FECHAR
Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).
Márcia Junges | Tradução: Benno Dischinger
Uma filosofia centrada na realidade histórica e na prática política, ao invés de se fixar no “ser enquanto ser”. Assim pode ser caracterizado o fazer filosófico de Ignácio Ellacuría, observa o filósofo espanhol José Mora Galiana, na entrevista que concedeu, por e-mail à IHU On-Line. “A constatação da não-justiça, da não-liberdade, da não-verdade o obrigava a acentuar a dimensão ética e política da Filosofia latino-americana”, afirma. E continua: “O laço entre Filosofia da Libertação e os Direitos Humanos é uma sequência obrigatória da função pedagógica da Filosofia e de sua análise da realidade: a violação da vida, as matanças de camponeses, os desaparecidos, e os crimes de Estado obrigam moralmente à defesa dos direitos humanos, sendo o primeiro e principal o da vida”.
José Mora Galiana, doutor em Filosofia, é assessor de projetos sociais e europeus na Fundação AFIES e professor de Filosofia de Direito e Política na Universidade Pública Pablo de Olavide, de Sevilha. Em outubro de 2009, junto com Juan Antonio Sennet de Frutos e Raúl Fornet Betancourt, formou o Comitê Científico do “Congresso Internacional Ignacio Ellacuría, vinte anos depois”, celebrado na Faculdade de Direito da Universidade de Sevilha. Nesta semana, participará do XII Corredor de Ideias de Porto Alegre onde proferirá a conferência O pensamento de Ignacio Ellacuría sobre Filosofia da Libertação e Direitos Humanos. Também nesta semana, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ele continuará o Ciclo Perspectivas do Humano, apresentando a vida e a obra de Ignácio Ellacuría. Em 12-09-2011, às 19h30min, no Auditório Central da Unisinos, falará sobre Filosofia da Libertação e Direitos Humanos no pensamento de Ignacio Ellacuría. Em 15-09-2011, no IHU Ideias, das 17h30min às 19h, seu tema é Vida e obra de Ignacio Ellacuría. À noite, das 19h30min às 22h30min, apresentará a conferência Filosofia, Universidade e Política: a inserção social de Ignacio Ellacuría.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como se relacionavam o fazer filosófico e a práxis política de Ignacio Ellacuría?
José Mora Galiana - Ignacio Ellacuría, após uma sólida formação em Filosofia, considerava que o inescusável, sobretudo na América Latina, era partir da realidade, sentida, atualizada, pensada e entendida como realidade histórica estruturalmente injusta. A constatação da não-justiça, da não-liberdade, da não-verdade o obrigava a acentuar a dimensão ética e política da Filosofia latino-americana. Segue daí que, em sua época de maturidade intelectual e humana entendesse a Filosofia como síntese entre o “nous theoretikos” e o “nous politikos”. A filosofia, para ser tal, para ser paixão e amor pelo saber e o conhecer, e pelo fazer a verdade e a justiça, tem necessariamente uma dimensão comunitária, pública e política. Por isso, o objeto da filosofia que ele propõe não é “o ser enquanto ser”, senão a realidade histórica e a práxis política.
IHU On-Line - Como podemos compreender o laço que unia Filosofia da Libertação e Direitos Humanos no pensamento desse jesuíta?
José Mora Galiana - O laço entre Filosofia da Libertação e os Direitos Humanos é uma sequência obrigatória da função pedagógica da Filosofia e de sua análise da realidade: a violação da vida, as matanças de camponeses, os desaparecidos, e os crimes de Estado obrigam moralmente à defesa dos direitos humanos, sendo o primeiro e principal o da vida. A não-vida digna obriga igualmente à defesa dos demais direitos individuais, sociais, econômicos, culturais, religiosos e políticos.
IHU On-Line - Qual é a conexão entre sua Filosofia da Libertação e a Teologia da Libertação? Em que aspectos Filosofia e Teologia da Libertação se entrelaçam ao longo de sua caminhada?
José Mora Galiana - A Filosofia da Libertação, que é libertação da Filosofia subjetiva, transcendental ou teorética e justificativa da dependência, do domínio e da escravidão, é, por sua vez, o fundamento da Teologia Canônica, que se abre “transcendentalmente” à “ortopráxis”. Pois, como amar a Deus a quem não se vê se não se ama o irmão – em situação de necessidade – a quem, sim, se vê?
IHU On-Line - Dentro da categoria “Libertação” é que podemos compreender a inserção social de Ellacuría, mesclando Filosofia, Universidade e Política? Por quê?
José Mora Galiana - O tema da Filosofia e da Política foi expressamente tratado por Ignacio Ellacuría em 1972 (justamente um ano antes de escrever sua Teologia Política num contexto social no qual se exigia uma reforma agrária que não chegaria a produzir-se nunca). Há neste tema um referente clássico: a pessoa e o modo de filosofar de Sócrates , e um referente externo: a politização universitária na Espanha frente à ditadura. Porém, substantivamente, a história é forçosamente política num ou noutro sentido e, consequentemente, também nossas atuações humanas, quando têm uma repercussão pública. Por isso ele coloca, a partir da Universidade, a exigência de um pensamento crítico que mergulhe no por que e no para que das coisas, da ciência e das atuações ou opções. Pode-se legitimar um status quo injusto ou se pode denunciá-lo como estruturalmente injusto. Porém, se o status quo é injusto é preciso denunciar as falácias, é preciso denunciá-las e transformar a realidade para poder alcançar a libertação das maiorias frente ao poder e o domínio das minorias. E essa é a correta polarização universitária na dimensão política da Filosofia. Esse debate, quando se trata da terra, do acesso aos bens, e dos Direitos Humanos, tem evidentemente uma grande projeção social. A Filosofia, toda ela, não é asséptica, pois tem de seu uma dimensão política de muito calado.
IHU On-Line - Ellacuría considerava que a realidade é que deve constituir o objeto fundamental da reflexão filosófica. A partir disso, qual é a importância do seu legado filosófico hoje, em tempos em que a injustiça social parece ter piorado?
José Mora Galiana - A importância do legado humanista (frente ao utilitarismo neoliberal ou tecnológico); do legado filosófico sobre o que, o porquê e o para que das atuações humanas; do legado político sobre a necessidade da ética na transformação social; e do legado teológico, como aposta da salvação e libertação histórica a partir das maiorias populares e a partir dos pobres de espírito, tem uma grande atualidade frente às tendências do pensamento único que querem consagrar e legitimar a concentração do capital, o poder e os bens em poucas mãos, excluindo a imensa maior parte da Humanidade, que deve passar a ser sujeito ativo de sua própria história.
IHU On-Line - E em termos eclesiais e sociológicos, que lições deixou ele a partir de sua trajetória?
José Mora Galiana - A lição que se extrai é a necessidade de apostar pelo paradigma da Comunidade Humana, sem exclusões. Pois é o conjunto, é a comunidade, e não poucos privilegiados, o que gera a plenitude e a maior riqueza de todas as nossas potencialidades. Trata-se, a longo prazo, mas também a curto e médio prazo, de ir revertendo a história, a partir das necessidades básicas e de realização da imensa maior parte dos seres humanos (praticamente os 80% da Humanidade).
IHU On-Line - Quais são as influências de Zubiri e Rahner em suas concepções teológicas?
José Mora Galiana - A principal influência de Rahner é o sentido da historicidade que Ellacuría aplica aos conceitos teológicos (por exemplo, a “salvação” e o próprio conceito de “Deus”) e aos conceitos filosóficos, jusnaturalistas ou jurídicos (tais como a Justiça, a Verdade, o Bem Comum, a propriedade... ou a vida digna e a dignidade humana). Ellacuría partirá sempre da análise da realidade: da violação da vida, da não-propriedade de muitíssimos, do Mal Comum, da mentira e do encobrimento da verdade, e da injustiça estrutural para propor o princípio da esperança da transformação, o mais objetivamente possível, tendo em conta os condicionantes naturais, biológicos, psicológicos, pessoais, sociais e institucionais, econômicos, culturais, militares e políticos. E é aí onde a Filosofia tem uma função pedagógica e libertadora de transformação pessoal e comunitária.
A Influência principal de Zubiri está no modo de abordar a realidade, complexa e dinâmica, para ir à essência da realidade por meio da inteligência que necessariamente tem que pensar e optar por ser impressionada pela realidade histórica. Sua influência também está presente na maneira de entender a pessoa e a comunidade, em relação com a natureza, em relação com a própria realização (“personeidade”) e em relação com a abertura para o que nos transcende, a partir da re-ligação filosófica, que é metafísica.
IHU On-Line - Qual é o seu sentimento ao ministrar três atividades acadêmicas num espaço chamado Sala Ignácio Ellacuría e Companheiros, na Unisinos? O que essa simbologia evoca de suas recordações?
José Mora Galiana - Meu sentimento é de agradecimento. Muito concretamente, é obrigatória a referência à pessoa que tramitou minha presença aqui, o Prof. Dr. Castor Bartolomé Ruiz . Eu me considero discípulo de Ignacio Ellacuría e para mim é uma honra ser convidado ao XII Corredor das Ideias e à Universidade Unisinos para expor a Filosofia da Libertação de Ignacio Ellacuría e sua defesa dos Direitos Humanos, a partir da Universidade e a partir da Filosofia Política, porém desde a impressão da realidade mais necessitada.
IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
José Mora Galiana - Ignacio Ellacuría escrevia seus cursos e redigiu os cadernos de seu livro sobre a Filosofia da realidade histórica a máquina. Ele foi assassinado em 16-11-1989, com o conjunto de sua comunidade , no ano da queda do muro de Berlim. Salvaram-se Rodolfo Cardenal e Jon Sobrino. Hoje, contudo, ainda não se reverteram os dividendos da paz em saúde, educação, ciência e bem-estar social. Ainda segue vigente o paleolítico da economia da guerra e a tecnologia militar e paramilitar. Já é hora que, por meio da internet, por meio do pensamento crítico ativo, nos unamos todas as Universidades do Mundo para reverter a história, para humanizar mais e mais o sentido da vida, da convivência e da construção da cidade.