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Márcia Junges
“Vencendo a tendência contemporânea a dilacerar o sentido presente na linguagem, Vaz convida seu leitor a rememorar os modos de expressão do ser humano e o conduz, nessa rememoração, a percorrer os grandes problemas teóricos e culturais de nosso tempo”. A análise é de Álvaro Mendonça Pimentel, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo ele, “o que marca a obra de Vaz é a sua reflexão sobre o nosso tempo, as nossas questões, as urgências de nossa cultura”. A respeito do humanismo teocêntrico de Lima Vaz, Pimentel observa: “Nesse sentido, contra o desalento de um ser humano que se compreenderia como mero acidente de um universo determinista, ou como ser puramente biológico e condicionado geneticamente, o humanismo teocêntrico vem defender a dignidade única do humano, sua liberdade e capacidade criativa”. Orientando na graduação em Filosofia por Lima Vaz, Pimentel recorda que os estudantes o consideravam uma lenda, embora ele não se comportasse como tal: “para minha surpresa e alegria, Vaz se mostrou disponível, simples e até modesto”.
Álvaro Mendonça Pimentel é professor na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE. É graduado em Filosofia nessa instituição e em Teologia pelo Centre Sèvres, nas Faculdades Jesuítas de Paris. Cursou mestrado em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e doutorado em Filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG com a tese A lógica da ação de Maurice Blondel: explicitação crítica na ação.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são suas maiores recordações de Lima Vaz como pessoa?
Álvaro Mendonça Pimentel – Minha convivência com Lima Vaz ocorreu principalmente nos três anos em que fui aluno do curso de filosofia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE, em Belo Horizonte, no período de 1993 a 1995. Assim, o conheci primeiramente como professor de história da Filosofia Antiga e de Ética. Já era então filósofo consagrado no cenário acadêmico nacional. Suas publicações faziam dele um dos principais pesquisadores da área de filosofia, nos domínios da ética, da antropologia filosófica e da metafísica. Sua fama e o respeito unânime por sua produção intelectual também promoviam uma tradição oral em torno de vários momentos de sua vida, criando, como é comum nesses casos, verdadeiras lendas. Não mentiras, mas fatos narrados fielmente, em que sempre se acrescenta algo saboroso, para tentar traduzir o sentimento vivido. Assim, por exemplo, o Vaz dos anos da UFMG, cujas aulas eram gravadas e filmadas por alunos eem que, dizem os que lá estiveram, reinava um silêncio e uma atenção reverente ao mestre em sua cátedra. Ou antes, o Vaz da época da ditadura militar que, interrogado em Juiz de Fora, respondia a todas as questões que lhe eram feitas, embora nem sempre quem o interrogasse conseguisse compreender o que ele dizia... E há dezenas de pequenas histórias divertidas e mesmo comoventes em que a realidade se transfigura em lenda, para traduzir seu sentido profundo.
Digo tudo isso para que o leitor compreenda que, quando conheci o Lima Vaz, ele já era um grande intelectual, um filósofo e pesquisador respeitado e, no círculo de amigos mais próximos, uma verdadeira lenda. Era normal, portanto, que um jovem iniciante em filosofia temesse aproximar-se de um mestre daquela estatura. Mas, para minha surpresa e alegria, Vaz se mostrou disponível, simples e até modesto. Estava sempre pronto para responder a minhas dúvidas e com que paciência! Acolhia-me para conversas filosóficas em privado, aconselhava leituras, sempre oferecendo livros em que houvesse um pequeno (por vezes, grande!) desafio ao leitor. Lembro-me, por exemplo, de me fazer ler o primeiro volume da Histoire de la pensée, de Jacques Chevalier , no primeiro semestre do curso. Quanto à lista de obras de grandes filósofos da tradição, essa incluía textos escolhidos de Platão, Aristóteles, Agostinho, Santo Tomás, Descartes, etc. Textos cheios de enigmas indecifráveis para um iniciante, mas também já repletos de luzes e conduzindo a horizontes amplos e desafiadores.
Sabedoria encarnada
Após o curso, parti para continuar minha formação e mantive contato epistolar e por telefone. Nascia assim uma amizade discreta e fiel, marcas da personalidade desse mestre ouro-pretano. Quando retornei à FAJE, em 2002, encontrei Lima Vaz mais debilitado fisicamente, lutando contra momentos passageiros de depressão senil, mas com aquele mesmo brilho, aquela mesma memória impressionantes. Tínhamos planos de trabalhar juntos, pois eu desejava fazer meu doutorado em Belo Horizonte. Mas Vaz submeteu-se a uma cirurgia que, mal sucedida, o conduziria a um calvário hospitalar de um mês – e à morte. Pude então testemunhar sua nobreza diante do sofrimento, consolando e animando os parentes que vinham visitá-lo. Conheci a força que lhe vinha da oração dos salmos e da eucaristia. Vaz não era apenas um erudito, mas um filósofo cuja sabedoria se encarnou na vida: ele não temeu a morte. E um cristão cuja fé não esmoreceu no último momento.
IHU On-Line – A máxima de Santo Agostinho “crê para entenderes e entende para creres" norteava Lima Vaz desde o início de sua trajetória intelectual e religiosa. A partir dessa concepção, como podemos entender sua relação com a filosofia e a fé?
Álvaro Mendonça Pimentel – Creio que não seria correto falar em “relação com a filosofia e a fé”, no caso de Vaz, caso se entendesse assim que filosofia e fé são objetos com os quais alguém se relaciona. Vaz era filósofo porque acreditava em Deus. Trata-se de uma atitude vivida. O encontro com Deus veio primeiro. A fé pessoal em Deus era vivida por Lima Vaz numa referência constante e agradecida ao testemunho recebido na família e, sobretudo, de sua mãe. Com isso não estou dizendo que Vaz tinha uma fé infantil, mas recordando um dado antropológico fundamental, e que marcará, aliás, a reflexão ética do filósofo Vaz: somos introduzidos no dom gracioso da fé graças ao testemunho que alguém, também digno de fé, dá da existência de Deus e de seu bem-querer para com a humanidade. A confiança é experiência inaugural de toda abertura humana ao mistério de Deus. Mas também de toda adesão livre aos costumes, valores e modo de vida de uma comunidade ética. Penso que essa confiança originária explica a coragem intelectual do Lima Vaz e a sua capacidade de enfrentar grandes desafios.
A fé cristã é dom gratuito. No entanto, mais cedo ou mais tarde, ela deverá ser acolhida livremente na vida. Eis o momento preciso, o momento da liberdade, em que a fé solicita a inteligência, pois, como não cessou de recordar-nos o Pe Vaz, não há ato livre que não carregue em seu seio um juízo sobre a verdade do bem em jogo nesse ato. O ato de fé, portanto, solicita a inteligência. E, no caso de Vaz, a solicitava, a provocava, a pensar a ação humana e o ser humano como capazes de Deus.
O teólogo desdobra, interpreta, acolhe o conteúdo da fé em seu discurso teológico. O filósofo, como é o caso de Vaz, examina o que é a realidade e o que é homem, para que também algo como a fé tenha se produzido. Nesse sentido, e embora não seja essa a intenção de sua Antropologia filosófica (vol. I e II) ou de sua Ética filosófica (Escritos de Filosofia IV e V), o estudo desses dois grandes textos pode preparar o caminho humano de quem um dia, não tendo recebido a fé no seio materno, sinta-se chamado a crer em Deus.
IHU On-Line – Em que aspectos Lima Vaz promoveu uma análise crítica do pensamento marxista?
Álvaro Mendonça Pimentel – Eis uma questão que precisaria de um longo desenvolvimento, porque, como se sabe, desde muito cedo Vaz participou ativamente do debate a respeito do marxismo. O pesquisador que quiser enfrentar tal desafio encontrará farto material, inclusive todas as notas tomadas por Vaz, mostrando que seu juízo crítico a respeito do marxismo encontra-se respaldado pelo estudo da obra de Marx e de eminentes marxólogos. Todo esse material inédito encontra-se no Memorial Padre Vaz, instalado atualmente na FAJE. Aí o historiador da filosofia terá acesso aos cadernos de notas e a dezenas de inéditos do nosso filósofo.
Mas, voltando à questão, eu destaco dois aspectos de grande interesse ainda hoje. Um referente à pastoral eclesial, outro de cunho mais teórico, respectivamente: a) Diante dos diversos marxismos, ou seja, das sistematizações inspiradas no pensamento de Marx, Vaz demonstrou, por um lado, a impossibilidade de um “marxismo cristão” ou de uma “pastoral marxista”, uma vez que o pensamento marxista exclui qualquer referência transcendente. Mas, por outro lado, assim como o jusnaturalismo foi uma condição para a doutrina dos direitos humanos, e esta, por sua vez, não fere, antes é confirmada pela fé cristã; assim também, Vaz percebia na análise marxista elementos que incidem sobre aspectos fundamentais da sociedade industrial moderna, compreendida como “civilização da produção organizada e (teoricamente) ilimitada de bens”. Ora, não é de se estranhar que esse e outros aspectos da análise marxista, com a crítica que eles representam a um modo de civilização potencialmente autodestrutivo, tenham sido assimilados pelo discurso cristão. E, assim, a previsão de Vaz, feita nas décadas de 1960 e 1970, de que “no século XXI o confronto com o marxismo será uma página virada na longa história do pensamento cristão”, parece hoje realizar-se. b) O aspecto de cunho mais teórico que desejo salientar é, justamente, o da negação de qualquer referência transcendente nas doutrinas marxistas. Vaz viu nesse aspecto uma perversão da compreensão da consciência humana. O fruto de tal perversão é a criação de uma “consciência revolucionária” que, estranhamente, por um lado, deve tecer-se num processo histórico e é, portanto, resultado desse processo; mas, por outro lado, é aquela que compreende e guia tal processo revolucionário e, portanto, o transcende e o produz! Ela é fruto da imanência, mas arvora-se um conhecimento transcendente, algo como o fim absoluto da história! Em sua contradição, ela se torna uma impossibilidade teórica e deriva, finalmente, para a linguagem mitológica. De fato, Vaz denuncia um ato de fé marxista que, teoricamente, não se sustenta.
IHU On-Line – Qual é a influência de Platão, Tomás de Aquino e Hegel em sua síntese filosófica?
Álvaro Mendonça Pimentel – É preciso distinguir um ato filosófico de uma “síntese” filosófica. Ou melhor, explicar o que se entende por síntese. Por exemplo, alguém poderia compreender tal questão como se filosofar significasse simplesmente organizar uma série de contribuições da tradição. E que avaliar uma “síntese filosófica” corresponderia, portanto, a ver se esses elementos se encontram bem organizados em determinado autor e, neste, melhor organizados que em outros. Mas isso significaria identificar a filosofia a um jogo de quebra-cabeça, em que a mesma figura se encontraria mais ou menos completa, mais ou menos fiel ao modelo original.
Não é assim que entendo a obra do Lima Vaz. Sem dúvida, Platão, Santo Tomás e Hegel são autores de grande importância para ele. Se considerarmos, por exemplo, a estrutura dialética de seus grandes cursos de antropologia filosófica e de ética (acima citados), sentimos imediatamente o ambiente hegeliano e platônico do filosofar de nosso autor. No entanto, tal dialética não faz de Vaz um hegeliano, pois seu ponto de partida não é “a força prodigiosa do negativo”, mas sim a superabundância ontológica de Deus, que cria livremente. E aqui o pensamento de Tomás de Aquino é fundamental. Esse é um exemplo de confluência e mútua correção que só um pensador como Vaz, profundo conhecedor da tradição filosófica, seria capaz de realizar. Ele introduz na dialética o dom ontológico e, na ontologia, o dinamismo histórico, transformando, assim, um método e um conteúdo da tradição. Portanto, se é importante conhecer as influências sofridas por um autor como Vaz, é mais importante perceber como essas influências encontram-se por ele transformadas – e não apenas nele reorganizadas! – obedecendo a uma intuição original e pessoal. Muitos outros exemplos como esse, incluindo, aliás, vários outros autores, poderiam ser dados.
IHU On-Line – Qual é a atualidade e importância dessa síntese e em que ela consiste?
Álvaro Mendonça Pimentel – Creio que a principal contribuição do pensamento de Lima Vaz não está numa “síntese” que se mostre atual, mas sim em sua coragem de pensar os problemas atuais à luz da grande tradição filosófica. Platão, Tomás de Aquino e Hegel viveram em mundos que não são mais os nossos. Se quisermos filosofar hoje, não basta conhecê-los bem e elaborar uma síntese. A filosofia nasce da vida, das questões que se colocam na existência humana. E a tradição filosófica, representada aqui por essa tríade de gigantes, nos ensina, não as respostas, mas um modo de vida que permite tratar nossas questões e elaborar nossas respostas.
Veja, por exemplo, o que se diz hoje constantemente sobre a fragmentação do ser humano. Trata-se, é claro, de uma fragmentação de discursos sobre o ser humano, da ausência de uma imagem unificada de nosso ser e, mesmo, de discursos concorrentes e mutuamente excludentes. Somos seres fundamentalmente biológicos, sociais, ou culturais? Vaz propõe então uma antropologia filosófica. Ele não é o único nem o primeiro a fazê-lo no século XX. Mas ele o faz a seu modo, com seu estilo próprio de escritura. E o ser humano que se desenha ao longo do discurso dialético é um excesso de ser que não se esgota no discurso, mas que aí se unifica. Vencendo a tendência contemporânea a dilacerar o sentido presente na linguagem, Vaz convida seu leitor a rememorar os modos de expressão do ser humano e o conduz, nessa rememoração, a percorrer os grandes problemas teóricos e culturais de nosso tempo. O mesmo ocorre nos escritos de ética, quando Vaz decide enfrentar o niilismo contemporâneo. Ou em seus textos metafísicos em que ele pergunta pelos fundamentos últimos do real.
IHU On-Line – Qual é a importância e o maior legado de Lima Vaz dentro da filosofia brasileira?
Álvaro Mendonça Pimentel – A filosofia acadêmica brasileira cresceu de modo admirável nas últimas décadas. Seu principal desenvolvimento concentrou-se no estudo e na recepção da tradição filosófica. Grandes professores de filosofia enveredaram pela trilha da filologia. Com isso, o acesso e a interpretação dos textos da tradição encontra-se hoje facilitado. Comentários detalhados e tecnicamente impecáveis, escritos por professores brasileiros, começam a surgir no mercado editorial especializado.
Nesse contexto, a obra do Lima Vaz (e de alguns outros pensadores contemporâneos) desponta como uma contribuição diferente. Vaz também praticou o comentário detalhado de textos importantes, traduziu grandes autores da tradição e deu atenção a vários debates teóricos ao longo de sua carreira. O que eu disse acima a respeito do marxismo é um exemplo, talvez o mais marcante; mas haveria outros, como é o caso de seu confronto com Heidegger. No entanto, o que marca a obra de Vaz é a sua reflexão sobre o nosso tempo, as nossas questões, as urgências de nossa cultura. Ele a teceu lentamente ao longo de vários anos. Ele ordenou seus argumentos sempre em largos quadros teóricos, tratando integralmente as questões contempladas, vencendo as tendências parciais e as tentações fáceis dos modismos de autores. Ler Vaz é situar-se nesses horizontes amplos, ganhar os vários ângulos de cada questão por ele tratada e perceber, nas entrelinhas, o que não se diz, o que não se pode talvez mesmo dizer, a intuição que guia um grande autor e que ele apenas nos sugere, para que nós também a encontremos por nós mesmos.
IHU On-Line – O que é o humanismo teocêntrico que Vaz propõe em Raízes da Modernidade? Como esse conceito ajuda o sujeito a viver e superar o tempo de incertezas de hoje?
Álvaro Mendonça Pimentel – Falar em “humanismo teocêntrico” pode parecer contraditório. Afinal, humanismo não consistiria numa centralidade do humano? Dever-se-ia, pois, preferir a expressão “humanismo antropocêntrico”? Triste expressão, seja porque encerra um pleonasmo (homo = anthropos), seja porque desconhece as matrizes históricas formadoras do humanismo. Ler Vaz traz-nos, ao contrário, a alegria de beber nas fontes geradoras da ideia de humanismo e que se encontram na cultura grega e seu legado metafísico, na cultura latina com seu legado ético-jurídico e teológico e, finalmente, na cultura bíblico-cristã e sua herança religiosa. O humanismo teocêntrico nada mais é do que esse longo percurso ideal e histórico em que a consciência humana se diferenciou e, portanto, se enriqueceu, situando o ser humano como um movimento de realização, que não se esgota em sua história, tampouco em suas obras, mas abre-se a Deus, simbolicamente representado nas formas da metafísica, realmente conhecido na afirmação de Deus e no ato de fé.
A filosofia não vale um minuto de aflição se ela não é também sabedoria, ou seja, se a coragem de pensar não traz consigo a força para viver. Nesse sentido, contra o desalento de um ser humano que se compreenderia como mero acidente de um universo determinista, ou como ser puramente biológico e condicionado geneticamente, o humanismo teocêntrico vem defender a dignidade única do humano, sua liberdade e capacidade criativa. Se a realidade última é mero determinismo; não há espaço para a liberdade e a criatividade, para a novidade e a comunhão, para a amizade e o amor. Não há lugar para a diferença, pois tudo se encontra determinado pelas mesmas leis universais e necessárias, tendendo à mera identidade formal. Não há, finalmente, sequer razão suficiente para lutar pela justiça e para dedicar-se à tarefa política.
Mas se, na origem do mundo, encontra-se uma liberdade criadora que chama ao ser outras liberdades, então se pode conceber nossa existência, por sua vez, como prolongamento da criação livre, voltada à construção de um mundo humano. Afirmar Deus e afirmar a humanidade são tarefas teóricas inseparáveis, cujas consequências práticas são enormes, como se pode ver. Ninguém está obrigado a fazer metafísica, mas é preciso ter clareza do que se encontra em jogo quando se adere sem exame crítico a posturas teóricas que supõem sempre uma metafísica qualquer. Eis o que Lima Vaz nos ensina e nos recorda ao propor para nossa época um “humanismo teocêntrico”.