Edição 374 | 26 Setembro 2011

Uma ética para além do relativismo e da fragmentação

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Márcia Junges



IHU On-Line – Como é a recepção da obra filosófica de Lima Vaz no exterior?

Cláudia Maria Rocha de Oliveira – Como mostrou em sua tese de doutorado o professor Dr. Elton Vitoriano Ribeiro, SJ, a obra filosófica de Lima Vaz pode ser situada, pelos temas que aborda e pela novidade e rigor de seus argumentos, no mesmo nível de validade e reconhecimento que adquiriram as obras de autores tais como Charles Taylor  e Alasdair MacIntyre . É possível ainda situar a obra de Lima Vaz na trilha da renovação do pensamento tomista. Seguindo o caminho iniciado por Joseph Marechal e seguido por autores tais como Joseph de Finance, Gustav Sieweth, Gaston Fessard , Bernhard Lakebrink e J. B. Lotz, também Lima Vaz propôs, a partir do confronto com as ideias filosóficas modernas, uma releitura da metafísica de Tomás de Aquino.
Contudo, apesar do imenso valor filosófico de sua obra, infelizmente, Lima Vaz é ainda pouco conhecido no exterior. A língua portuguesa é pouco utilizada no meio acadêmico internacional. Talvez essa seja hoje uma das grandes dificuldades com a qual esbarra a divulgação da rica obra do eminente pensador ouro-pretano.

IHU On-Line – Qual considera o maior legado de Lima Vaz para o diálogo com a cultura contemporânea?

Cláudia Maria Rocha de Oliveira – Para Lima Vaz, a filosofia, mais do que mera profissão ou atividade acadêmica, é um modo exigente de vida. Por um lado, é necessário obedecer ao rigor da investigação filosófica. Mas o rigor não pode ser sinônimo de esquecimento da realidade. A filosofia não pode se esgotar no exercício também importante da interpretação dos pensadores e dos termos clássicos. Ela exige que a leitura desses pensadores e a interpretação desses termos sirvam de apoio para que se torne possível um verdadeiro diálogo do filósofo com o seu tempo, ou seja, com a cultura na qual está inserido. Lima Vaz, portanto, não pretende fornecer nenhuma resposta definitiva sobre a realidade e a vida. Mas a sua filosofia é um convite a cada um de nós para que possamos pensar a realidade na qual vivemos. Além disso, Lima Vaz mostrou que é possível a partir do próprio seio da fé cristã estabelecer um diálogo fecundo com a cultura contemporânea. Enquanto modo de vida, a filosofia não permite que adotemos um tom de neutralidade em nossos discursos. Ao envolver e empenhar todo o nosso ser, o exercício filosófico exige que assumamos abertamente os pressupostos em que subjazem nossos discursos, não para afirmá-los de modo arbitrário ou autoritário, mas sim para, a partir deles, estabelecer um diálogo lúcido e coerente com o diferente e o novo.

IHU On-Line – Poderia explicar em que consiste a síntese filosófica de Lima Vaz?

Cláudia Maria Rocha de Oliveira – Lima Vaz era um filósofo preocupado com a realidade histórico-social na qual estava inserido. A sua obra filosófica pode ser interpretada como uma tentativa de reconduzir os dualismos que marcam o universo simbólico-cultural do século XX a uma unidade de sentido e de orientação. Um dos principais dualismos com o qual Lima Vaz se confronta é a aparente oposição entre o cristianismo e o mundo moderno. As oposições entre imanência e transcendência, finito e infinito, relativo e Absoluto serão constante tema de sua reflexão. Apoiando-se na firme convicção de que por trás do aparente sem-sentido do mundo e dos acontecimentos é possível afirmar uma inteligibilidade radical para a existência humana, ele assume como ponto de partida fundamental que norteia todo o seu pensamento a experiência místico-religiosa do transcendente, fundamento da existência e do agir humanos. A partir dessa experiência do transcendente ele procura lançar luzes sobre as ambiguidades da modernidade. A partir do método dialético de inspiração platônico-hegeliano, propõe uma releitura da filosofia de Tomás de Aquino. Compreendido como um caminho de busca que orienta a atividade intelectual em direção à solução de aporias, o método dialético permite a Lima Vaz pensar os dualismos que marcam a cultura numa síntese de identidade na diferença. Com a ajuda desse método, ele mostrará que é no solo da teologia cristã, de modo especial, no solo do século XIII que irão se desenvolver as grandes intuições que marcam o pensamento moderno e que, portanto, é possível um diálogo entre o cristianismo e a modernidade.

IHU On-Line – Como se dá o diálogo de Lima Vaz com o legado hegeliano?

Cláudia Maria Rocha de Oliveira – Para Lima Vaz, Hegel é um dos autores inaugurais da Filosofia. A ontologia clássica, da qual a dialética platônica constitui-se como expressão, é essencialmente cosmológica. A filosofia moderna, ao contrário, é eminentemente antropológica. Além disso, Hegel não afirma um sujeito puro cogito como Descartes. Ao colocar em evidência a historicidade de nosso ser-aí, ele inaugura na filosofia um novo modo de interrogar a respeito da história. O sujeito passa a ser definido pelo seu ser histórico. Ele é compreendido a partir das suas manifestações no tempo.
Ao inspirar-se na dialética hegeliana, Lima Vaz pretende, como Hegel, afirmar uma unidade de sentido para as várias manifestações do espírito no tempo. Ele pensa, pois, a pessoa humana no seu movimento de autorrealização através do desenvolvimento do seu ser na história. Contudo, se para Hegel o sentido das várias manifestações do espírito se encontra na imanência da história, para Lima Vaz, o ser situado do sujeito é continuamente interpelado pela sua abertura intencional infinita ao horizonte transcendente da Verdade e do Bem. Uma unidade de sentido para as manifestações do sujeito na história deve ser buscada à luz de uma dialética entre o finito e o infinito, a imanência e a transcendência. Para Lima Vaz, a tarefa da filosofia consiste, então, em exprimir discursivamente as diferentes formas de presença do infinito no finito. Ou ainda, em exprimir discursivamente o próprio movimento de autodesenvolvimento histórico do ser finito na sua relação constitutiva com o Absoluto transcendente.

IHU On-Line – Em que medida seu pensamento contribui para uma revisão do humanismo na pós-modernidade?

Cláudia Maria Rocha de Oliveira – Por humanismo Lima Vaz compreende um projeto de efetivação histórica de uma ideia exemplar de homem em todos os domínios da realidade. Essa ideia passa a ser assumida como pressuposto que orienta as experiências, as interpretações, o agir e o fazer dos homens. As origens da tradição do humanismo remontam ao século XII e, para Lima Vaz, a sua expressão mais elevada se encontra nas obras dos teólogos do século XIII, de modo especial na obra de Tomás de Aquino. Nas origens da tradição humanista, portanto, a ideia exemplar de homem se desenvolve a partir de uma referência essencialmente teológica. O homem, ser de razão e vontade, abre-se à universalidade do Ser. Ele acolhe o Ser na sua universalidade e se ordena ontologicamente ao Absoluto.
Contudo, a partir da modernidade, o humanismo teocêntrico cedeu lugar ao humanismo antropocêntrico. O homem passou a ser afirmado como o fundamento de sua própria existência. O abandono do Absoluto transcendente conduziu, no entanto, à dispersão semântica do termo humanismo e a uma proliferação de “humanismos”: o “humanismo ateu”, o “humanismo evolucionista”, o “humanismo existencialista”, entre outros. Esses novos humanismos passaram a se opor ao humanismo teocêntrico e terminaram por gerar um espírito anti-humanista. A ideia de homem entrou em crise e perdeu a sua unidade. Todos esses acontecimentos acabaram por conduzir à proclamação do niilismo pós-metafísico.

Diante desse contexto, Lima Vaz se propõe reencontrar uma ideia unitária de ser humano que permita afirmar um sentido radical para o simples existir. Ao defender a tese de que as raízes da modernidade devem ser buscadas no solo do século XIII, de modo especial na metafísica de Tomás de Aquino, ele propõe como alternativa à crise de seu tempo uma releitura da metafísica tomásica a partir da dialética de inspiração platônico-hegeliana. Nessa releitura, ele afirma o homem como ser histórico, constitutivamente aberto ao transcendente. A referência ao transcendente o permite conferir inteligibilidade radical para o existir e o agir humanos. Ora, a meu ver, é justamente ao propor uma renovação do humanismo teocêntrico que Lima Vaz contribui para a revisão do humanismo no contexto da pós-modernidade.

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