Edição 373 | 12 Setembro 2011

Assistência social: a política que oportuniza o acesso a todos os direitos

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Graziela Wolfart

Corremos o risco de chegar em 2014 estatisticamente sem a miséria, mas na realidade concreta e na dinâmica social convivendo com boa parcela do nosso povo vivendo na miséria, avalia José Moroni

“As desigualdades no Brasil se estruturam em quatro pilares básicos: questão de gênero, étnico/racial, de território e de classe”. A divisão é feita pelo filósofo José Moroni, na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line. E ele questiona: “o Bolsa Família oportuniza a auto-organização da sociedade e a participação política? Acho que não. Neste sentido, ele é apenas um programa de transferência de renda e não de riquezas”. E Moroni conclui afirmando que “os usuários da assistência são todos e todas que tem seus direitos violados”.

José Antonio Moroni é membro do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos- INESC, uma ONG voltada para a ampliação e construção de novos espaços democráticos e para o monitoramento de políticas públicas. Atua há mais de 30 anos em organizações não-governamentais e movimentos populares, especialmente na área dos direitos humanos, participação popular e poder, criança e adolescente, assistência social e organização comunitária. Atualmente é da coordenação do Fórum Nacional de Participação Popular, do Fórum Brasil do Orçamento. Formado em Filosofia, tem pós-graduação em História do Brasil, Fundamentos em Educação Especial e Métodos e Técnicas de Elaboração de Projetos Sociais.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Por que o senhor considera que o governo Dilma indica um retrocesso significativo na área de combate à desigualdade?

José Moroni - Inicialmente precisamos definir o que entendemos por desigualdade. Para mim, existem desigualdades no plural em consequência de diferentes processos históricos, políticos, sociais, culturais e econômicos. Por exemplo, as desigualdades no Brasil se estruturam em quatro pilares básicos: questão de gênero, étnico/racial, de território e de classe. Tanto o governo Lula como o governo Dilma tem uma concepção unicamente econômica da desigualdade e, portanto, apresenta apenas uma estratégia política, que é a transferência de renda, via bolsas e o crescimento econômico. O governo FHC tinha uma concepção liberal, de que era necessário fortalecer o mercado e que este resolveria todas as questões, entre elas a desigualdade. Vale ressaltar o uso singular da palavra desigualdade, por que na base destas concepções está somente a dimensão econômica. Estas concepções não enfrentam nenhum dos quatro pilares das desigualdades no Brasil e, por isso, que continuamos a ser um dos países mais desiguais do mundo. Outra fonte de desigualdades é o nosso próprio sistema político, que concentra poder numa determinada classe social, perpetuando as estruturas de dominação.

IHU On-Line - Como avalia, de modo geral, a política social do governo atual no Brasil?

José Moroni - A sociedade brasileira construiu um pacto no processo constituinte de 1988, que foi o de construir um sistema que universaliza direitos. Portanto, as chamadas políticas sociais, junto com as políticas econômicas, deveriam ter a concepção da universalização dos direitos. Acontece que, ao mesmo tempo que em termos jurídicos construímos este pacto, nos anos posteriores a mesma sociedade brasileira elegeu governantes alinhados com as  chamadas políticas neoliberais, que ocasionam a focalização das políticas e a negação da  universalização dos direitos. Isso quer dizer, em termos jurídicos, que a sociedade apontou um caminho e, em termos políticos, optou pelo caminho oposto. Esta contradição convive até hoje no desenho das nossas políticas. Isso faz com que não consigamos implementar totalmente o pacto de 1988, dando argumento para os que defendem a “solução de todos os males” através do mercado e de um Estado apenas regulador e não o responsável pela garantia dos direitos. Apesar disso, tivemos avanços significativos no campo da saúde (antes de 1988 só tinha direito à saúde o trabalhador com carteira assinada), na educação (universalização do ensino fundamental, apesar da questionável qualidade), na assistência social, no esporte, na cultura, no desenvolvimento regional, etc. Avançamos em relação ao que tínhamos pré-1988, mas bem menos do que precisamos para construir uma nação de iguais.

IHU On-Line - Qual sua percepção do Programa Brasil sem Miséria?

José Moroni - Por ser um programa novo e que ainda está sendo implementado, toda observação é preliminar e pode ser desmontada, pois uma coisa é a definição do programa no papel, outra é a sua implementação. Mas tem algumas questões importantes: primeiro, estamos tratando da miséria e não das desigualdades. Segundo, o corte feito de per capita de R$ 70,00 pode valer para determinadas regiões, mas não para todo o Brasil. Por exemplo, uma família de um grande centro urbano formada por sete pessoas e que tenha uma renda de um salário mínimo está fora do programa. Esta família não vive em condições de miséria? Outra questão: pelos dados apresentados, a grande maioria da população que vive com este valor per capita está no meio rural; o programa não fala em distribuição de terra/reforma agrária. Como é possível enfrentar a questão da miséria no campo sem enfrentar a questão da terra e do latifúndio? Mais uma questão: o programa não tem uma estratégia de melhoria dos serviços públicos, peça fundamental para esta população poder acessar as políticas públicas e, portanto, romper com círculo da pobreza. Corremos o risco de chegar em 2014 estatisticamente sem a miséria, mas na realidade concreta e na dinâmica social convivendo com boa parcela do nosso povo vivendo na miséria.


IHU On-Line - Em que medida o programa Bolsa Família tem modificado a realidade social no Brasil?

José Moroni - Os estudos apontam que o Bolsa Família, até o momento, é uma peça fundamental nas mudanças das comunidades, tanto do ponto de vista econômico, social e de “desenvolvimento”. Mas como o Bolsa Família não vem acompanhado de um programa de formação política para a cidadania, fica a pergunta: quando os “destinatários” do Bolsa Família começarão a exigir seus direitos e, portanto, começarão a pressionar para que todas as políticas públicas respeitem o pacto de 1988 de universalização dos direitos? Outro limite do programa é que ele só foi pensado no seu aspecto social e a própria pergunta reflete isso. E os demais aspectos como ficam? E os aspectos políticos? O Bolsa Família oportuniza a auto-organização da sociedade e a participação política? Acho que não. Neste sentido, ele é apenas um programa de transferência de renda e não de riquezas.

IHU On-Line - Como o senhor percebe o Sistema Único de Assistência Social - SUAS?

José Moroni - O SUAS é uma decorrência da Constituição de 1988 que dá status de Política Pública à Assistência Social. È também uma deliberação de todas as oito conferências nacionais de assistência social, portanto é uma conquista da sociedade. Penso que temos alguns desafios na implementação do SUAS: a Lei Orgânica de Assistência Social define a primazia do Estado na assistência social. Isso ainda não percebemos. O Estado até agora tem mais regulado a assistência social, mas quase não tem implantado serviços públicos. A maioria dos serviços ainda são praticados pela sociedade e ainda na concepção da caridade, da benesse e da filantropia. Temos ainda o desafio do financiamento. Não temos uma definição clara das fontes de financiamento. Não temos ainda uma definição do lugar das organizações de defesa de direitos e dos movimentos sociais no SUAS. Mas estamos num processo, às vezes, mais lento do que queremos, mas acho que foi feito muita coisa nos últimos anos.

IHU On-Line - Qual a importância, na prática, de dar o status de política pública à assistência social?

José Moroni - Até 1988 existia a ação social, como algo pontual, isolado, fruto da caridade das pessoas e quando existia no Estado estava aos cuidados da primeira dama. Com a constituição de 1988 a assistência passa a ser uma política pública que integra, em pé de igualdade, as demais políticas, especialmente de saúde e de previdência. Este é o conceito de seguridade social. Com isso, a assistência passa a ser um direito do cidadão e um dever do Estado.

IHU On-Line - Qual o impacto de uma nova definição da linha da miséria e da pobreza no Brasil, tendo como único critério a renda per capita da família?

José Moroni - Boa parte desta pergunta já foi respondida acima, só faltou uma questão importante. Penso que devemos construir outros critérios na definição da linha da pobreza, fazer uma cesta de critérios. Por exemplo, incluir a questão da moradia, do saneamento básico, da qualidade da educação, do acesso à saúde, enfim, do nível de acesso aos serviços públicos e serviços de qualidade.

IHU On-Line - O que ocorre quando a lógica social é subordinada à lógica econômica?

José Moroni - Acontece o que estamos vendo agora, que qualquer respiro do chamado mercado (este ente invisível que ninguém nunca viu, mas que comanda a mente de quem tem poder de decisão) vêm, às vezes conservadoras e mal intencionadas, dizendo que o governo tem que cortar gastos. Eles não dizem onde, mas é claro que para esta elite são nos programas sociais. Este é o exemplo mais visível da subordinação da lógica política à lógica econômica.

IHU On-Line - Como seria uma organização política dos “usuários” das políticas públicas?

José Moroni - Primeiro acho que devemos avançar na compreensão de quem são os “usuários” da assistência. Não podemos ficar reduzidos ao artigo 2 da LOAS. Isso remete ao papel da assistência. Para mim, deve ser a política que oportuniza o acesso a todos os direitos; é esta a especificidade da assistência. Portanto, os usuários da assistência são todos e todas que tem seus direitos violados. As organizações de defesa de direitos têm um papel importante, mas que não podem substituir o dos usuários. E as organizações dos usuários não têm uma organicidade como tem as de defesa de direitos. A sua forma de organização precisa ser mais livre, menos burocrática, mais horizontal. Mas precisamos avançar, e muito, esta compreensão na assistência social.

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