, por outra. Assim, o exercício da oração mobiliza a condição corporal suscitando palavras, lágrimas, êxtases e outros fenômenos corporais do sujeito. Passa por fases, cresce, amadurece e se desenvolve ao longo de sua vida: impregna o exercício de sua inteligência, faz vibrar sua dimensão afetiva e suscita opções e decisões de sua vontade. No final, como veremos, termina impregnando a vida em seu conjunto e a converte em ato permanente de adoração e em hino de louvor.
IHU On-Line – Como analisa o itinerário espiritual de Teresa de Ávila? Que simbologia e semântica são por ela utilizadas para descrever suas experiências místicas?
Juan Martín Velasco – Uma relação que tem em Deus sua origem e seu termo está chamada a progredir sem fim. Teresa viveu em sua oração um processo de desenvolvimento permanente que a levou a progredir na profundeza da própria interioridade, a abismar-se cada vez mais profundamente no Mistério divino sobre o qual descansa, a uma consciência cada vez mais translúcida dessa presença em seu interior, e a uma progressão constante na conformidade à sua vontade. Com uma arte dificilmente superável soube, ademais, analisar e descrever seu itinerário espiritual e oferecer distintas versões das etapas mais importantes do mesmo. Assim, no tratado sobre a oração incluída na Vida, expõe, sob a alegoria da água com que o hortelão rega o horto, quatro graus de oração, representados pela meditação: a água tirada com grande esforço e de um resultado pequeno; a oração de quietude representada pela água tirada “por um torno e aquedutos”, quando a ajuda de Deus reduz a necessidade de esforços e concentra a relação com Deus num simples movimento da vontade atraída pela Presença que a embarga; a oração extática na qual a Presença inunda as faculdades do homem e as “embriaga” ou “adormece”, representada por uma água que procede de uma “corrente de rio ou de fonte”, na qual Deus “é quase o hortelão e quem faz tudo”; e, por último, a oração de união, representada pelo “chover muito”, quando Deus rega o horto “sem trabalho nenhum nosso”. É sabido que o livro das Moradas desenvolve as quatro formas de oração do livro da Vida, expressando com as imagens das moradas, a larva de seda que se transforma em mariposa, a água e, sobretudo, a imagem dos esponsais e o matrimônio, a progressiva união da alma com Deus e as formas de oração em que se expressa, se exerce e se padece.
A insistência na oração não faz Teresa perder de vista que esta não é o fim da vida cristã, senão um meio, embora indispensável. Essa orientação, subordinação da oração à vida cristã que a requer, sem dúvida, mas que não se esgota nela, está insistentemente sublinhada na obra dessa santa com diferentes argumentos. As obras, as virtudes e, especialmente, o amor de Deus manifestado no amor mútuo ou no amor do próximo são propostas uma e outra vez como o fruto que todos os outros meios estão chamados a produzir e como o critério único que garante a autenticidade da oração, com os estados interiores, os gostos e até os fenômenos extraordinários que em determinadas circunstâncias traz consigo: “Não, irmãs, não; o Senhor quer obras, e se tu vês uma doente a quem podes dar algum alívio, não percas por nada essa devoção”.
A razão última dessa subordinação da oração está em que a perfeição consiste na união com Deus e esta se realiza “na união verdadeira com a vontade de Deus. Esta é a união que em toda minha vida tenho desejado, esta é a que peço sempre a nosso Senhor...”. Porque “somente estas duas (coisas) nos pede o Senhor: amor de sua Majestade e do próximo”.
Por isso, numa das ocasiões em que a Teresa se propõe aclarar “em que está a substância da perfeita oração”, orienta a resposta para o amor: “O aproveitamento da alma não está em pensar muito, mas em amar muito”.
Por outro caminho, a Santa mostra o necessário ordenamento da oração e a contemplação à vida diária e às tarefas de serviço e amor que comporta. Como haviam feito outros grandes teóricos e práticos da contemplação, santa Teresa lê o texto evangélico de Marta equiparando a tarefa das duas irmãs, declarando ambas indispensáveis e até concedendo às vezes a primazia a Marta: “Marta e Maria hão de andar juntas para hospedar o Senhor: como lhe daria hospedagem Maria, sentada sempre a seus pés, se sua irmã não lhe ajudasse?”. “ Marta e Maria nunca deixam de atuar juntas”. E, dirigindo-se a suas monjas, isto é, a contemplativas: “Santa era santa Marta, embora não digam que era contemplativa. Pois pensai que esta congregação é a casa de santa Marta”.
IHU On-Line – Que desafios a mística apresenta à Igreja institucional em uma sociedade tecnocientífica? Como a mística pode contribuir com uma fé mais madura e atualizada?
Juan Martín Velasco – Há uma atualidade da mística numa época de eclipse cultural e social de Deus e de profunda e massiva crise das religiões estabelecidas. Uma atualidade originada pela sede de experiência espiritual de que muitas pessoas padecem numa cultura instalada na imanência e que esquece e até reprime o cultivo das dimensões mais profundas do ser humano.
Mas isso supõe não só uma reação ao positivismo empobrecedor de uma cultura somente científico-técnica que ameaça asfixiar as pessoas. Constitui, ademais, um protesto silencioso contra a pobreza espiritual das Igrejas e das religiões estabelecidas. Delas é possível que se possa decidir, como os profetas de todos os tempos têm dito dos aparatos religiosos de seu tempo, que o povo padece da fome de Deus, da experiência de sua presença, e os responsáveis religiosos lhe oferecemos doutrinas, normas, ritos e submissão a uma instituição que às vezes ocupa o lugar de Deus em vez de remeter a Ele. Talvez isso explique o afastamento silencioso de muitos que abandonam as igrejas. Seguramente isso explica também a atonia espiritual de muitos dos que nelas permanecem – permanecemos? – por tradição, costume ou inércia.
Há já mais de um século, Newman advertia que uma religião reduzida à prática herdada estava condenada a terminar, nas pessoas cultas, na indiferença, e nas simples, na superstição. A crise de nossas igrejas está confirmando sua previsão. Saberemos interpretar, como Igrejas, o sinal dos tempos que supõe, por uma parte, o abandono de tantos de seus membros, e, por outra, a sede de experiência, o desejo de transcendência, o interesse pela mística, a busca do espiritual que manifestam grupos cada vez mais importantes e variados de pessoas? Interpretá-lo adequadamente exigiria de nós respostas muito radicais: a conversão pessoal ao essencial do Evangelho e a reconversão das envelhecidas estruturas dos aparatos institucionais de nossas Igrejas.
IHU On-Line – É possível ser místico hoje?
Juan Martín Velasco – “Que homem razoável quer hoje a divinização?”, perguntava-se um conhecido teólogo crítico. O tema do intercâmbio entre Deus e o homem, tão presente nos antigos escritores cristãos, e que tão candente resultava em seu tempo, careceria, segundo esse teólogo, de todo interesse numa época como a nossa, de ausência e de eclipse de Deus. “O problema atual – sentenciava – não é tanto a limitação do homem, como sua humanização”. Como não podia ser de outra forma num teólogo, ele matizava depois que, dada a desumanização do homem que seguiu ao processo moderno de desdivinização, e que as “divindades” que substituíram o Deus cristão: Estado, raça, ciência, dinheiro etc. têm resultado terrivelmente desumanizadoras, muito bem poderia suceder que a atual situação constitua uma confirmação da velha verdade de que sem Deus não é possível uma verdadeira humanização do homem. Considero que o teólogo em questão está mais acertado na matização do que na afirmação primeira. Porque o homem, feito para Deus (“Fizeste-nos, Senhor, para Ti...”), a ser “com um Mistério no coração que é maior que ele mesmo” (H. Urs von Balthasar ) não pode realizar-se plenamente mais do que reconhecendo esse Mistério e assentindo a ele.
Os místicos, verdadeiros exploradores do infinito no homem, disseram isso de muitas maneiras. Pois debaixo de seus muitos desejos o homem é “desejo abissal”, desfundado no fundo sem fundo de Deus. Dito de forma mais simples: “Estando a vontade / de Divindade tocada / não pode ficar apagada / senão com Divindade” (São João da Cruz).
Naturalmente, isso não significa que somente os indivíduos religiosos se realizam verdadeiramente como humanos. Pessoas não religiosas e que até rechaçam formalmente a Deus dão mostras de haver tomado consciência da Transcendência que habita no homem, e de havê-la reconhecido por outros caminhos que não os religiosos, tais como uma vida moral digna ou o reconhecimento do valor incondicional que representa a pessoa do outro. Por outra parte, temos indícios para suspeitar de um reconhecimento efetivo de Deus em pessoas às quais determinadas circunstâncias têm podido conduzir a posturas aparentemente ateias e até niilistas. É Cioran , que havia chegado a escrever: “fora do suicídio não há salvação”, e que assegurava que não aguentaria nem um só dia no paraíso, que se perguntava: “Como explicar, então, a nostalgia que tenho dele? Não a explico: vive em mim desde sempre, estava em mim antes que eu”. Essa nostalgia era para ele, não me cabe dúvida, sinal da presença, de algum modo reconhecida, de um Deus, talvez desconhecido, nele.
Místicos hoje? Estou certo que sim. Místicos enquanto existam seres humanos, embora provavelmente sob formas tão variadas como eles e os tempos em que lhes caiba viver.