Edição 371 | 29 Agosto 2011

Por uma ética do cuidado e da responsabilidade

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Márcia Junges



IHU On-Line – Em que medida o princípio de responsabilidade é, também, uma proposição que dialoga com a autonomia do ser humano?

Lourenço Zancanaro – O imperativo da responsabilidade – “Age de tal maneira que o efeito das tuas ações não coloquem em risco a possibilidade de vida no futuro” – representa o que há de mais fundamental na reflexão bioética. Somos autônomos para buscar o melhor e este deve ser sempre mais desejável que o pior. A autonomia é tomar posse da realidade como algo que precisa ser cuidado diante do excesso de poderes que a ciência nos dá. Somos chamados a deliberar sobre os novos podes que a tecnologia nos fornece. Portanto, a autonomia tem o sentido de deliberação sobre o uso das tecnologias, no sentido de análise das consequências futuras do seu uso. Jonas não é contra a tecnologia, nem muito menos a ética: uma boa ética pode fazer uma boa ciência e isto está no âmbito da deliberação em relação ao nosso poder.

IHU On-Line – Poderia comentar a proximidade entre o pensamento desse filósofo com o sistema kantiano, na medida em que Jonas postula um “imperativo ambiental”?

Lourenço Zancanaro – Referindo-se aos antigos imperativos, Hans Jonas destaca o kantiano – “Age de tal maneira que possas também querer que a máxima do teu agir se converta em lei universal da natureza” –; faz isso tecendo algumas observações.
A afirmação kantiana “que possas” expressa a razão, de acordo consigo mesma. Numa comunidade de seres racionais, a ação deve ser tal que, sem se contradizer, deixe-se apresentar como prática universal dessa comunidade. Para Jonas, a proposição “não é moral, mas lógica”. O “poder-querer” ou o “não poder-querer” exprime mais “compatibilidade (ou incompatibilidade) lógica, e não aprovação (ou desaprovação) moral”. Tal formulação é incompatível com o propósito da nova ética onde a esfera da ação não é mais o agir individual, mas coletivo. Considera que sua proposição não contém nenhuma autocontradição, pois está orientada para o domínio da esfera pública, onde os efeitos últimos das ações podem colocar em risco a possibilidade de vida futura.
O imperativo de Jonas não contém contradição de ordem racional porque está adaptado ao agir coletivo. A moralidade do querer consiste efetivamente em exercer um poder sobre aquilo que está em nossas mãos. Em Jonas está o caráter público e objetivo da responsabilidade direcionada à existência concreta contra a escolha privada e subjetiva em Kant. Em Kant, a universalização é hipotética; em Jonas, a responsabilidade é com as “políticas públicas” e o bem comum. Sève lembra que, em Jonas: “A política é o coração da ética de responsabilidade porque está endereçada muito mais à política pública que a conduta privada”. Todavia essa discussão mereceria um debate maior.

IHU On-Line – Quais podem ser as relações a serem estabelecidas entre ética ambiental e responsabilidade antropocósmica?

Lourenço Zancanaro – A ética tradicional está fundada em injunções que colocam em evidência os fundamentos e obrigações que justifiquem a obediência em princípios, tais como: “Ama teu próximo como a ti mesmo; não consideres jamais o próximo como um meio, mas como um fim em si”, Jonas mostra, ao apresentar a ideia de uma “natureza estável”, onde tudo o que era bom para o homem devia ser aceito sem dificuldade. A responsabilidade humana estava igualmente definida, a partir da condição dada pela natureza. A essência constante estabelecida pela natureza colocava o homem numa condição de dependência, a obrigação estava direcionada ao aperfeiçoamento da potencialidade natural, e os projetos, definidos de acordo com a norma eterna. A essência constante é um traço característico para a ação do homem metafísico que não pode ser considerado objeto de transformação pela técnica e, muito menos, objeto de responsabilidade futura. Resumimos a questão em três aspectos fundamentais.
Jonas mostra que as proposições do agir próximo são insuficientes e pergunta pelo seu significado moral ante as enormes transformações tecnológicas. Pela sequência de certos desenvolvimentos provocados pelo poder, a natureza do agir humano se transformou. Diante disso, faz-se necessário buscar novas vias interpretativas sobre as consequências desses poderes não mais restritos ao espaço da pólis, e limitados ao tempo futuro enquanto eternidade, mas como possibilidades a longo prazo. Esse entendimento requer adaptação aos novos tempos, uma vez que a ampliação do poder tecnológico modificou a natureza do agir. O argumento que exige transformação da ética está nos novos significados dos objetos culturais para o homem. Se são poderosos e causaram transformações na natureza do agir, logo o argumento é procedente.

Resignação

A visão “antropocêntrica” caracteriza-se pelo significado efetivo da reciprocidade do homem a partir das suas necessidades. Além do mais, ele é possuidor de uma essência constante que não pode ser considerada objeto de transformação. Finalmente, o espaço da ação no agir próximo é determinado pela ideia de perfeição quase imediata. A longo prazo, as consequências eram abandonadas ao “acaso, ao destino, à providência”. A ética se ocupava com “as situações repetitivas típicas da vida pública e privada”. Nesse contexto situa-se o conceito de “homem bom”, que respondia com virtude e sabedoria às situações próximas da vida pública e privada, de um lado, e, de outro, resignava-se ante o desconhecido. Mandamentos e máximas preocupavam-se com o imediato da ação e revelavam o campo de ação da moralidade, enfatizando a práxis cotidiana, o alcance imediato, e excluindo a previsão a longo prazo. “A moralidade ficava restrita ao estreito campo da ação”.

IHU On-Line – A partir da filosofia de Jonas, quais são as principais dificuldades em se propor uma ética dentro da civilização tecnológica em que vivemos?

Lourenço Zancanaro – Uma das principais dificuldades da teoria da responsabilidade está na sua fundamentação a partir da metafísica, especialmente quando recorre a pré-modernos. Fundar uma ética a partir do ser SER ou do ponto de vista metafísico ainda não foi suficientemente aprofundado e é o ponto onde são feitas as maiores críticas a ele. Todavia, Jonas faz isso propositadamente para chamar a atenção dos modernos sobre o quanto a vida foi banalizada e, sobretudo, de quanto deixamos de ser pastores do ser. A vida é tudo o que temos. O excesso de poder e a onipotência que a ciência nos dá poderão colocar em risco nossa existência e também a da natureza. Por isso a responsabilidade é com a vida, com sua continuidade para sempre. Nossa relação com o mundo deve ser de complementaridade.

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