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Márcia Junges
Para o advogado Leonardo Grison, um dos grandes problemas do Judiciário no Brasil é que esse poder também é patrimonialista: “Nesse caso, o patrimonialismo se revela muito mais como cultura do que poder. Ou seja, é inconcebível que o Judiciário queira, por exemplo, proteger a apropriação privada do Estado que os partidos promovem”. Em sua opinião, “é preciso asseverar que o Judiciário é sim, estamental e elitista. Ou por algum acaso os pobres e a elite são punidos com o mesmo rigor?” Grison afirma que “nosso Judiciário traz consigo essa herança histórica. Nosso modelo é concentrador: as principais decisões são levadas à Brasília, onde os tribunais superiores sofrem influência política, em razão de suas nomeações”. E arremata: “O brasileiro tem uma relação masoquista com o Estado, que é autoritário. Ele gosta do Estado. Afinal, como explicar que as duas pessoas sentando e conversando não se entendem, mas na frente do juiz o acordo ocorre? Há quase que um fetiche”. As declarações fazem parte da entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.
Leonardo Grison é graduado e mestre em Direito Público pela Unisinos com a dissertação O patrimonialismo na administração pública: os cargos em comissão, que em breve será publicada. É professor na Faculdade de Integração do Ensino Superior do Cone Sul – Fisul, em Garibaldi e mantém o blog http://leogrison.blogspot.com/.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – De que forma o passado patrimonialista brasileiro persiste, sobretudo em cargos de comissão no Brasil? Qual é a ação do Judiciário nesse cenário?
Leonardo Grison – Vejo o problema do patrimonialismo no Brasil sob um duplo aspecto: de cultura e de poder. No caso específico dos cargos em comissão, percebe-se que eles se apresentam como um aspecto de poder, tal qual Raymundo Faoro descreve em Os donos do poder. Infelizmente, a obra de Faoro faz uma análise até a Era Vargas, levando muitos a crerem que essa já é uma realidade ultrapassada. Não é. Em escritos mais recentes o próprio autor asseverou que “é muito difícil que nós, tendo saído de um tipo de regime como saímos, acreditemos que tenhamos entrado num outro tipo de regime sem nenhum resquício daquele”. Então, vem a parte complicada: a transição de um regime democraticamente eleito para um regime democrático. É mais do que natural que grande parte dos problemas patrimonialistas advindos da ditadura militar permanecessem. Há um agravante: a Assembleia Constituinte que elaborou a Constituição não foi autônoma, foi um Congresso Constituinte. Isso fez com que “brechas” permanecessem no texto da Constituição. Uma delas é o caso dos cargos em comissão. No artigo 37 temos vários princípios da administração, como impessoalidade, moralidade, eficiência , e em seguida a exigência de concurso para o acesso aos cargos públicos. Sem parecer ter muita coerência com essas disposições, aparece a “exceção” à regra: cargos em comissão, de livre nomeação e exoneração por parte do governante. É contraditório com a ideia de impessoalidade um tipo de cargo que é baseado na confiança pessoal do governante. Na prática, o uso abusivo desse expediente de nomeação de cargos evidencia que há uma prática patrimonialista. O objetivo dessa prática é fortalecer o estamento. Os nomeados, via de regra, não estão lá por mérito pessoal, mas sim por alguma espécie de apadrinhamento. Geralmente político, mas também pessoal. Há um interesse por parte dos políticos que estão no poder em se manterem no poder. Segundo Faoro, esse é o único objetivo de um estamento.
Vários são os motivos de interesse em um cargo público, como a notoriedade, a visibilidade, bem como o próprio salário, além do poder de mando, que às vezes cria pequenos caudilhos. Os vencimentos do cargo são um ponto-chave: a maioria dos partidos políticos estabeleceu, alguns inclusive colocando em estatuto, uma espécie de dízimo. Contribuições que variam para alguns casos em até 15% , que devem ir para os cofres do partido que indicou a nomeação. Os cargos geralmente são rateados entre os membros da coligação de acordo com os partidos que compõem a base (constando, nisso também, percentual mínimo em decisões de convenções partidárias em alguns casos). Em breve síntese, esse é o uso patrimonialista que se fazem dos cargos em comissão.
Judiciário patrimonialista
Os princípios constitucionais acabam virando mera promessa simbólica. Não se pensa no bem da administração pública, só no poder. Nesse processo, o poder Judiciário tem grande importância. Em termos weberianos (é preciso recorrer a ele, pois é onde reside o fundamento do “patrimonialismo”): o patrimonialismo é um tipo específico de dominação, subgênero do gênero dominação tradicional. Como Weber bem ressalta, os tipos de dominação podem coexistir. Em nosso caso, praticamente todo nosso ordenamento jurídico consagra um modelo de dominação racional. O desafio então é superar o passado patrimonialista e impor a dominação racional. Isso só é possível com forte controle da administração pública, fazendo cumprir a Constituição. Os mecanismos, em parte, já existem, e o controle judicial é um dos meios mais efetivos de controle da administração pública. Nossa Constituição impõe limites subjetivos, como é a exigência de que os cargos sejam restritos a funções de direção, chefia e assessoramento, o que exclui a possibilidade de utilização para cargos meramente técnicos bem como aponta para necessidade de se estabelecer, via lei complementar (o que nunca se fez), limites ao número de cargos, em relação ao total de servidores, bem como percentual mínimo a ser ocupado por servidores efetivos (CF Art. 37, V).
O grande problema é que o Judiciário também é patrimonialista. Nesse caso, o patrimonialismo se revela muito mais como cultura do que poder. Ou seja, é inconcebível que o judiciário queira, por exemplo, proteger a apropriação privada do Estado que os partidos promovem. Fora um esquema gigantesco de corrupção, isso não teria lógica. O patrimonialismo se revela em um certo “sentimento de pertença a uma elite”, tão próprio da lógica estamental. O bacharelismo é uma expressão disso. Nesse ponto, Sergio Buarque de Holanda se revela adequado para compreender o tema.
Os juízes, ao enfrentar o tema, são cordiais. Num contexto em que a maioria dos cargos em comissão estão em irregularidade, não se vê tanta punição. Ainda assim, cabe a ressalva: o Judiciário, junto com o Ministério Público, é um dos poucos que ainda tem lutado contra essa realidade. Os tribunais de contas também prestam um grande serviço, mesmo com toda influência patrimonialista que existe no seu sistema de nomeações. Feita a ressalva, é preciso asseverar que o Judiciário é sim estamental e elitista. Ou por algum acaso os pobres e a elite são punidos com o mesmo rigor?
IHU On-Line – O que são os critérios de efetividade dos direitos sociais pelo poder Judiciário?
Leonardo Grison – A resposta é complicada em tempos de judicialização da política. O Judiciário quer ser a vanguarda, quer ser protagonista, e por vezes ultrapassa seus limites constitucionais. No caso dos direitos sociais, via de regra precisam ser implementados por meio de uma política pública. O Judiciário, então, é um grande fiscalizador dessas políticas públicas. O problema é que ele não pode simplesmente criar políticas públicas de direitos sociais, usurpando competências. Essa linha, por vezes, é mais tênue do que parece. No caso do direito à saúde, observa-se com mais propriedade.
IHU On-Line – Como se dá a relação do poder Judiciário na garantia de direitos sociais como a saúde, por exemplo?
Leonardo Grison – O tema do direito à saúde é mais do que propício para discutir os limites e possibilidades de atuação do Judiciário no controle da efetivação dos direitos sociais. O volume de demandas foi tão grande que o STF decidiu realizar uma audiência pública a respeito do tema. Também pudera, os números do SUS são assustadores, já que 2/3 da população brasileira depende exclusivamente dele, e o total da população é constituído de potenciais usuários. Como o Judiciário não cria demandas, só podemos concluir que onde essas questões deveriam estar sendo resolvidas não estão sendo. Aí vem o grande problema mencionado na resposta anterior: o Judiciário deve fiscalizar políticas públicas, e não criá-las. É como se alguém dissesse “quem não tem cão, caça com gato”. Mas o gato não sabe caçar. E aí, o que acontece é que o Judiciário consegue dar a resposta mais adequada, mas mesmo assim é obrigado a responder.
No caso do direito à saúde, várias são as causas do número excessivo de ações. Por vezes, o Judiciário está apenas cumprindo seu papel de fiscalizador, já que os percentuais mínimos de investimento na área não ocorrem, ou, as políticas públicas existentes não estão sendo cumpridas, ou ainda, não existem. Outras vezes, porém, há tudo isso, mas o cidadão acredita que ele tem um direito subjetivo, de cariz liberal-individualista, à saúde, que o permite cobrar do Estado o tratamento que quiser, da forma que quiser, quando quiser. E é aí que começam os problemas. O juiz tem de decidir diante de uma solução delicadíssima: entre a vida e a morte. Essa alegação, nem sempre verdadeira. Na ampla maioria dos processos é alegado risco de morte. No entanto, as estimativas são de que 2/3 das ações são para fármacos de uso contínuo, exames, fraldas, leite, complementos alimentares, etc. E aí vem a discussão dos limites da decisão judicial que, querendo ou não, tem de respeitar as leis e a Constituição do país.
No caso do direito à saúde, há a lei 8.080 de 1990. Tal lei estabelece como se dará a aplicação do direito fundamental à saúde, estabelecendo-se os medicamentos de maior relevância e a atribuição da competência de cada ente federativo. Aos municípios cabe a distribuição dos medicamentos essenciais. A base é a famosa lista, a Relação Nacional de Medicamentos – Rename. Ela é elaborada com base em definições da Organização Mundial da Saúde – OMS. Já aos estados federados, distrito federal, e à união, em parceria, cabe o fornecimento dos medicamentos de caráter excepcional. Cabe ao gestor estadual definir os remédios que serão adquiridos diretamente pelo Estado. Considerando tudo isso, e mais o fato de que quem tem legitimidade democrática para elaborar as listas de medicamentos é o poder Executivo, pode o Judiciário simplesmente ignorar todos esses critérios? Ou seja, se há uma lista de medicamentos, elaborada de forma democrática, que atenta para uma repartição de competências, também democrática, é possível o fornecimento, via Judiciário, de remédios não integrantes da lista? Só se toda essa legislação for considerada inconstitucional. Na prática, porém, se vê muito isso. Medicamentos não constantes na lista, muitas vezes nem aprovados, ainda em caráter experimental, e o que me parece ser o caráter mais grave: de maneira individual. Ao decidir um caso de maneira isolada, e não em uma ação coletiva, o juiz só tem poder para resolver aquele caso. E como fica o direito à saúde dos que não conseguem ter acesso à justiça? Nem todos têm o discernimento necessário para isso, para não falar que em muitos estados da federação a Defensoria Pública ainda não é bem estruturada.
Orçamento determinado judicialmente
Esse é um tipo de ação que existe em um grande número: pedindo, de forma individualizada, um medicamento, ausente nas políticas públicas, a custa do Estado. É uma questão básica de economia: há escassez. Em algum lugar irão faltar esses recursos. E muitas vezes são tratamentos caros, sem eficácia comprovada, com medicamentos comerciais (muitos médicos excluem a possibilidade de utilizar genéricos em seus laudos). Isso gera um duplo problema: o dos recursos, que irão faltar em outro lugar, que inclusive poderiam gerar mais efeitos, como seria o caso de investimento em saneamento básico, e o de legitimidade política. Em algumas esferas de poder, mais da metade do orçamento da saúde é determinado judicialmente. Onde está a legitimidade democrática para isso? O que eu vejo é que o Judiciário tem extrapolado sua competência. Entretanto, é preciso cuidado. Ele é uma esfera importante para a democracia, especialmente no caso dos direitos sociais. Como já dito, muitas vezes o próprio Estado não cumpre o que se propõe a cumprir. Aí sim é a vez de o Judiciário intervir, mas o instrumento mais correto são as ações coletivas. Não é possível que se continue a resolver os problemas de forma individualizada, privilegiando quem tem acesso à justiça em detrimento dos outros.
IHU On-Line – O Judiciário brasileiro está sobrecarregado? O que explica a morosidade pela qual é tão criticado?
Leonardo Grison – Que o Judiciário está sobrecarregado não há dúvidas. A morosidade cada vez cresce mais. A meu ver, o principal erro na análise desse problema é isolar um dos vários fatores e não observar os problemas estruturais. Antes de enfrentar a questão, gostaria de lembrar o posicionamento do falecido professor Ovídio Araújo Baptista da Silva, para quem a jurisdição funciona, e funciona muito bem, para aquilo que foi concebida. Dizia ele: “ainda não se demonstrou que nosso sistema processual fora programado para andar rápido”. Prossegue o autor afirmando que “ao contrário, ao priorizar o valor segurança, inspirada em juízos de certeza, como uma imposição das filosofias liberais do Iluminismo, o sistema renunciou à busca de efetividade – que nossas circunstâncias identificam com celeridade –, capaz de atender à solicitação de nossa apressada civilização pós-moderna”. A celeridade, junto com a justiça, são valores que foram esquecidos, para se dar lugar ao valor segurança, tão caro às nossas classes dominantes. Também cito Álvaro Rocha, para o qual “a “morosidade” do Judiciário ou a “lentidão” da Justiça não constitui um verdadeiro problema para o Judiciário, na medida em que a tentativa de sua resolução apenas legitima ainda mais a sua necessidade de existência, ao levar à discussão sobre a falta de prioridade à justiça e à necessidade de maiores recursos humanos e financeiros, o que redunda na impossibilidade de responsabilizar o judiciário pela falta de solução desse problema”. Daria para acrescentar, ainda, o fato de que é possível que exista grandes interesses na morosidade do Judiciário, principalmente se considerarmos que os grandes demandados são o próprio Estado, bem como os grandes grupos de empresas de telecomunicação. Um dos problemas que é apontado com grande frequência é o de gestão. A análise é correta. Hoje todo advogado sabe o tempo que um processo perde do momento que sai do gabinete do juiz até ter uma resposta prática. É o tempo que se perde nos cartórios. Em geral, faltam funcionários e sobra burocracia. Grande parte desse problema pode ser solucionado pela virtualização dos processos. É inegável que nesse ponto há um gargalo. O problema é que vão aparecer outros gargalos. Se essa parte começar a andar rapidamente, vão faltar juízes para tanto trabalho.
Massificação dos processos
Além desse aspecto, para o qual já há muita gente preocupada e muitas ações planejadas, há outros, como é o caso da massificação dos processos. Em boa parte, o problema se deve a fatores estruturais. Há uma verdadeira cultura do conflito, da estatização. Todos querem a chancela do grande pai Estado para resolver seus problemas. Os advogados, nesse ponto, não deixam de ter grande parte de culpa. Assim como juízes. O problema é o tipo de solução que se pensa: cortar garantias e diminuir recursos, sem grandes preocupações com a qualidade das decisões. Há muito tempo Lênio Streck vem falando dos recursos de Embargos de Declaração, um recurso que nem sempre é criticado, como outros existentes. Ele serve para atacar decisões judiciais “obscuras, omissas ou contraditórias”. Ora, mas se assim o são, não deveriam ser nulas? Em uma ordem democrática é possível que um juiz dê uma decisão “obscura”, “omissa”? E aí se percebe que a questão da qualidade das decisões judiciais não pode ser tida como separada da efetividade. Uma breve pesquisa nos nossos tribunais já revela a quantidade absurda de recursos dessa natureza, que na maioria dos casos é interposto porque o advogado simplesmente não entendeu a decisão judicial, ou, pior ainda, o juiz foi omisso e não decidiu sobre o que deveria ter decidido. Para os problemas de gestão, e um certo número excessivo de recursos existentes, há soluções relativamente simples.
Persiste, porém, o problema cultural. Não é possível que todas as formas de conflito tenham de ser resolvidas pelo Judiciário. Não há estrutura que aguente isso. É preciso investir na conscientização das formas alternativas. Contudo, vejo com pessimismo essa realidade em um país de tradição patrimonialista. O brasileiro tem uma relação masoquista com o Estado, que é autoritário. Ele gosta do Estado. Afinal, como explicar que as duas pessoas sentando e conversando não se entendem, mas na frente do juiz o acordo ocorre? Há quase que um fetiche.
IHU On-Line – Que passos e/ou obstáculos ainda são percebidos na reforma do Judiciário brasileiro? A emenda 45/04 é suficiente nessa reformulação do órgão?
Leonardo Grison – Entendo que deveríamos pensar mais em mudanças culturais do que em reformas. Para isso, não há outro caminho senão o da educação. E aí temos um grande problema, que é o do ensino jurídico. Desde que se criou a primeira escola de direito (Bolonha – 1088), constroem-se dois mundos separados: o da prática jurídica e o das universidades. Continua-se formando profissionais que não estão habilitados para a vida profissional (o exame de ordem comprova). Há um abismo entre a pós-graduação e a graduação, por dois problemas, uma ausência de preocupação dos profissionais mais ligados à dogmática jurídica com as questões mais profundas, que exigem pensar sob uma perspectiva macro, bem como uma série de pesquisas que são produzidas sem qualquer compromisso social, voltadas apenas a consumo interno. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes, infelizmente, influencia esse modelo ao deixar a pesquisa tão presa ao Estado, bem como dá peso maior na avaliação para as revistas vinculadas às universidades. Acaba que esses dois mundos, o das universidades, das pós-graduações, das pesquisas, e o da práxis jurídica, dos “operadores do direito”, dos foros, dos tribunais, não se comunicam. O que temos feito são reformas pontuais, e é por isso que elas não dão cabo aos problemas.
Com a emenda 45 não foi diferente, e não será daqui pra frente. Não que esse tipo de reforma não deva existir, mas não são elas que resolverão os grandes problemas do Judiciário. Os grandes problemas são de ordem estrutural, como também é o caso do já mencionado patrimonialismo. O problema é que esses problemas são resolvidos com respostas lentas. É construção de imaginário. Leva-se muito tempo para mudar a cultura de um povo. Na sociedade da pressa, essa não é uma resposta aceitável. Por isso, a todo momento existe alguma reforma. Se não for o Judiciário será o processo, ou até mesmo a Constituição. E nem sempre essas reformas são harmônicas, já que ocorrem pelas mais variadas motivações, muitas vezes contraditórias.
IHU On-Line – Que novo modelo jurídico pode surgir a partir da ética da alteridade e da hermenêutica filosófica? O que isso implicaria em termos de mudanças nesse poder?
Leonardo Grison – A pergunta aponta para um projeto de pesquisa que realizei em 2005 na condição de aluno de iniciação científica. Como tal, posso responder apenas parcialmente, já que na época não trabalhei com o referencial teórico da ética da alteridade, apenas com o da hermenêutica filosófica, com o qual ainda dialogo. As mudanças que se apontam são várias. Uma delas é a superação do velho modelo exegético, de juiz “boca da lei”, como apontava Montesquieu, ou como queria a Escola da Exegese. Entretanto, esse discurso já está batido, e é preciso ir além, fazendo a crítica da crítica. O que se vê hoje é um Judiciário impregnado de decisionismos. Vale dizer: autoritário. Tudo isso se fez sob o manto da discricionariedade jurídica, que é fortalecida pelo imaginário positivista. A hermenêutica, dessa maneira, promove uma superação das teorias do direito positivistas, aproximando mais de autores como Dworkin . Este fala de uma resposta correta, ao passo que Gadamer fala de uma interpretação correta, no caso, a melhor interpretação. As conclusões são as mesmas, apenas em níveis diferentes. A legitimidade também é a mesma: a tradição. Nesse caso, os dois autores inclusive utilizam o mesmo termo. Para que uma decisão judicial seja correta, é preciso que o juiz reconstrua a história institucional do Direito. Não é possível que cada decisão seja um evento isolado e descompromissado. É preciso que se busque coerência. Não há como, em uma democracia, entender que uma resposta é correta, em Direito, apenas pela procedência: o Estado. Essa seria uma primeira grande mudança no Judiciário: a produção de um imaginário mais “responsável”, mais amarrado aos preceitos constitucionais, já que a Constituição inclusive determina a necessidade de decisões judiciais bem fundamentadas.
Herança histórica
Mas há um outro aspecto que chama atenção na teoria de Gadamer: o problema da consciência histórica efetual. Para o filósofo, o interprete é refém de sua história. A história o “efetua”. Isso, em si, não é um problema. Contudo, para uma adequada compreensão, é preciso que haja consciência dessa história efetual. Isso obviamente não é tão simples, já que não é possível “descobrir” de maneira fixa e imutável que “história” é essa. Até porque isso seria uma objetificação tremenda. De todo jeito, há aqui uma ponte para pensar as questões históricas e sociológicas. Em particular, relembro do passado patrimonialista brasileiro. De que maneira decide um juiz que nasceu e cresceu em um ambiente patrimonialista? Em um país de tradição autoritária, pode o Judiciário ser diferente? Ou, ao contrário, a tendência é que se repita esse modelo? Essa reflexão é tarefa hermenêutica de cada juiz. E se observarmos, nosso Judiciário traz consigo essa herança histórica. Nosso modelo é concentrador: as principais decisões são levadas à Brasília, onde os tribunais superiores sofrem influência política, em razão de suas nomeações. O Direito é visto como um fenômeno de poder. Por isso é Direito o que o juiz diz que é. Já teve ministro inclusive dizendo que não se importava com o que a doutrina escrevia.
A doutrina, por sua vez, se desenvolveu principalmente em um modelo “comentarista”. Afinal, para que doutrinar, se a última palavra será sempre a do juiz? Melhor então comentar as decisões do Supremo Tribunal Federal, sem ousar criticar, tampouco querer criar. Todas essas questões extrapolam o referencial teórico da hermenêutica filosófica, mas ela chama essas questões, na medida em que entende que a verdade é uma construção intersubjetiva, passível de averiguação, através de um critério, o da tradição. No Direito, isso permite que se discutam as questões democráticas, servindo como instrumento de combate ao autoritarismo. É preciso que se tenha uma maneira de dizer que uma decisão do Supremo Tribunal Federal não é correta, se for o caso, não podendo, em uma democracia, considerar correta apenas porque tem de ser cumprida, como pensa o imaginário solipsista que plasmou as teorias do positivismo jurídico, que tão bem encaixa em um Estado autoritário.
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Leonardo Grison já concedeu outra entrevista à IHU On-Line e é autor de uma publicação pelo IHU:
* Da hermenêutica de Heidegger à valorização do humano: um diálogo entre filosofia e direito privado. Edição 274 da Revista IHU On-Line, de 22-09-2008;
* A busca pela segurança jurídica na jurisdição e no processo sob a ótica da teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann. Edição 133 dos Cadernos IHU ideias.