Edição 374 | 26 Setembro 2011

O Platão de Lima Vaz

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Márcia Junges

Ainda sem o devido reconhecimento no panteão filosófico, a obra do jesuíta brasileiro aponta a similaridade das raízes do niilismo ético e da modernidade, reportando-se ao sistema platônico de maneira peculiar, aponta Marcelo Perine. Meditação sobre o Ser é “o mais grave e sério empenho da vida”, acentuava

“Platão e a Grécia estão presentes do início ao fim do itinerário filosófico do Pe. Vaz”, observa Marcelo Perine, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Considerado pelo jesuíta o “gênio tutelar da cidade dos filósofos”, há peculiaridades no platonismo que adotou ao longo de sua trajetória intelectual. Um dos grandes temas sobre os quais se debruçou foi o niilismo ético da modernidade, um dos sintomas que mais o preocuparam nas últimas três décadas de sua produção filosófica. Lima Vaz procurou desvendar o “enigma de uma civilização tão prodigiosamente avançada na sua razão técnica e tão dramaticamente indigente na sua razão ética”, recorda Perine. Assim, “as raízes do niilismo ético seriam as mesmas da modernidade, forjada no cerne das revoluções que abalaram todas as estruturas do mundo ocidental a partir do final do século XVI, dentre as quais se inscreve o cartesianismo como a maior revolução filosófica depois de Platão”. Até o momento, pontua Perine, a obra vazina “não recebeu o lugar que lhe é devido no panteão das grandes filosofias do nosso tempo, particularmente no Brasil”.

Coordenador da Comissão da área de Filosofia e Teologia da Capes, Perine é graduado em Filosofia, pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, São Paulo, e em Teologia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio. É mestre e doutor em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Gregoriana – PUG, na Itália, com a tese Filosofia e violência. Um estudo sobre o sentido e a intenção da filosofia de Eric Weil (São Paulo: Edições Loyola, 1987). Fez pós-doutorado na Università Vita Salute San Raffaele, na Itália. De sua produção intelectual, citamos as obras Um conflito de humanismos (Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2001), escrito em parceria com Henrique Cláudio de Lima Vaz, Platão. A República (São Paulo: Scipione, 2002) e Quatro lições sobre a ética de Aristóteles (São Paulo: Edições Loyola, 2006). Leciona na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, no Departamento de Filosofia.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Por que se pode falar em um “Platão de Lima Vaz”?

Marcelo Perine - A presença de Platão no roteiro da formação das ideias filosóficas do Pe. Lima Vaz é incontestável. O autotestemunho mais antigo a respeito encontra-se na sua Bio-Bibliografia, publicada inicialmente em 1976, no volume Rumos da filosofia atual no Brasil  e republicado, em 1982, no volume Cristianismo e história, organizado por Carlos Palácio como homenagem à celebração dos 60 anos de Lima Vaz.  Nesse autotestemunho Lima Vaz afirma que “a meditação do problema do sobrenatural no seu desenrolar histórico”, provocada pela obra do Pe. de Lubac , lhe descobriu “a posição arquetipal do platonismo nas estruturas mentais do Ocidente, e da teologia cristã em particular”, de modo que a partir de 1948, ainda como estudante de Teologia em Roma, ele afirma que se entregou “totalmente ao estudo dos ‘Diálogos’” e começou a “dar os primeiros passos incertos no campo sem fim da bibliografia platônica”. Esse primeiro contato com o texto de Platão foi fecundo, pois já no início do seu doutorado em Filosofia na Gregoriana, em 1950, ele afirma que “algumas linhas de uma possível tese já estavam esboçadas e era uma tese sobre Platão”.  Além desse autotestemunho, o minucioso trabalho de Rubens Godoy Sampaio  demonstrou exaustivamente a presença “fundacional” de Platão no método e na estrutura, nos temas e no sistema filosófico de Lima Vaz.  Já no primeiro capítulo, intitulado “Apresentação textual-cronológica dos temas de Lima Vaz”, Rubens Sampaio identifica em dois textos publicados em Ontologia e história, a saber, “A dialética das ideias no Sofista” e “Itinerário da ontologia clássica” , o que ele chama de “o ponto de partida da apresentação da metafísica do existir”.  De maneira mais detalhada, no capítulo quatro, sobre “O método dialético e a rememoração filosófica”, Rubens Sampaio demonstra que “o pensamento filosófico vaziano desdobra-se em sistema graças ao método dialético”, e que “Lima Vaz reinventou os métodos dialéticos platônico e hegeliano”, a ponto de determinar toda estrutura do seu sistema filosófico.

IHU On-Line - Quais são as peculiaridades de seu platonismo? E como esse platonismo se expressa em sua filosofia?

Marcelo Perine - Quando interrogado por Marcos Nobre e José Marcio Rego, em Conversas com filósofos brasileiros, sobre os conceitos mais representativos da sua posição filosófica, como eles surgiram e como os via então, Lima Vaz afirmou que se ligava a uma tradição para a qual a filosofia eleva-se sobre o transitório em busca de princípios que são também fundamentos. Os conceitos fundacionais que o acompanharam ao longo de sua evolução são o de “ato de existir”, recebido de Tomás de Aquino, que é a pedra angular da metafísica. Da antropologia filosófica, o conceito fundamental é o de eu como expressividade. A metafísica e a antropologia filosófica abriram-lhe o caminho para a ética, cujo conceito fundamental é o de bem, recebido de Platão e Aristóteles. E concluiu a sua resposta com uma afirmação que, a meu ver, revela a peculiaridade do seu platonismo e o modo como ele se expressa em sua filosofia: “Penso que os conceitos que chamo ‘fundacionais’, presentes já desde o início no núcleo básico das ideias filosóficas nas quais fui formado, foram sendo explicitados e adquirindo uma estrutura formal mais definida ao longo do meu magistério e do trabalho de preparação dos meus cursos. Aqui está realmente o roteiro da formação das minhas ideias filosóficas fundamentais”.

IHU On-Line - Em que medida Platão e a Grécia se constituíram em elementos importantes para a compreensão filosófica vaziana?

Marcelo Perine - Num texto originalmente escrito como conferência de encerramento da II Semana Filosófica da Faculdade de Filosofia da Companhia de Jesus, ocorrida de 2 a 6 de agosto de 1993, sob a epígrafe temática “Cultura e Filosofia”, publicado na revista Síntese , e retomado como primeiro capítulo dos Escritos de filosofia III, cujo subtítulo é, justamente, Filosofia e Cultura, Lima Vaz escreve algo que, a meu ver, responde a esta questão. Ele diz: “Platão e Hegel situam-se no começo e no fim da aventura da filosofia ocidental, entendida como o projeto talvez desmesurado, fruto da audácia de alguns efêmeros mortais, de recriar o mundo das coisas e o mundo dos homens à luz de um logos que julga, demonstra e unifica. Fazer-se o servidor e o seguidor desse logos, assim como Platão o propõe no Fédon, representa o risco da existência filosófica marcada [...] por essa atopia que a torna estranha ao torvelinho dos afazeres mundanos. Mas é justamente sobre esse torvelinho que o filósofo se debruça na intenção de reordená-lo segundo os cânones desse logos que ele se propôs seguir. Platão e Hegel representam, justamente, dois modelos dessa reordenação e, igualmente, duas possibilidades arquetípicas de interpretação da cultura segundo a matriz do logos filosófico”.

Na resposta anterior já citei a palavra de Lima Vaz referindo-se à presença de Platão e de Aristóteles, dos quais herdou o conceito fundamental da ética, que é o conceito de bem. Além disso, como demonstrou Rubens Sampaio, “a exposição da dialética platônica como ontologia e como método, recuperada e enriquecida por Hegel, faz-se presente na obra de Lima Vaz”.  A prova disso encontra-se num dos últimos textos de Lima Vaz, “Método e dialética”, escrito para o Terceiro Colóquio Filosófico da Faculdade de Filosofia da Companhia de Jesus, em outubro de 2000 e publicado em 2002 no volume Filosofia e método, que reúne as comunicações do evento.  Nesse texto, que é quase um testamento filosófico, Lima Vaz reflete novamente sobre a presença da dialética na histórica do pensamento ocidental e conclui exemplificando o uso da dialética na elaboração da sua Antropologia filosófica e no segundo volume da sua Introdução à ética filosófica.  Segundo Lima Vaz, esses dois textos podem ser considerados, respectivamente, como uma ontologia da pessoa humana e uma ontologia do agir humano, porque pretendem ser uma reflexão e um discurso sobre o ser humano e o seu agir do ponto de vista da sua inteligibilidade radical. Como se vê, por mais este autotestemunho, Platão e a Grécia estão presentes do início ao fim do itinerário filosófico de Lima Vaz.


IHU On-Line - Que características fundamentais apontaria em seu pensamento?

Marcelo Perine - Na resposta à segunda pergunta já lembrei que Lima Vaz afirmava que se ligava a uma tradição para a qual a filosofia se eleva, como por um movimento inato à sua natureza, sobre o transitório e o événementiel, e vai em busca de princípios, que são também fundamentos. Num de seus últimos textos dedicados a Platão, escrito em 1993 para a aula inaugural do Curso de Doutorado em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, com o sugestivo título “Platão revisitado. Ética e metafísica nas origens platônicas”, republicado recentemente no volume de Escritos de filosofia VIII. Platonica, Lima Vaz serve-se da ocasião para fazer um inventário do patrimônio que Platão legou à nossa tradição de filosofia. Logo no início do texto ele afirma: “a história de quase dois milênios e meio da pragmateia filosófica no Ocidente, a começar pelos discípulos imediatos de Platão e pelo maior deles, Aristóteles, nos mostra que o gesto inaugural de toda decisão autêntica de filosofar dentro da nossa tradição é um encontro ou um reencontro com Platão. Platão é o gênio tutelar da cidade dos filósofos, e seu pensamento é o pórtico por onde se entra nessa cidade que cresceu até tornar-se a megalopolis de ideias e sistemas por onde hoje andamos e muitas vezes nos perdemos”.  Na conclusão deste texto, Lima Vaz afirma que a atual “desplatonização” da filosofia, iniciada com Feuerbach, traduz-se hoje como “desconstrução” do edifício metafísico erguido por Platão na primeira metade do século IV a.C. Mas, continua Lima Vaz, “desconstruir esse edifício é também não deixar pedra sobre pedra na morada oferecida pela ordem das razões normativas do agir que o homem ocidental habitou durante tantos séculos e que denominamos Ética. O que resta depois dessa ‘desconstrução’ é o niilismo ou os escombros do sentido, que jazem sob os pés do homem errante do nosso tempo. Para mim, em todo caso, filosofar não é ‘desconstruir’ mas, como queria Hegel, ‘rememorar’, vem a ser, retomar no esforço presente do conceito a longa história do ser tal como foi inaugurada exatamente pela audácia do filosofar platônico; e reiterar igualmente a experiência que Platão nos mostra vivida exemplarmente por Sócrates  e que se tornou o modelo proposto aos alunos da primeira escola de filosofia que a nossa tradição conheceu: a de que a meditação sobre o Ser não é um inocente prazer da inteligência: é o mais grave e sério empenho da vida, é a passagem incessante do ser ao dever-ser (on-deon, Fed. 97 C, 99 C), do Ser ao Bem, da Metafísica à Ética”.  Portanto, a noesis em busca dos princípios e dos fundamentos, junto com a rememoração do esforço do conceito são, a meu ver, as características centrais do seu pensamento.

IHU On-Line - Qual é a atualidade e originalidade da análise de Lima Vaz sobre a modernidade?

Marcelo Perine - A meu ver, Lima Vaz nunca fez uma análise ex professo da modernidade, mas preocupou-se principalmente com alguns sintomas do que se poderia chamar de “crise da modernidade”. Talvez o sintoma que mais o preocupou foi o niilismo ético, anunciado de maneira tão impressionante por Nietzsche na aurora do século XX, com o qual a reflexão de Henrique Vaz se defrontou longa e silenciosamente nas últimas três décadas da sua vida filosófica. Como procurei mostrar num artigo publicado na Revista Síntese , o niilismo ético pode ser tomado como a chave de compreensão para o que Henrique Vaz chamou de “enigma da modernidade”, que, segundo ele, se traduz no “trágico paradoxo de uma civilização sem ética ou de uma cultura que no seu impetuoso e, aparentemente, irresistível avanço para a universalização, não se fez acompanhar pela formação de um ethos igualmente universal, que fosse a expressão simbólica das suas razões de ser e do seu sentido” , ou ainda, de maneira mais sintética, o “enigma de uma civilização tão prodigiosamente avançada na sua razão técnica e tão dramaticamente indigente na sua razão ética”.  As raízes desse niilismo ético deveriam ser buscadas numa tríplice ruptura apontada por Henrique Vaz: uma ruptura com a estrutura axiológica e normativa do ethos, que organiza teleologicamente as estruturas objetivas da socialidade; uma ruptura com a tradição pela primazia do futuro na concepção do tempo na modernidade, que levou ao predomínio do fazer técnico na concepção da ação humana, e, finalmente, uma ruptura com o fundamento transcendente das normas e dos fins da ação humana pela imanentização do sentido e do fundamento do valor na razão finita e na liberdade situada. Portanto, as raízes do niilismo ético seriam as mesmas da modernidade, forjada no cerne das revoluções que abalaram todas as estruturas do mundo ocidental a partir do final do século XVI, dentre as quais se inscreve o cartesianismo como a maior revolução filosófica depois de Platão. De fato, afirma Lima Vaz, “é na revolução operada por Descartes na estrutura do pensamento clássico que devem ser buscadas as origens de uma nova ideia da Ética e de uma nova figura da consciência moral”.


IHU On-Line - Qual é a importância de Deus e da espiritualidade nessa compreensão do nosso tempo realizada por Lima Vaz?

Marcelo Perine - Se a pergunta diz respeito a como isso se verifica na obra de Lima Vaz, remeto-me aqui, mais uma vez, à entrevista concedida a Marcos Nobre e José Marcio Rego, em Conversas com filósofos brasileiros. Interrogado sobre como ele, como sacerdote, descreveria a sua vivência do conflito ético e, em seguida, sobre como caracterizaria a sua relação com a religião e a fé, Lima Vaz afirmou que mesmo a crise ética que caracteriza o nosso tempo não se apresentara para ele sob a forma de um questionamento da sua opção de vida como sacerdote católico, e que ele se situa na linha da criação ética de Jesus, e do seu Evangelho, que tinham para ele valor permanente, não só em virtude da sua origem divina reconhecida pela fé, mas também em virtude da sua eficácia histórica. Rigorosamente falando, a questão não deveria ser de relação com a religião e a fé, pois elas não se apresentavam como algo extrínseco com o qual se relacionar, mas como vida e alimento. Quanto à compatibilidade das suas convicções religiosas com a profissão de filósofo, ele nunca experimentou grandes conflitos, dado que sempre se guiou pela diretriz de Santo Agostinho: “crê para entenderes e entende para creres”. Cito as palavras de Lima Vaz: “Essa dialética agostiniana entre fé e razão assegurou para mim um convivência fecunda entre a fé que professava e a razão que praticava. Meu trabalho filosófico mantém-se rigorosamente dentro das exigências metódicas e doutrinais da razão e todas as vezes em que atinge as fronteiras onde a razão se encontra com a fé essa linha divisória é explicitamente traçada”.

IHU On-Line - Como avalia a recepção da filosofia vaziana?

Marcelo Perine - A meu ver, a obra de Lima Vaz ainda não recebeu o lugar que lhe é devido no panteão das grandes filosofias do nosso tempo, particularmente no Brasil. Entretanto, cresce continuamente o número de estudos monográficos dedicados a ela. Já citei no início desta entrevista a obra de Rubens Godoy Sampaio, que é fruto de uma tese de doutorado por mim orientada, mas é preciso citar também a sua dissertação de mestrado, que foi orientada pelo Pe. Marcelo de Aquino.  Também orientei recentemente uma tese de doutorado de Maria Celeste de Sousa, defendida em 2009 na PUC-SP, com o título “Comunidade ética: reconhecimento, consenso e sociedade em Henrique Claudio de Lima Vaz”, e estou orientando outra tese de doutorado na PUC-SP, de Juliano de Almeida Oliveira sobre “Crise, niilismo e sentido: uma leitura hermenêutica e prospectiva a partir de H. C. de Lima Vaz”, e participei recentemente de uma banca de dissertação de mestrado na FAJE, de Emidio de Faria Junior, sobre “As condições de possibilidade da metafísica segundo Pe. Vaz”. Na FAJE há um grupo de estudos vazianos e que, por iniciativa deste grupo, tem-se organizado anualmente os Colóquios Vazianos de Belo Horizonte, abertos a todos os interessados e estudiosos da obra de Lima Vaz. Como se vê, aos poucos multiplicam-se os estudos monográficos e amplia-se o número de pessoas interessadas em conhecer e dar a conhecer a obra filosófica de Lima Vaz. Como suporte a esses estudos, além da obra já publicada, o Memorial Padre Vaz, constituído na Biblioteca da FAJE, tem planos de publicar parte do seu acervo ali conservado. Nesta linha, insere-se o já citado volume VIII dos Escritos de filosofia, reunindo textos de Lima Vaz sobre Platão e filosofia grega, e no próximo ano será publicada por Edições Loyola a tese de doutoramento de Lima Vaz, defendida na Gregoriana em 1953, sobre “Contemplação e dialética nos diálogos platônicos”, traduzida do latim pelo Prof. Dr. Juvenal Savian.

IHU On-Line - Como a sua trajetória enquanto filósofo foi marcada pela convivência com Lima Vaz? Quais são as principais recordações que guarda dele?

Marcelo Perine - Nunca fui aluno de Lima Vaz, e este é um fato que, sinceramente, posso lamentar. Entretanto, durante os quatro anos em que estudei Teologia na PUC do Rio de Janeiro, ele foi meu superior religioso, e este período foi decisivo em minha formação pessoal e intelectual, pois logo depois de terminar os estudos de teologia, fui destinado, como jesuíta, a fazer estudos especiais de filosofia na Gregoriana, em Roma. Naquele momento a presença de Lima Vaz foi determinante na escolha do meu objeto de tese. Na realidade, foi ele quem me sugeriu fazer o doutorado sobre a obra de Eric Weil e, diante das primeiras dificuldades sentidas no enfrentamento de uma das obras filosóficas mais importantes do século XX, a opinião dele foi decisiva para mim. Quando regressei ao Brasil, em 1986, comecei a lecionar na Faculdade de Filosofia da Companhia de Jesus em Belo Horizonte, justamente a disciplina de História da Filosofia Antiga, que era de Lima Vaz e, depois de algum tempo, também da disciplina de Ética, que era ministrada por ele. Foram anos de uma fecunda convivência e de muito aprendizado para mim. Eu sabia que podia recorrer a ele a qualquer momento e diante de qualquer dificuldade. Nesse período assumi a direção da Coleção Filosofia e da Revista Síntese, que também eram dirigidas por ele, e pude aliviar um pouco a carga de trabalho que pesava sobre ele, de modo a possibilitá-lo ter uma intensa produção, que se concretizaram nos dois volumes da sua Antropologia filosófica e da sua Introdução à ética filosófica. Também em 1994, no momento em que eu estava decidindo deixar a Companhia de Jesus, a presença serena de Lima Vaz foi muito importante para mim e devo confessar que a sua ajuda no meu processo de discernimento e decisão foi decisivo. Mesmo depois de ter deixado Belo Horizonte e me estabelecido em São Paulo, mantive sempre um contato muito fraterno e fecundo com ele, até o final de sua vida. Conservo até hoje algumas poucas cartas que ele me escreveu nesses últimos anos de vida. A maior recordação que tenho dele é a de um homem magnânimo, isto é, de alma grande, imensa, capaz de acolher a todos com generosidade extrema e muita bondade.

Unidade

Sobre Lima Vaz como intelectual, quero recordar aqui o mesmo parágrafo final de um pequeno texto que apresentei num colóquio realizado na PUC-Rio, poucos meses depois do seu falecimento, e que foi publicado num volume que organizei em sua homenagem, e com o qual também encerrei uma entrevista publicada no n. 197 da revista IHU On-Line em 25 de setembro de 2006 . O texto a que me refiro se intitula “Pe. Vaz: a plenitude de uma vida filosófica”, e se conclui assim: “A meu ver, a explicação para a admirável unidade entre a vida e a obra de Lima Vaz  está em que nele a razão e o coração estiveram irmanados, reconciliados, na serena busca da verdade, que desde a origem foi a estrela polar da filosofia. Eis porque quanto mais ele se aproximou das suas vésperas, tanto mais a vida filosófica de Lima Vaz revelou aquilo mesmo que a fez matinar. Foi por isso que, no encerramento da Semana Filosófica em homenagem aos seus 70 anos, concluí minha saudação com um adágio italiano que, a meu ver, se aplicava perfeitamente à vida e à obra filosófica de Lima Vaz. Com aquelas palavras, então, ditas no tempo presente, hoje, saudosamente no irreversível pretérito, concluo também esta homenagem: Padre Vaz era come il vino, invecchiando diventa fino”.

IHU On-Line - A filosofia de Lima Vaz pode ser considerada uma resposta ao relativismo e ao declínio da razão ética de nosso tempo? Por quê?

Marcelo Perine - Volto, mais uma vez, para concluir, à entrevista do Lima Vaz em Conversas com filósofos brasileiros, na qual afirma que na raiz do relativismo universal e do hedonismo está o fenômeno de um desequilíbrio ou descompasso entre o que chamamos a produção material da sociedade e seu universo simbólico. O crescimento vertiginoso da tecnociência e da produção de objetos levam a que a categoria do útil se erija como categoria primeira e quase exclusiva da prática social. Ora, afirma Lima Vaz, “o útil não pode, por definição, sendo condicionado pelo objeto por ele visado, desejado ou possuído, presidir o universo simbólico do ser humano onde estão presentes fins, normas e valores irredutíveis ao critério da simples utilidade”.  Diante dessa situação que caracteriza o nosso tempo, a reflexão filosófica de Lima Vaz tem algo a apresentar. Trata-se justamente da tarefa da filosofia, que ele realizou em sua obra. A tarefa da filosofia foi formulada de diferentes maneiras nos escritos de Lima Vaz, de maneira cada vez mais clara nos últimos dez anos, particularmente a partir da lectio magistralis sobre “Morte e vida da filosofia” , pronunciada no encerramento da Semana Filosófica em homenagem aos seus 70 anos. Precisaríamos reler aquela memorável conferência, na qual expõe as grandes linhas da sua autobiografia intelectual, para nos darmos conta da clarividência com que é formulada a tarefa da filosofia, magistralmente realizada na sua vida filosófica.
Baste aqui uma única citação para resumir o seu pensamento a respeito: “Para mim, o exercício do ato de filosofia é sempre uma ‘rememoração’ (uma Erinnerung, como diria Hegel), e uma ‘atenção’ que podemos chamar conceptualizante, ou seja, pensada, refletida e discursivamente explicada, à realidade. Duas dimensões que nascem da mesma origem do ato de filosofar – ou da decisão de filosofar, da qual fala Hegel – e que definem o espaço espiritual onde a Filosofia tem a sua morada e onde vive. Filosofia é anámnesis – recordação – e é nóesis – pensamento. Na verdade, toda cultura é anamnética, pois nem os indivíduos nem as sociedades podem viver sem continuamente recuperar sua vida vivida – seu passado – para nele perscrutar as razões da sua vida presente. Mas a Filosofia assume como tarefa pensar tematicamente seu próprio passado – unir anámnesis e nóesis – e, nessa rememoração pensante, reinventar os problemas que lhe deram origem e, assim, cumprir o destino que, ainda segundo Hegel, está inscrito na sua própria essência: captar o tempo no conceito – o tempo que foi e o tempo que flui no agora do filosofar”.

Experiência original e fundante

Essa tarefa teórico-prática é traçada para a filosofia em artigo de 1998 intitulado “Presença de Tomás de Aquino no horizonte filosófico do século XXI” . Após afirmar que a formação histórica da chamada modernidade estaria provavelmente chegando ao seu fim, ao qual seguir-se-ia “a passagem da modernidade como programa de civilização para a modernidade como forma definitiva de uma civilização”, isto é, “a forma do existir sob a norma da tecnociência, regendo todos os campos da nossa atividade” , Lima Vaz esboça um lugar possível para Tomás de Aquino no horizonte filosófico onde se destacam três elevações: história, metafísica e ética. O prognóstico de um novo surto do pensamento metafísico, que traduz a secreta esperança do filósofo, é formulado em face do dilema não apenas teórico, mas eminentemente prático “que se arma em torno da maneira de viver e interpretar a relação do ser humano com o domínio da realidade objetiva, dita relação de objetividade, e que estrutura o seu estar no mundo. Na relação de objetividade que prevalece na nossa cultura a realidade do mundo passa a oscilar cada vez mais entre a objetividade produzida pela atividade técnica e materializada nos objetos da produção técnico-industrial de um lado e, de outro, a objetividade dada ao ser humano na sua experiência original e fundante – experiência metafísica por definição – da transcendência do Ser sobre a finitude dos seres. Ora, essa experiência propriamente metafísica implica, em última análise, em virtude do dinamismo da afirmação, a posição de um Absoluto na ordem da existência”.

A mesma tarefa já tinha se esboçado como exigência de retomar a vocação pedagógica que inspira a filosofia desde a sua origem. A reflexão sobre “Ética e justiça”  no início do segundo lustro dos anos 1990 converge para a afirmação de que o caminho para superar os impasses em que nos encontramos estaria, talvez, na retomada da primeira revolução antropológica da nossa tradição, iniciada pela descoberta socrática da psyché como dimensão da interioridade humana portadora do logos, capaz de abrir-se à universalidade do Bem para se tornar sede da virtude e princípio interior da vida na justiça. Aquela revolução antropológica, imortalizada por Platão no Fédon, considerado também por Lima Vaz como “a carta magna do pensamento ocidental” , dirige a nossa atenção para a tarefa primordial da educação ética como educação para a liberdade, formulada no Fédon em termos de imortalidade. Segundo Lima Vaz, o “mundo ético não é uma dádiva da natureza. É uma dura conquista da civilização. Como também tem sido uma conquista longa e difícil o estabelecimento e a vigência do Estado democrático de Direito. Trata-se de conquistas permanentes, sempre recomeçadas e sempre ameaçadas pela queda no amoralismo, no despotismo e na anomia. E é, sem dúvida, no campo da educação que se travam, a cada geração, as batalhas decisivas dessa luta. É aí, afinal, que as sociedades são chamadas a optar em face da alternativa onde se joga o seu destino: ou a de serem sociedades da liberdade que floresce em paz ao sol do Bem e da Justiça [...], ou a de enveredarem pelos obscuros caminhos da horda sem lei”.

Leia mais...

>> Confira outras entrevistas concedidas por Marcelo Perine à IHU On-Line:

* As implicações éticas da cosmologia de Platão. Edição número 194, de 04-09-2006
* Pe. Vaz e o diálogo com a modernidade. Edição número 197, de 25-09-2006
* Platão e a ação política dos filósofos. Edição número 294, de 25-05-2009

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