Edição 380 | 14 Novembro 2011

As redes digitais vistas a partir de uma perspectiva reticular

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Moisés Sbardelotto

HU On-Line – No contexto do advento das mídias digitais, o senhor propõe repensar o humanismo e o antropocentrismo, como abordado em seu livro Pós-humanismo. Em que o humanismo e o antropocentrismo se tornaram “obsoletos” ou “superados”? Por outro lado, como podemos pensar hoje a relação entre o humano e técnica?

Massimo Di Felice –


“Homem fora de si”

A partir daí, não somente a técnica e os instrumentos de observação, como amplamente demonstrado pela física, passaram a alterar a nossa concepção da natureza, mas também começaram a estender o homem fora de si e, sobretudo, a produzir alterações técnicas da percepção do humano e a tornar esse último não mais o centro da natureza, mas parte de um processo revelador que acabava reinventado cada vez mais o humano, através das alterações das percepções da natureza produzidas através da técnica.

Como observado no texto Pós-humanismo (Ed. Difusão, 2010): “estas alterações se iniciaram, portanto, não apenas na época das redes e nos contextos comunicativos digitais. Pelo contrário, para dizê-lo, através de uma expressão concisa: sempre fomos pós-humanos. Pode se dizer que a parte ‘vencedora’ do humanismo, aquela que mais se impôs e se tornou hegemonia cultural, foi um longo parêntese do antropocentrismo, a síntese e o ápice do nosso narcisismo de espécie. Pensarmo-nos a medida de todas as coisas teve efeitos e consequências sobre o nosso ‘falar de nós’, sobre a nossa ‘autoconstrução’, e tem também permitido a edificação de uma estrutura conceitual certamente forte e útil, mas, ao mesmo tempo, rígida e exclusiva, fundada sobre a pretensão de autarquia em relação ao mundo, à vida e às coisas. As tecnologias da comunicação ajudam-nos agora a lembrar que o lugar do homem no mundo é algo de diferente do que definimos a partir do humanismo e durante toda a modernidade” (Di Felice & Pireddu, 2010, p. 15).
O conjunto de inovações tecnológicas e comunicativas que se difunde em nossa contemporaneidade redefine e altera o nosso cotidiano e os nossos sentidos, mostrando-nos a inadequação e os limites dessa percepção histórica e nos obrigando a repensar o absolutismo do princípio de autoformação e autodeterminação do humano.


Redefinição do humano

Desde a medicina, a biologia, a economia, a política até a comunicação, os elementos tecnocomunicativos nos permitem hoje o desenvolvimento de funções e atividades – anteriormente impossíveis –, que são a evidência do surgimento de uma nova relação (não mais definível em termos instrumentais) entre o orgânico e o inorgânico, entre o sujeito e o território, e que está contribuindo de forma qualitativa para a redefinição da nossa condição humana.

A abordagem de um pensamento além do humanismo torna-se necessária não somente para a compreensão plena da nossa condição contemporânea, mas também para repensar, a partir de um ponto de vista histórico mais amplo, a relação entre o homem e o mundo ao seu redor.


IHU On-Line – Uma de suas últimas pesquisas trata das “redes digitais e sustentabilidade”. Como o senhor percebe as interações sociais no ambiente digital nesse período de crise ambiental?

Massimo Di Felice –
Uns dos campos que melhor exprime o reducionismo epistêmico da razão moderna é, sem dúvida, a dificuldade com a qual o pensamento antropocêntrico e positivista abordou a questão da natureza. A dramática urgência da questão ambiental que caracteriza a nossa época é o desvelamento do fracasso da lógica antropocêntrica e separacionista imposta pela razão e pelo pensamento ocidental. Na modernidade, o triunfo da razão instrumental (Theodor Adorno ) e a imposição de uma separação identitária entre o homem (sujeito ativo e racional) e o meio ambiente (matéria-prima, recursos) amplificaram a concepção do caráter unidirecional dessa relação.

No entender de Serge Latouche  [que estará no IHU entre os dias 22 a 25 de novembro], um economista estudioso das teorias do desenvolvimento e um dos teóricos da chamada décroissance sereine (decrescimento sereno), a hybris, a desmedida do homem no confronto com a natureza, praticamente tomou o lugar da antiga sabedoria da inserção em um ambiente desfrutado de modo racional. O que leva à pergunta: Teria sido, portanto, a nossa racionalidade enquanto “medida de todas as coisas” a fazer-nos perder a mesura, fazendo-nos destruir a capacidade de regeneração dos ecossistemas dos quais dependemos?
A proeminência das tecnologias comunicativas digitais se caracteriza essencialmente pela consolidação de uma rede cibernética que conecta seus usuários por meio de arquiteturas computacionais. Nesse contexto, fica praticamente impossível desassociar sujeitos, indivíduos, comunidades, circuitos eletrônicos, computadores, celulares, interfaces, cabos de fibra ótica, ondas de rádios e todos os demais elementos que fazem parte do fluxo informacional que ocorre nas redes digitais.

Em uma percepção mais conceitual, fica muito difícil definir (dar fim) e determinar onde terminam os dedos das mãos e onde começam as teclas do teclado enquanto se produz um texto já que ambos elementos, tanto o orgânico como o inorgânico, só são relevantes ao processo proposto quando funcionam em uma associação transorgânica.


Digitalização, conectividade e interações

A digitalização do território, a partir da introdução das tecnologias digitais de comunicação que transformaram o ambiente em código informativo, produziu, pela primeira vez, uma superação da distância entre sujeito e território, permitindo a alteração da natureza desse último e a interação e interdependência entre indivíduo e ambiente. Tal interação constitui uma prática comunicativa em que a relação entre o sujeito e o território deixa de ser dicotômica, correspondendo a um tipo de forma comunicativa do habitar. Uma vez reproduzido digitalmente o espaço, transformado-o em informação, configura-se a formação de um habitar informativo, pós-arquitetônico e pós-geográfico que, multiplicando os significados e as práticas de interações com o ambiente, nos conduz a habitar naturezas diferentes e mundos no interior dos quais nos deslocamos informativamente. Esse habitar atópico não constitui um “não lugar”, nem um metaterritório, mas é um outro ecossistema construído através de interações entre territórios, indivíduos e tecnologias informativas.
Esse processo de conectividade e de interações dinâmicas resulta numa concepção e numa cultura de um novo tipo de ecologia que compreende tanto os elementos orgânicos como aqueles tecnoinformativos.
Por meio dos fluxos informativos presentes nas redes digitais – e que expressam os próprios fluxos da vida do planeta, enquanto também sistema comunicativo tecnobiológico, tem mostrado, através de um processo de comunicação, o quanto o desenvolvimento antropocêntrico colocou o próprio homem em risco de extinção. E a própria Gaia tem nos revelado que o equilíbrio sustentável só é possível segundo um viés ecossistêmico no qual, seguindo a mesma lógica das redes digitais, não é possível considerar, pensar ou agir fora do próprio contexto coletivo da rede.

Aparecem assim os elementos para o desenvolvimento de uma nova cultura ecológica, feita não por elementos de diversas naturezas, interdependentes entre si e “interdialogantes”, mas por elementos simbioticamente unidos pelos fluxos informativos de redes que, comunicando-se, criam dinâmicas nem internas, nem externas. Torna-se necessário pensar um novo tipo de physis e, consequentemente, um novo tipo de ação não mais deslocativa e transitiva, mas atópica e reticular.

Michel Maffesoli  descreve a nossa época como marcada pela volta de uma “pulsão selvagem”. Uma pulsão selvagem que transita ao mesmo tempo no animal e no tecnológico, uma ecosofia que proporciona contemporaneamente uma heteronomia das naturezas e o surgimento de novas peles, nem orgânicas nem inorgânicas, nem sedentárias nem nômades, nem internas nem externas, mas atuais. Esse novo tipo de pulsão selvagem, animal e tecnológica ao mesmo tempo, marca o advento de um novo tipo de ativismo.


Nova sensibilidade ecológica generalizada

A teoria de fundo presente em meu último livro, Redes digitais e sustentabilidade (resultado de uma pesquisa que obteve o patrocínio da Petrobras), no prelo pela editora Annablume e escrito em conjunto com os pesquisadores do Atopos e doutorandos, Julliana Cutolo e Leandro Yanaze, é que há uma relação estreita entre a cultura comunicativa – que se difundiu em seguida ao advento das redes digitais – e a difusão contemporânea de uma nova sensibilidade ecológica generalizada, visível nos conjuntos de práticas e presente nas preocupações políticas de governos e empresas, conhecidas pelo termo sustentabilidade.
Essa sensibilidade, de fato, apresenta-se como a expressão de uma nova cultura ecológica que exprime a percepção de uma sinergia reticular que não contrapõe mais o indivíduo ao território e ao meio ambiente, mas que parece substituir a esta oposição, as dimensões interativas de relações interdependentes e comunicantes. A difusão da demanda de produtos e alimentos biológicos, as políticas de redução de emissões de CO2, as práticas de reciclagem e a difusão das coletas seletivas municipais, as campanhas internacionais em defesa das florestas e espécies ameaçadas, independentemente de seus impactos reais, são ao mesmo tempo a expressão de uma diversa concepção do meio ambiente e o perfil de uma nova dimensão habitativa.

Na tradição ocidental, como conhecido, a nossa percepção do território e do meio ambiente, em geral, foi caracterizada pela invenção da externalidade, isto é, da suposta separação entre o homem e a natureza, baseada no mito bíblico da superioridade da espécie humana sobre as demais ou, no caso da filosofia, na redução dos elementos não humanos a objeto, “a coisa” inanimada, matéria a ser moldada, transformada e dominada. A supremacia do humano sobre a natureza e o território foi, por séculos, o pressuposto da condição habitativa que se manifestou através a manipulação e a domesticação do mundo “externo”.
Paralelamente à crise da externalidade e da separação entre nós e o meio ambiente, que se exprime hoje na consciência dos limites do desenvolvimento e na mensuração constante de seu impacto, a presença da questão da sustentabilidade em diversos contextos e setores exprime a consciência de uma dimensão habitativa relacional e conectiva.


Leia mais...

Confira outras publicações realizadas pela IHU On-Line relacionadas às temáticas abordadas nessa entrevista.

“Uma forma de democracia direta é algo que hoje pode ser tecnologicamente possível”. Entrevista especial com Massimo di Felice

A utopia da sociedade em rede: Um mundo sem fronteiras? Entrevista especial com André Lemos

“As redes sociais e a internet deram ao mundo um novo fôlego em termos de cidadania”. Entrevista especial com Paulo Faustino

A cidadania transitiva no contexto da comunicação digital. Entrevista especial com Massimo Canevacci

“O conceito da Internet é liberador”. Entrevista especial com João Bittencourt

Rumos e muros da filosofia na era digital. A aventura do pensamento - Revista IHU On-Line nº. 379

Twitter, Facebook, MySpace e Orkut. As redes sociais na web - Revista IHU On-Line nº. 290

O Pós-humano - Revista IHU On-Line nº. 200

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