Edição 371 | 29 Agosto 2011

Drummond e a “re-significação” de Deus na poesia

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Patricia Fachin e Marcia Junges



IHU On-Line – Como Deus se manifesta na obra de Drummond?

Alex Villas Boas – O problema de Drummond é com a teodiceia, com a ideia de que a vontade de Deus rege um mundo perfeito que não se verifica, sobretudo em um período político delicado como o que se seguiu após as duas guerras mundiais e a Guerra Fria. Se “Deus” pode se manifestar, será afirmando o absurdo da vida, e que, apesar desta condição, há um mistério que permite a vida ainda encontrar sentido. Drummond não nomeia Deus, também não mata; apenas acolhe essa misteriosa capacidade de encontrar um sentido na vida e, de modo especial, na experiência de amar. A maior experiência de amor do poeta foi com sua filha.

IHU On-Line – Que relações com o sagrado podem ser observadas nas obras do “poeta
das sete faces”?

Alex Villas Boas – Sete Faces diz respeito à antropologia drummondiana, o ser gauche.     O poema de Sete Faces, por exemplo, contém 7 estrofes e revela a identidade múltipla de um ser fragmentado, em que cada estrofe revela um aspecto do gauche: o ser de desejo, o que se envolve com a massa, o homem sério e de respeito, o da revolta com Deus, aquele que se acha superior ao mundo dos comuns num momento, mas que logo volta a pisar no mesmo solo. Sete pode ser a ironia da criação, pois tem a ideia de perfeição tirada das obras do Criador, mas perfeição que não se verifica. Suas faces são os fragmentos que se chocam com alguma pedra de impossibilidade. A ironia é portadora da contradição que afeta o poeta, e ele pode usar de ironia porque não mais acredita na veracidade de como as coisas lhe foram passadas: não acredita mais em sonhos, na sociedade, na sua pátria ou no amor. A ironia traz à luz o que a hipocrisia dessa “vida besta” tenta camuflar, enganando uns aos outros.
A “pedra” drummondiana é sentimento de impossibilidade e fragilidade que fragmenta o ser em “cacos” de ser ao se chocar com ela, vive fragmentado, ama fragmentado, sofre cada fragmento de seu ser. Essa “pedra” é inerente à vida, sim, mas também está presente em estruturas rígidas da sociedade, camufladas de tal modo que o acento da culpa não é dado pelo fato de a pedra estar no caminho, mas recai exclusivamente sobre o indivíduo a responsabilidade de ter topado com ela. A contradição do discurso sobre Deus revela, na verdade: 1) Deus surdo ao seu clamor: “Meu Deus, porque me abandonaste” e; 2) insensível à fraqueza humana [“se sabias que eu não era Deus/se sabias que eu era fraco”]. 3) Deus é distante, fica no alto, no “alto do morro” onde se dirige a procissão de romeiros que sobem a ladeira. Na visão gauche, há uma estranha relação entre o indivíduo e Deus: este tem a predominância da vontade sobre todas as coisas, mas ao mesmo tempo parece não conseguir que ela se realize resultando numa “tristeza de Deus”, quando Ele se pergunta: Por que fiz o mundo?, e responde a si: “Não sei”. Na antropologia drummondiana, o gauche, aquela característica do sujeito moderno de ser “torto”, desajustado aos princípios de seu tempo, que anda na contramão da história, na sua esquerda, tem sede de Deus e O procura, mas não entende por que Deus não se deixa alcançar ou não o auxilia em seu desejo de ir para o céu e O abandona na contradição humana de seu drama e sua fraqueza, e sua poesia parece querer mostrar que há qualquer coisa muito torta em tudo isso, o que faz o indivíduo reinventar a própria vida.

IHU On-Line – Como aparece a metafísica na dialética “eu/mundo” da poesia de
Drummond?

Alex Villas Boas – Essa dialética é proposta pelo professor Affonso Romano Sant'anna  (Drummond: Gauche no Tempo, 1972), utilizando uma linguagem heideggeriana, apresenta a poesia de Drummond como “projeto poético-pensante”, em três momentos: 1) Eu maior que o Mundo [poesia irônica]; 2) Eu menor que o Mundo [poesia social] e; 3) Eu igual ao mundo [poesia metafísica], posição básica da obra que apresenta um vasto sistema de oposições (claro/escuro; província/metrópole; essência/aparência; vida/morte...) como modelo fundamental. Então, na primeira fase, o poeta fica no seu canto, estranhando esse mundo maluco. Num segundo momento, na sua poesia social, quando o sofrimento do mundo o desloca de seu canto, ele percebe a grande impossibilidade da mudança apenas pela boa vontade dos ideais e se recolhe ao perceber a insignificância do indivíduo. Na relação “eu igual ao mundo” da poesia metafísica, há uma verdadeira busca de sabedoria do poeta, mais serena talvez, relacionando o universal dentro do indivíduo. Assim, identifica no indivíduo os ideais de seu tempo, ainda que desfigurados entre os fatos rotineiros, perquirindo metafisicamente o presente numa memória da memória, como elemento conformador de sua consciência, ao perguntar pelos outros do passado, mas indagando de si mesmo, num reprocessamento da existência para reincorporar um tempo morto num tempo vivo. Num balanço que faz dos anos, não se sente habilitado a “julgar a vida” nem a si mesmo. De toda a caminhada trilhada pelo poeta na vida, a única coisa de que tem certeza que carrega consigo é que: “De tudo quanto foi meu passo caprichoso/na vida, restará, pois o resto se esfuma/uma pedra que havia no meio do caminho”. Um “não” insensível que se manifesta nas coisas, dando a impressão de um “sem sentido”.

Viagem pelo tempo

Por isso mesmo há de se revisitar o passado para entender melhor seu futuro e, na sua condição de um desafio que resiste, não é com claridade que se obtém a resposta enigmática da vida. Tampouco há de se render às mais espessas trevas, mas é um olhar “opaco” que o poeta lança para as coisas, um olhar de “desencantamento” do mundo, que detém na dificuldade, no escurecimento e no obstáculo, entrelaçando a melancolia, o fechamento e a recusa simples, como forma de refutação frente aos entraves do mundo. Há um recolhimento da utopia para um volta à memória, uma procura do presente no passado, a fim de saber o que poderá se projetar também no futuro, não se iludindo com o que não será, e, assim, longe de um ilusório “vão desenho” de si mesmo, pode-se amar o futuro. Para o poeta, a viagem pelo tempo empreende uma pergunta pelo que permanece no tempo. O poeta se põe em trânsito, mas não quer se apressar para não chegar despreparado, e se põe a ruminar o tempo. Ao resistir o tempo da vida que se esvai, obriga-se a conviver com o elemento mortal, implícito na própria vida. Não é ignorar a morte que permite à vida ser melhor vivida, mas também a admissão da morte é parte da vida. É importante “saber ser” e “não ser”, pois há momentos em que o “mundo não tem sentido” e momentos em que “tudo tem sentido”. A falta de sentido é devido à falta do amor que torna pesada a mais ínfima pena. É aí, portanto, que se deve empenhar a luta da paixão pela vida contra a apatia de não amar, a luta de Eros contra Tanathos.

IHU On-Line – Que relação pode ser estabelecida entre transcendência e imanência na
obra desse poeta?

Alex Villas Boas – Para o poeta, só há transcendência na imanência como salto qualitativo do existir diante da “pedra” da impossibilidade. Aqui talvez seja o ponto mais próximo da poesia com a mística, de encontrar um Mistério em todas as coisas e que oferece sentido a todas elas. A teologia patrística entendia que a encarnação do Verbo era uma comunicatio idiomarum, uma comunicação do modo de ser de Deus na pessoa de Jesus, de modo que Nele se podia enxergar Deus. A mística da poesia capta o “idioma de Deus” como inspirador de uma experiência de sentido. A mística re-vela Deus e o poeta esconde Deus para ser encontrado. A pesquisa em teologia e em literatura permite recuperar duas grandes questões fundantes do cristianismo: a mistagogia como modo de conhecer a Deus pessoalmente e a consciência coletiva, de uma responsabilidade pelo mundo como “irmão de todos”.

Poesia é uma expressão externa do processo interno da reinvenção de si mesmo. Re-significar Deus é próprio da poesia humana. Re-significar a vida é próprio da poesia de Deus. Re-significar o mundo é próprio do encontro dessas duas poéticas. Poesia é capacidade de escuta dos apelos do coração e da realidade. Teologia é escuta da poesia de Deus que sabe escutar o coração humano. E a Teologia pode reconciliar-se com a Poesia, quando o sonho de ambas é o de uma nova humanidade. A poética ajuda a mística permanecer encarnada no tempo presente e a reinventá-lo. A mística ajuda a poesia permanecer escutando o Mistério, quando o sentido se esvai. É necessário saber voar, mas todo voo que não aterrisa não nos parece ser uma boa viagem.

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