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Márcia Junges | Tradução Luciana Cavalheiro
Um texto cuja atualidade transcende a filosofia e impacta a ciência, a arte, o teatro e a literatura até nossos dias. Assim é o mito da caverna, de Platão, pertencente ao sétimo capítulo de A República. “A caverna simboliza o mundo das aparências, no qual os homens se encontram, e sugere que haja uma realidade que fundamente suas aparências fugindo de suas garras”, acentua o platonista francês Jean-François Mattéi. Explicando o sentido da alegoria, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line, pontuou que “os homens procuram viver em um universo fantasmático e virtual, em vez de afrontar o mundo verdadeiro e real. Eles se desviam assim do ser final das coisas que lhe parecem desconhecidas ou perigosas, preferindo desse modo se entregarem à sedução das sombras, de imagens e de fantasias que não lhe exigem nenhum esforço. Todo o enredo do mito da caverna é então o da liberdade humana”. E completa: “A filosofia posterior ensinará a se libertar da dependência das aparências imediatas do mundo para tentar compreender de que forma elas são constituídas e como o mundo as produz racionalmente”. Em termos de importância filosófica, o pensador francês coloca Nietzsche e Heidegger ao lado de Platão, e argumenta que atualmente a política como “governo legítimo dos cidadãos por seus representantes” foi “absorvida” pelos viéses social e pela econômico. E dispara: “O homem político não ‘governa’ mais homens, ele ‘gerencia’ documentos, a gestão administrativa tendo tomado a frente ao governo político”.
Mattéi é professor emérito da Universidade de Nice-Sophia Antipolis e do Instituto Universitário da França. Escreveu, entre outros, L’Étranger et le simulacre. Essai sur la fondation de l’ontologie platonicienne (Paris: PUF, 1983), L’ordre du monde. Platon, Nietzsche, Heidegger (Paris: PUF, 1989) e Platon et le miroir du mythe. De l’Âge d’or à l’Atlantide (Paris: PUF, 1996). Em português, foi traduzido o livro A barbárie interior: ensaio sobre o i-mundo moderno (São Paulo: Unesp, 2002).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em outra entrevista concedida à nossa publicação, o senhor menciona que a alegoria da caverna, de Platão, é o texto filosófico mais importante do Ocidente. Quais são os aspectos que tornam esse escrito tão atual e importante? Haveria algum outro texto que se aproximaria dele em termos de relevância?
Jean-François Mattéi – A alegoria da caverna, no livro VII de A República de Platão, é certamente o texto mais importante do Ocidente devido a sua influência sobre os filósofos futuros. Sua atualidade não se limita à filosofia, mas diz respeito também à ciência, à arte, ao teatro e à literatura. A caverna simboliza o mundo das aparências, no qual os homens se encontram, e sugere que haja uma realidade que fundamente suas aparências fugindo de suas garras. Essa dualidade da aparência e do ser, contracenando com a oposição das sombras na tela da caverna e das realidades exteriores ao mundo subterrâneo, comandará o pensamento europeu, depois o ocidental, na paixão pela verdade, no campo do saber teórico, mas também em sua exigência pela justiça, no campo da ação prática. O que Sócrates nos diz sobre isso? Que os homens sejam submetidos, desde o nascimento, a uma sequência contínua de projeções que os mantenham em sua dependência, como espectadores em uma sala de cinema seduzidos pelo desenrolar de um filme interminável que os impeçam de entregarem-se a outra atividade. Várias histórias do cinema salientam, inclusive, que o princípio do cinematográfico está fundamentado, de uma parte, sobre o mecanismo de projeções automáticas do mundo, como demonstra Stanley Cavell, filósofo americano, em The world viewed. Reflections on the ontology of film; e, por outro lado, sobre o desejo dos espectadores de se perderem no universo de ficções ilusórias que eles sabem não serem reais.
Sedução das sombras
Os homens procuram viver em um universo fantasmático e virtual, em vez de afrontar o mundo verdadeiro e real. Eles se desviam assim do ser final das coisas que lhe parecem desconhecidas ou perigosas, preferindo desse modo entregarem-se à sedução das sombras, de imagens e de fantasias que não lhe exigem nenhum esforço. Todo o enredo do mito da caverna é então o da liberdade humana. É necessário submeter-se ao jogo das aparências visíveis, que Platão chama de “sombras”, “ídolos” ou “fantasmas”, ou tentar compreender sua origem buscando o ser invisível que os produz? Essas sombras não são um puro vazio; elas são uma realidade incerta e passageira, que é preciso, entretanto, compreender para se libertar pelo conhecimento e pela ação.
A filosofia posterior ensinará a se libertar da dependência das aparências imediatas do mundo para tentar compreender de que forma elas são constituídas e como o mundo as produz racionalmente. Imaginemos um espectador, em uma sala de cinema, que está apaixonado por um filme ao qual está assistindo. Ele é livre, entretanto, de desviar sua atenção do filme para tentar compreender de que forma as imagens são produzidas por um aparelho de projeção que as reproduz através de uma fita, como elas foram filmadas antes pelo diretor, qual é o princípio óptico e mecânico do cinematográfico, e qual é, enfim, o principio físico de difusão da luz, não somente na sala de cinema, mas no mundo iluminado e nutrido pela energia solar.
O texto literário mais admirável que se aproxima do texto de Platão é certamente o romance argentino de Adolfo Bioy Casares , La invención de Morel, no qual o protagonista procura se integrar em uma sequência de ações filmadas por um inventor, chamado Morel, para conservar a memória de um tempo passado enquanto todas as pessoas filmadas em três dimensões vão morrer. O protagonista se apaixona pela imagem de uma mulher que não existe mais e que tem então apenas uma realidade virtual, ou fantástica, tão sedutora quanto etérea. Tudo acontece como se o espectador de um filme não quisesse mais sair da sala obscura, mas penetrar no filme que se desenrola na tela e viver para sempre na ilusão.
IHU On-Line – Que outros pensadores o senhor aponta como fundamentais no panteão filosófico?
Jean-François Mattéi – Os pensadores fundamentais no panteão filosófico são, a meu ver, Aristóteles, Plotino , Descartes, Kant, Hegel, Nietzsche e Heidegger. Todos introduziram uma ruptura na história da filosofia mostrando-se fiéis à tradição que eles pregavam. Todos criaram ou uma escola, como Aristóteles, ou discípulos, como Plotino, ou um método, como Descartes, ou uma ética, como Kant, ou uma filosofia da história, como Hegel, ou um abandono da tradição idealista, como Nietzsche, ou por um “novo começo” no ser, em ruptura com a metafísica, como Heidegger.
O que faz a originalidade de um grande pensador, assim como a de um grande artista, é sua capacidade de conjugar a fidelidade com a filosofia, desde sua origem grega, e a novidade de um novo olhar sobre o que é. Como demonstrava Bergson , todos os filósofos captaram por uma intuição singular o ser e, a esse título, empenharam-se em explorá-la para encontrar a verdade. Mas esta intuição inexpressível foi expressa através de uma imagem mediadora: a da caverna, por Platão, do Um por Plotino, do cogito por Descartes, da lei universal por Kant, do círculo por Nietzsche, e da estrela por Heidegger (“Caminhar em direção a uma estrela. Nada além” – nossa tradução – escreve em Da experiência de pensar em 1947). E essa imagem mediadora, que comanda sua pesquisa e a construção do seu sistema, renova completamente o que exploraram os filósofos anteriores abrindo a via para as pesquisas futuras.
IHU On-Line – Quais são as maiores contribuições de Heidegger e Nietzsche à filosofia? Por que os coloca “ao lado” de Platão no título de um de seus livros?
Jean-François Mattéi – Nietzsche tentou terminar com o platonismo, ou seja, ao operar a transvaloração de todos os valores partilhados pela tradição, não para terminar com a filosofia e, além dela, com a evolução milenar da humanidade, mas para assumi-la, através da figura do eterno retorno, com o conjunto de sua herança. É o que ele chamava de “a filosofia do martelo”, o martelo que forja os novos valores, e não o que destrói os valores antigos que são assim transmutados pelo martelar do filósofo-forjador.
Heidegger, por sua vez, no caminho aberto por Nietzsche, e, além dele, por Platão, tentou pensar o ser em sua reserva, e não estando em seus diversos modos de eclosão. Reencontrando de forma original, e mesmo nova, a vontade platônica de pensar um começo absoluto, fundamental, de todas as coisas, ele preparou o pensamento – o outro pensamento futuro, dizia – a um outro começo. O fim da metafísica para Heidegger, como para Nietzsche o fim do platonismo, não seria o fim da filosofia, ou seu desfecho racional, como para Hegel, mas sua renovação em um pensamento anterior à chegada da metafísica. Trata-se do pensamento de Geviert, pouco estudado pelos comentadores que se interessavam, sobretudo pelo “primeiro Heidegger”, o da fenomenologia, e não pelo “segundo Heidegger”, o do pensamento do “alternado”, Kehre, sob influencia de Hölderlin .
Se eu situo Nietzsche e Heidegger ao lado de Platão é porque eles herdaram de Platão a preocupação de radicalidade que anima a filosofia ao ponto de engajá-los a ir à fonte do ser e do pensamento. Pode-se dizer de Nietzsche e de Heidegger, em relação a Platão, o que Nietzsche dizia das “amizades de estrelas”:
“Como foi necessário que nos tornemos estrangeiros, assim o queria a lei acima de nós a razão de nos respeitarmos, pela qual seria mais santificada ainda a lembrança de nossa amizade do passado! Existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma rota estrelar, na qual nossas vias e objetivos diferentes se encontram inscritos como pequenas etapas – elevemo-nos a este pensamento!” (nossa tradução) (Le Gai savoir, IV, 279).
IHU On-Line – Como podemos compreender filosoficamente “a cegueira que nunca abandonamos” em termos políticos, com os totalitarismos e as dificuldades para se efetivar a democracia?
Jean-François Mattéi – Efetivamente creio que as sociedades modernas, como demonstraram Hannah Arendt ou Leo Strauss , manifestam uma “cegueira” em relação à política. Tudo acontece como se os dirigentes das democracias atuais, mas também seus cidadãos, não soubessem mais o que significa a política. Segundo Aristóteles, a política era a busca do “bem comum” (Politique, II, 8, 17), do “bem supremo” (Politique, I, 1, 1; II, 2, 7; III, 12, 1; VII, 3, 3), ou ainda do “benefício comum” (Politique, III, 3, 2; 6, 3; 11; 7, 2-3; 12, 1; 13, 12; V, 9, 14). Ora, quais são os programas políticos que colocam realmente no primeiro plano a busca – e o partilhar – desse bem comum? Os políticos e os partidos, tanto de direita como de esquerda, falam de nível de vida, de previdência social, de contratação de funcionários, de limitação da dívida pública, de diminuição do desemprego, evidentemente de Produto Interno Bruto, ou seja, de problemas econômicos, de dificuldades sociais e de procedimentos administrativos. Mas em nenhum aspecto se pensa em uma ação política que dê um horizonte e uma esperança aos cidadãos.
O social e a economia absorveram e depois fizeram desaparecer o político entendido como o governo legítimo dos cidadãos por seus representantes. O enfraquecimento, se não o desaparecimento do político, já era previsto pelo conde de Saint-Simon . No Catecismo dos industriais, ele anunciava que, graças ao mundo industrial, o que chamaríamos hoje de capitalismo, “o governo dos homens” ia ceder o lugar para a “administração das coisas”. Vê-se o duplo deslocamento: de um lado, o ato de governar, princípio próprio do político, desaparece em prejuízo do ato de administrar; de outro lado, os homens, sujeitos livres da política, desaparecem em benefício das coisas, objetos necessários da administração. O homem político não “governa” mais homens, ele “gerencia” documentos, a gestão administrativa tendo tomado a frente ao governo político.
Ele retorna à filosofia de fazer cessar tal cegueira insistindo na necessidade do político, e lembrando que, segundo a palavra de Rousseau , “o ato pelo qual o povo é um povo” permite ao homem se realizar como cidadão. Somente cidadãos, e não consumidores, usuários ou clientes, podem perseguir em comum esse Bem que deve ser pensado e partilhado.
IHU On-Line – Qual é o papel e a relevância da filosofia numa sociedade acometida dessa “cegueira política”?
Jean-François Mattéi – A filosofia toma seu sentido, desde sua origem platônica, quando ela ensina ao homem dirigir seu olhar, em grego “teoria”, para um campo de conhecimentos que é então modelizado e idealizado. Assim também é a busca pela “justiça”, que não é um comportamento social ou uma injunção jurídica, mas uma “ideia da razão” como dizia Kant. O olhar do filósofo é idealizador quando ele não se satisfaz somente dos fatos, que são contraditórios, para visar uma realidade que, em retorno, dá sentido a sua ação, em grego praxis. Em segundo lugar, este olhar distanciado do filósofo implica em um distanciamento crítico que lhe permite avançar no olhar das realidades imediatas, sejam elas políticas, sociais, econômicas ou culturais, para denunciar as insuficiências e as limitações. Em terceiro e último lugar, este olhar crítico se volta contra si mesmo e permite ao filósofo introduzir uma distância entre si e si mesmo. Sócrates já dizia com humor: “Tudo o que sei é que nada sei”. A filosofia pode nos ajudar a tomar consciência dessa “ignorância sábia”, como dizia Pascal . Quem proíbe o nosso pensamento de se satisfazer de si mesmo? Insisti sobre estas três características do olhar filosófico, de tal forma que a Europa e depois o Ocidente desenvolveram e ensinarem, em meu livro Le Regard vide. Essai sur l’épuisement de la culture européenne, que recebeu o prêmio de filosofia da Academia francesa em 2008.
Apoio-me nessa obra em uma observação de Claude Lévi-Strauss em um de seus últimos livros Le Regard éloigné (Paris, 1983). O antropólogo francês eleva a sua vocação de filósofo a uma observação de Rousseau em seu Essai sur l’origine des langues. Rousseau escreveu o seguinte, onde mostra qual é o “olhar distanciado” do filósofo:
“Quando se quer estudar os homens é preciso olhar perto de si; mas para estudar o homem é preciso aprender a levar o seu olhar para longe”. Claramente o filósofo é aquele que não se contenta em olhar entorno dele, submetendo-se à pressão das opiniões, mas que se libera deste aspecto, ao contrário, orientando seu olhar em direção a ideia que o chama a pensar. Somente a demonstração teórica desse olhar crítico pode nos ajudar, saindo dos “círculos acadêmicos ” e dos “colóquios fechados”, reservados aos especialistas, de restabelecer o contato com o mundo social e a vida política. Paradoxalmente, é se retirando de certa forma do mundo, tal como ele é dado, ou perdido, em seu imediatismo, que o filósofo pode beneficiar outros homens liberando o horizonte do sentido que lhes é comum.
IHU On-Line – Como percebe a influência da filosofia em esferas sociais como a política, por exemplo? O debate filosófico tem conseguido extrapolar a academia e dialogar com a sociedade?
Jean-François Mattéi – A única coisa que importa, nos nossos dias, é restabelecer o contato com o sentido da aventura humana, presente na vida política, se é verdade que o homem é um “animal político”, zoon politikon. Ou seja, um ser dotado de vida, mas de uma vida que, diferentemente dos outros seres vivos como os animais e os vegetais, transcende a todo o momento sua existência para edificar sentido. Bergson falava da “alma aberta”, própria às “sociedades abertas”, que foge ao fechamento de uma vida preocupada somente com a sua sobrevivência. A abertura já era encenada na alegoria da caverna de Platão, que vê um prisioneiro responder ao chamado do Aberto e do Luminoso, simbolizado pelo Sol que deixa sua marca longínqua nas sombras subterrâneas. Que se fale em filosofia de um olhar teórico, de um olhar distanciado, ou de um olhar crítico, entende-se assim a abertura de um pensamento que procura, ultrapassando as únicas certezas do dado imediato, visando a uma ideia da razão que, como a estrela da qual fala Heidegger, nos chama a avançar em sua direção. Em um curto texto de 1947, redigido de forma poética, Da experiência de pensar, Heidegger nos conduz ao caminho do filósofo: “Caminhar em direção a uma estrela. Nada além”. Em eco, no mesmo texto, encontramos esta sentença: “Pensar é limitar-se a uma única ideia que um dia ficará como uma estrela no céu do mundo”.
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>> Confira outra entrevista concedida por Jean-François Mattéi à IHU On-Line:
* A alegoria da caverna e a barbárie da doçura. Edição número 294, de 25-05-2009.