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Thamiris Magalhães
Para Marilene Maia, a Constituição Cidadã define que os indivíduos devem ter garantidos os direitos civis, políticos e sociais. “Para que esses direitos sociais sejam de fato garantidos, foram construídas políticas sociais, que estão apresentadas em diferentes legislações sociais: Lei Orgânica da Saúde – LOS, Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS, Estatuto do Idoso, entre outras”, afirma. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, a docente diz que “há uma forte dualidade entre investigação e ação” e que “a academia e as instituições da intervenção no campo social necessitam articular-se”. A professora acredita que as políticas sociais podem se constituir em ferramentas estratégicas para conhecimento, análise e construção de um projeto de desenvolvimento local, municipal, estadual e nacional.
Marilene Maia é graduada, mestre e doutora em serviço social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e leciona no curso de Serviço Social da Unisinos. Organizou a obra Caderno IdeAção - Políticas Sociais para um novo mundo necessário e possível (Santa Maria: Gráfica Pallotti, 2002) e trabalha no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, onde coordena o Observatório da realidade e das Políticas Públicas do Vale do Rio dos Sinos – ObservaSinos. Maiores informações no site http://bit.ly/jdXLM1.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Programas sociais do governo, como Sistema Único de Assistência Social, Bolsa Família, Brasil sem Miséria, Pró-Jovem, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, fazem parte da política social do governo ou são um programa de governo? Por quê?
Marilene Maia – Ao referirmos o Sistema Único de Assistência Social – SUAS, estamos tratando de um sistema que concebe e organiza a Política de Assistência Social, que é maior do que os programas Programa Bolsa Família, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), Pró-Jovem, etc. A Assistência Social é uma política estatal, que é materializada através de programas geridos pelos governos. Trata-se de uma concepção recente que vem sendo implantada com o processo de democratização do Estado e da sociedade brasileira. É importante destacar que o “social” no Brasil desde a Constituição de 1988 passa a ter um status político, já que até então era tratado como caridade ou benesse. A Constituição Cidadã define que os cidadãos devem ter garantidos os direitos civis, políticos e sociais. Esses direitos sociais são, conforme o artigo 6º, “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. Para que esses direitos sociais sejam de fato garantidos, foram construídas políticas sociais, que estão apresentadas em diferentes legislações sociais: Lei Orgânica da Saúde – LOS, Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS, Estatuto do Idoso, entre outras. Tais políticas são materializadas através de programas e serviços de responsabilidade primeira dos governos, porém, com possibilidades de sua gestão em parceria com a sociedade civil. A deliberação e o controle dessas políticas, programas e serviços são, no entanto, de responsabilidade dos conselhos municipais, estaduais e nacionais, que são instâncias de composição paritária com representação do governo e da sociedade civil. Esse processo constitui-se em um avanço significativo dos sistemas públicos de promoção e proteção social da sociedade brasileira, que carrega uma história de desigualdades socioeconômicas e de práticas paternalistas e assistencialistas no campo social. Os governos, com isso, devem ser os primeiros signatários e responsáveis pela viabilização de programas que sejam efetivos nos seus propósitos de rompimento, por exemplo, com as situações de vulnerabilidade e risco social vividos por uma parcela significativa da população brasileira. Para tanto, a Constituição Federal e as legislações sociais apresentam um conjunto de determinações a serem garantidas, independente dos governos que entram ou saem. Além disso, o desafio posto é de que as políticas sejam implementadas numa perspectiva descentralizada e participativa, onde cada esfera, municipal, estadual e federal, passa a compartilhar responsabilidades. Isso para enfrentar uma lógica clientelista dos políticos em relação ao povo e centralizada do poder federal em relação às outras esferas estadual e municipal, onde a vida das pessoas acontece.
Ademais, temos percebido que, apesar de todos os avanços em relação ao trato do social posto pelas diretrizes das políticas, do investimento financeiro crescente nesta área, pelas instâncias de controle instaladas para cada uma das políticas e dos programas (por exemplo, temos conselhos para cada uma das políticas da saúde, educação, assistência social e conselho que controla o programa Bolsa Família), ainda temos limites em relação à sua implementação. Temos hoje uma presença exageradamente forte do governo federal na definição das políticas implementadas pelos municípios e estados, concentração de poder e recursos neste sentido. Esta realidade caracteriza ainda a valorização maior dos programas de governo do que as políticas de Estado de responsabilidade dos governos. Eis um desafio importante a superarmos. Isto é conteúdo central para o avanço da democratização do Estado brasileiro.
IHU On-Line – Durante uma conferência realizada este ano, em Sapucaia do Sul, RS, enhora propôs discutir a respeito do “Fortalecimento da participação e do controle social”. Segundo seu entendimento, que ações devem ser tomadas para que seja fortalecida a participação social nos projetos do governo e em que sentido deve haver um melhor controle social?
Marilene Maia – Participamos da Conferência Municipal de Assistência social, que é a instância máxima de deliberação e controle social da política no município. As conferências acontecem primeiramente nos municípios, cujos resultados são debatidos nos estados e, finalmente, chegam à Conferência Nacional, quando se avalia e projeta a política para os dois anos seguintes. Trata-se de um avanço importantíssimo no trato das políticas sociais, já que nas conferências é possível avaliar o caminho trilhado e definir as diretrizes para a sua continuidade, com a participação de todas as instâncias implicadas: governos, instituições prestadoras de serviço, trabalhadores da área, população usuária dos serviços e cidadãos. Neste ano, o tema da VIII Conferência Nacional de Assistência Social é “Consolidar o SUAS e valorizar seus trabalhadores”. Um dos quatro subtemas é o “Fortalecimento da participação e do controle social”. Tema de fundamental importância, dada a realidade que vivemos de centralização e de “governamentalização” das políticas e, em especial, da política de assistência social. Mais uma vez, é importante referir que tivemos avanços importantíssimos, já que o tratamento do social até poucos anos atrás era de responsabilidade quase exclusiva das organizações da sociedade civil. Desde a Constituição Federal e com as regulamentações sociais asseguradas no tratamento dos direitos e das políticas, houve avanço em relação à responsabilidade do Estado com o social, a qualificação técnica do seu fazer, o financiamento e o fortalecimento do controle social. Poucos são os municípios brasileiros que não têm conselhos. Esse é um indicador que apresenta o avanço no tratamento da política social. Por outro lado, ainda estão postos os limites nas experiências destes conselhos e mesmo de muitas conferências, cuja população e organizações ficam a mercê da direção política dada pelo gestor governamental. As perguntas sempre presentes são : “Que realidade temos? Como as políticas sociais têm ‘mexido’ nesta realidade? Qual a avaliação da população usuária sobre isso? Como os governos e a sociedade estão respondendo e devem responder aos desafios que ficam? Como acontece a participação efetiva de todas as instâncias implicadas na vida política, no sentido da decisão, sobre quê e como fazer a política pública?” Não “ouço” este debate que é fundamental para que possamos mexer nos indicadores da realidade e na efetivação das políticas sociais como mediações para esta mudança. Entendo que a população usuária e os trabalhadores da área podem contribuir para a qualificação dos processos de participação e controle social. Existem experiências inspiradoras, que merecem ser analisadas e tornadas públicas. Preocupa-me, ao mesmo tempo, que os espaços de participação e deliberação passam a ser institucionalizados e burocratizados. Temos pesquisas importantes feitas que apresentam avaliações sobre os conselhos e as conferências das políticas sociais. Há ainda uma forte dualidade entre investigação e ação. A academia e as instituições da intervenção no campo social necessitam articular-se. Entendo que é hora de uma avaliação profunda destes mecanismos em vista de sua qualificação.
IHU On-Line – Como a analisa a atuação do SUAS no combate à pobreza no país?
Marilene Maia – “A centralidade do SUAS na erradicação da extrema pobreza no Brasil” é o quarto subtema das conferências de assistência social. É indiscutível a atenção e investimento do governo federal em relação a esta questão, que há muito tem sido preocupação de organizações internacionais, por exemplo, a ONU com os ODMs . A minha preocupação é de que possamos identificar isso na vida real. Ou seja, quando falamos em extrema pobreza, estamos falando de cada município? Quem vive esta realidade? Por que se vive esta realidade? Como sente, avalia e projeta a superação desta realidade? O que já foi feito para este enfrentamento? O que é necessário para avançar? Este balanço é fundamental e não pode ser feito somente pelos gestores que atuam na assistência social ou nas políticas sociais. Ele deve ser assumido pelos gestores de todas as políticas de governo, pela sociedade civil e pelos agentes econômicos. Sabe-se que o social é revelador de um conjunto de definições políticas e econômicas. Percebe-se ainda a dissociabilidade no tratamento destas três áreas. Enquanto isto estiver presente, pouco se avançará no enfrentamento das raízes da pobreza.
IHU On-Line – Como avalia a concretização e a execução do programa Bolsa Família?
Marilene Maia – Na verdade, o Bolsa Família introduz, desde a sua primeira experiência aqui no RS, uma série de concepções e práticas que apontam para o rompimento com a lógica clientelista e assistencialista do social. É um programa que revela a necessidade e importância de um trabalho social com perspectiva de totalidade. As pessoas precisam ser protegidas em suas famílias e ter garantidos os seus direitos sociais no seu conjunto. Essa realidade exige a intersetorialidade entre as políticas sociais, que é fundamental para a sua afirmação e mudanças culturais e políticas, que temos referido desde o início da entrevista. Além disso, o programa foi e vem sendo construído com uma perspectiva de autonomia em relação ao benefício, que não é um bem, mas renda. Isso para uma sociedade capitalista apresenta outra condição para a população usuária do programa social. Apesar de tudo isso, muitos ainda são os desafios, que passam pelo enfrentamento às burocratizações, às condicionalidades impostas (já que educação, saúde, alimentação são direitos e precisam ser assegurados com qualidade à população), à construção de espaços democráticos de planejamento, monitoramento e avaliação deste programa, com a participação de todos os segmentos implicados. E participação com poder decisório. Para tanto, é fundamental a sua descentralização, que ainda está centralizado no governo federal. Além disso, é fundamental desvelar as relações, potências e os limites das transferências de renda, inclusão produtiva e desenvolvimento local. Temos acessado informações importantes em relação à melhoria das condições de vida da população, assim como sua interferência na economia local. Algumas práticas já apontam para resultados da contribuição efetiva da população beneficiária nos processos de controle e qualificação das políticas de educação, saúde e assistência social, que são as principais implicadas ao programa. Entretanto, ainda são resultados pontuais, afirmadores da mesma lógica de desenvolvimento que é geradora da exclusão, desproteção e vulnerabilidade. Muitas pesquisas estão sendo realizadas sobre esse programa. É urgente a reunião destes aportes para sua avaliação e redimensionamento da ação.
IHU On-Line – Que ações palpáveis devem ser realizadas pelo governo para combater a miséria? Os programas do governo são a melhor forma de combater a exclusão? Que outras saídas poderiam ser tomadas nesse sentido?
Marilene Maia – Vivemos em um tempo muito importante. Nunca se falou tanto nas realidades de exclusão, violências, desigualdades. Indicadores não faltam para esta demonstração. Qualificaram-se os mecanismos de planejamento e gestão das políticas sociais. Foram criadas inúmeras instâncias de controle para que toda a sociedade assuma a sua responsabilidade, junto com os governos, para ser efetivo no trato do social. Temos, no entanto, problemas de “raiz” que necessitam ser mexidos. O modelo de Estado, apesar dos avanços constitucionais, está montado em uma perspectiva antiga de política, não garantindo a materialização da democratização proposta. As estruturas estatais, por sua vez, também não dão conta dos processos vislumbrados pelas políticas. Os trabalhadores, apesar de empenho crescente em sua articulação e formação, têm inúmeros limites para o seu trabalho. As instâncias de controle social, por muitos já reconhecidos como superados, apontam possibilidades, mas exigem mudanças radicais de padrões para cumprirem de fato o seu papel. Esta presença é fundamental para que as políticas sociais não fiquem sendo objeto de ações de governos, mudando a cada processo eleitoral. Existem dimensões do social que ainda não estão suficientemente contemplados para garantir sua afirmação em uma lógica de desenvolvimento diferente. Ou seja, como dar conta das diversidades em meio aos desafios da igualdade? Como garantir a justiça social e o desenvolvimento sustentável na distribuição das riquezas em um município, estado e país? Esta questão não está na agenda das políticas sociais. Lamento profundamente, especialmente em um ano em que estão sendo realizadas 13 conferências para a avaliação e deliberação de políticas no Brasil. Se não foi posto este debate, entendo que ainda é possível fazê-lo.