Edição 383 | 05 Dezembro 2011

Judiciário e movimentos sociais: uma relação de repressão estrutural

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Márcia Junges


Novos contornos democráticos

Mas a lógica específica que nos atravessa se torna ainda mais complexa a partir do momento em que percebemos que o Judiciário que manobra os mecanismos e a retórica do controle também é o Judiciário que emerge como refúgio para o reconhecimento de direitos imprescindíveis a determinados grupos sociais. A decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da constitucionalidade dos efeitos jurídicos das uniões entre pessoas do mesmo sexo é certamente emblemática. De fato, tem sido no Judiciário que diversas pautas políticas do Movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros são acolhidas. Isso, num cenário social de violências brutais contra LGBT, de rechaço às iniciativas legislativas que intencionam reconhecer os direitos dessa comunidade e de uma ofensiva contundente de setores religiosos contra ela. Diante da impossibilidade de avançar na conquista de direitos junto ao Legislativo, o Movimento LGBT vem recorrendo, creio que legitimamente, ao Judiciário, mas isso também acontece com outros grupos.
Alguns intelectuais têm diagnosticado esse fenômeno como uma das dimensões do que eles chamam de “judicialização da política” e de “politização do judiciário”, algo que estaria ocorrendo nos “Estados Democráticos de Direito” e que diria dos novos contornos da “democracia”. Não discuto nesses termos, embora reconheça a necessidade de conhecimento dessas teses, porque discordo de alguns dos seus pressupostos – a separação original entre direito e política é um deles, o de que vivenciamos um “Estado Democrático”, outro. Parece-me que o avanço do Judiciário – inclusive o relativo à conquista de direitos – sobre temáticas que a priori competiriam ao Legislativo responde a uma estratégia peculiar de feitura da política e não a uma negação ou a um afastamento dela.

IHU On-Line – Como avaliar então a coexistência de um Judiciário destinado ao controle e de um Judiciário garantidor de direitos?

Roberto Efrem Filho – O reconhecimento de direitos pelo Judiciário se relaciona dialeticamente com o exercício do controle. Não são práticas apartadas, portanto. O Judiciário não reconhece direitos sem, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, definir as fronteiras desses direitos, sem modelar os sujeitos que realizarão esses direitos. É o que ocorre com a decisão do STF relativa à união entre pessoas do mesmo sexo. Ali, no reconhecimento de direitos de casais homossexuais, persiste uma compreensão heteronormativa de família e afeto. O voto histórico de Ayres Britto – que, de certo, nos agradou imensamente – carrega diversas referências a modelos tradicionais de família, sobretudo porque o que subjaz todo o debate jurídico é a possibilidade de “equiparação”. Os “inequiparáveis”, entretanto, os sujeitos cujos relacionamentos contestam aqueles modelos, que não recepcionam, por exemplo, a monogamia ou pactos patrimonialistas de convivência, restam mais uma vez deslegitimados, só que agora pelo próprio discurso estatal concessor de direitos. Judith Butler nota esse processo num ensaio que, no Brasil, foi publicado pelos Cadernos Pagu, da Universidade Estadual de Campinas, com o título “O parentesco é sempre tido como heterossexual?”
O argumento cerne de Butler é o de que não é possível simplesmente ser contrário ou favorável ao “casamento gay” porque uma tomada de posição exclusivista recairia numa minimização da complexidade da questão. Eu diria que se trata de uma complexidade “contraditória” – embora desconfie que Butler não escolhesse essa expressão – e que, portanto, exige uma tomada de posição dialética que se estende a parte significativa da relação dos movimentos sociais e das organizações populares com o Judiciário. Não é possível ser contrário, nas condições atuais, ao reconhecimento judicial dos direitos de LGBT, ainda que isso implique em controle, ao tempo em que não é possível ser favorável aos termos em que a discussão tem sido posta. Isso, é claro, não implica em inércia, numa fuga à decisão ou num não posicionamento. Implica, mais complexamente, numa tomada de posição política que se resumirá a um “sim, sou favorável”, é verdade, mas que se encontra resistente e problematizada em sua gênese.

Criminalização da homofobia

De fato, de um ponto de vista “pragmático”, isso diria muito pouco. Mas é de estratégia e tática que se está falando, não de mera pragmática. O reconhecimento judicial de direitos de homossexuais num país como o nosso – em que um LGBT é assassinado por motivos homofóbicos a cada 36 horas, como confirmam os dados apresentados pelo Grupo Gay da Bahia – é algo de uma potencialidade transformadora indescritível. Sobretudo se consideramos todos os entraves presentes no Legislativo contra o projeto de lei que pretende criminalizar a homofobia, o PL 122/2006. Num contexto histórico de expansão exasperada das criminalizações, em que a ética punitivista se revigora diuturnamente, a recusa do Estado em criminalizar a homofobia é, no mínimo, sociologicamente interessante. Claro, a pauta da criminalização da homofobia indica a penetração daquela ética punitivista no próprio Movimento LGBT. Claro, no campo do crime e da criminalização, os sujeitos oprimidos só se movimentam muito limitadamente, quase sem capacidade de manobra. Porém, a aversão colossal dos setores conservadores a essa criminalização específica parece sugerir que o projeto de lei em questão, apesar de se inserir numa normatividade que nos é adversa, transita contraditoriamente sobre nossas necessidades políticas, requisitando, enfim, de nossa parte, mais uma tomada de posição dialética.

IHU On-Line – A relação do poder Judiciário com os movimentos sociais se daria, então, em meio a essas contradições?

Roberto Efrem Filho – É preciso ser bastante cuidadoso no uso da palavra “contradição” para que ela não se torne uma justificativa inexorável dos limites que nós, por conforto teórico ou dificuldade política, não conseguimos superar. Seu emprego abusivo tende a demolir as fronteiras entre “dialética” e “relativismo”, descaracterizando, assim, a própria dialética e possibilitando consequências indesejáveis para as classes e os grupos sociais subalternos. A relação do Judiciário com os movimentos sociais e as organizações populares é de repressão estrutural, assim como a relação do Estado com o capital é de cumplicidade orgânica – e István Mészáros corajosamente anuncia isso num período em que qualquer afirmação desse tipo terminaria sendo acusada de “simplismo esquerdista”. Sob certas condições bastante excepcionais, contudo, como ocorre com a relação do Judiciário brasileiro com as pautas do Movimento LGBT, contradições igualmente excepcionais podem e devem ser exploradas.
Há diferentes razões para que essas contradições insurjam em determinados instantes. No caso da união entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, lado a lado com os esforços políticos do Movimento LGBT caminham lucrativos interesses de mercado. Além de ser uma instância de gestão da propriedade privada, o “casamento” constitui uma espacialidade de consumo. A criação de um “público gay” que adentre nesse espaço – com suas vantagens creditícias, seus endividamentos e aquelas prestações a perder de vista – incrementa as possibilidades de ampliação desse consumo. O direito, por sua vez, entra no jogo para garantir a “segurança jurídica” necessária a certos dinamismos econômicos. Não pretendo dizer, com isso, que o reconhecimento da constitucionalidade das uniões entre pessoas do mesmo sexo se deveu ao mercado. A luta histórica dos movimentos sociais não pode ser ignorada: muitos arco-íris foram hasteados em bandeiras e muitos homossexuais foram assassinados antes de Ayres Britto proferir seu voto. Mas não é analiticamente viável ignorar a confluência de interesses e a porosidade do Judiciário à lógica do mercado.

Navalhas simbólicas

Como estratégia de explicitação dessas contradições, algumas organizações vêm discutindo a respeito da “justiciabilidade dos direitos humanos” e da “democratização da Justiça”. São exigências minimamente democráticas a um Judiciário tradicionalmente hermético. A Terra de Direitos e outras organizações atuantes no campo da assessoria jurídica popular intencionam problematizar o Judiciário, desde sua estrutura administrativa até a fluência da participação popular nos atos do Executivo de escolha dos membros do STF. Nessa perspectiva, o Judiciário se torna uma questão a ser debatida, uma das nossas pautas, como deve ser o Estado de um modo geral. Essa postura, no entanto, legítima e necessária, requer que essas organizações caminhem sobre navalhas simbólicas – a dialética, afinal, é sempre cortante – considerando, como afirmou Bourdieu, que o objeto em disputa tende a disputar os sujeitos que o disputam.

Uma das consequências desse processo está na crescente crença – disseminada mesmo entre alguns setores das esquerdas – num Judiciário redentor, aquele que realizará os direitos e a democracia, o bastião da justiça. Essa sobrevalorização do direito deve ser compreendida, todavia, dentro de um contexto totalizante de negação da história e dos sujeitos que a movimentam. Conduzir uma abstração, como é o caso do direito, à centralidade das transformações sociais é mais do que ingenuidade, é renegar a práxis. O direito, disse Marx, não possui uma história própria. O desvendamento do campo jurídico solicita sua localização em relações sociais mais complexas, que o determinam e são por ele determinadas. Não há possibilidade de uma radical transformação de sociedade pronunciada pela retórica jurídica. Tal transformação permanece – e não há como ser diferente – nas mãos das classes e grupos sociais subalternizados, em suas organizações coletivas e em suas lutas históricas.

Leia mais...

Roberto Efrem Filho já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line:

* O “peso” dos movimentos sociais é maior que o das “leis”. Edição 305, de 24-08-2009;
* “A” verdade jurídica é um monopólio. A transferência da política para o direito. Edição 266, de 28-07-2008;
* Veja criminaliza a política brasileira. Edição 292, de 11-05-2009.

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