Edição 371 | 29 Agosto 2011

Um futuro hipotecado

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Márcia Junges



IHU On-Line – O que é o dualismo gnóstico ao qual Jonas se refere?

 

Nathalie Frogneux – Em sua tese de doutorado sob a direção de Bultmann e Heidegger, Jonas evidenciou o princípio gnóstico que permitia pela primeira vez reunir conceitualmente estes mitos e movimentos sectários abundantes, cuja unidade não havia jamais sido estabelecida por nenhum pesquisador. Todavia, o que dá razão aos heresiólogos que falaram em todos os casos de pensamento gnóstico, seja ele iraniano ou sírio-egípcio, é um dualismo radical que corta o homem do mundo e que opera um corte no próprio homem. Dois princípios opostos se afrontam: que o mal seja de toda eternidade o antagonismo do bem ou que ele seja derivado por emanações sucessivas. Enquanto que o homem se crê da mesma natureza que o mundo, ele aprende que ele não é nada dele. Gnosis significa conhecimento, e o conhecimento prevalece sobre a fé (pistis). Somente a conscientização deste erro lhe permite ser salvo. Trata-se então de um dualismo que faz do homem um estranho no mundo corporal e material, pois o primeiro é espiritual e bom enquanto que o segundo é essencialmente mau e corrompido. Entretanto, Jonas traz o diagnóstico deste dualismo como uma tentação constante de nosso espírito que retorna regularmente na história para fazer do homem um exilado que se ignora como tal. A Antiguidade tardia (séculos II e III) foi um momento forte deste dualismo, mas a ruptura moderna inaugurada por Bacon  e Descartes  resulta desta mesma tendência, assim como o coração do século XX com suas filosofias da existência ou o niilismo fundamental que desabrocha nas tecnociências. Como sua amiga Hannah Arendt, Jonas combate a ideologia do “tudo é possível”.

IHU On-Line – Por que Jonas procura resolver o dualismo, pensando na dignidade do homem no mundo em que se encontra?

Nathalie Frogneux – Para resolver o dualismo radical do tipo gnóstico, ou seja, a ruptura no homem, mas também entre o homem e o mundo. Trata-se de resolver a ruptura entre o corpo e o espírito ao mesmo tempo em que reencontrar a comunhão entre a natureza e o humano. A ação é sensata se nós somos comensuráveis com o mundo, o que recusavam os gnósticos que condenavam todo comércio com o mundo optando por uma moral seja libertina ou ascética. Jonas entende assim replicar o dualismo radical mostrando que o homem está e é do mundo, que é um ser natural e vivo, mesmo se ele ocupa uma posição de exceção. A dignidade humana passa pelo fato de que a liberdade continua em uma comum medida com seu corpo e seu mundo no seio do qual se depreende sua atividade.

IHU On-Line – Para Jonas, a pior consequência do dualismo homem/mundo é o niilismo. Nesse sentido, como podemos compreender a crítica empreendida pelo filósofo ao niilismo e ao ceticismo moral?

Nathalie Frogneux – Jonas salienta que todas as filosofias que concebem o homem como um forasteiro, um estrangeiro que ignora sua origem autêntica para corromper-se em um mundo que não é o seu e o conduz para a inautenticidade, pensam os valores e as normas como criações puramente subjetivas (e definitivamente arbitrárias). Entretanto, é a articulação entre os fins presentes na natureza e os valores carregados humanamente que nos garantem contra a escolha niilista do suicídio coletivo.

IHU On-Line – É correto afirmar que Jonas propõe uma crítica radical à metafísica moderna? Por quê?

Nathalie Frogneux – Sim, está correto e é ao menos sobre dois pontos principais. Jonas é crítico da modernidade quando afirma que a ética está ligada ao ser, ou seja, na sua recusa de separar o ser e o dever-ser. Ele recusa, assim sendo, a separação inaugurada por Hume e ratificada por Kant da separação entre o ser e o valor. Para ele, os valores encontram suas justificativas no ser através dos fins. Os valores reconhecidos subjetivamente se baseiam efetivamente sobre os fins objetivamente presentes no ser, uma vez que o vivo se caracteriza pela perseverança no ser, ou seja, a atividade permanente de se manter no ser recusando o não ser que sem cessar o ameaça de morte.
Além disso, Jonas recusa-se a conceber, à moda dos modernos, o medo como somente paralisante e mau conselheiro. Com sua heurística do medo, tão atacada e seguidamente mal compreendida, ele retoma com uma ambivalência deste sentimento descrito por Aristóteles na Poética: pois pelo medo se apresenta como Janus Bifronte. Ele é tanto phobos, um medo paralisante, como éléos, um medo mobilizador que impulsiona à preservação contextual e à ação avisada. É evidentemente esta segunda que deve ser mobilizada diante da ameaça.

IHU On-Line – Hans Jonas é apontado como o filósofo da liberdade. Qual é o embasamento dessa classificação e qual é a importância da liberdade dentro de sua filosofia?

Nathalie Frogneux – A liberdade constitui para ele uma ligação entre ser e dever-ser na natureza através do vivo. A obra na qual ele estabelece esta ligação é intitulada em alemão Organismus und Freiheit, Organismo e Liberdade, e recebeu uma nova edição sob o título escolhido pelos editores Das Prinzip Leben, O Princípio vida. Foi mais judicioso, a meu ver, de intitulá-lo Das Prinzip Freiheit, O princípio liberdade. A liberdade é o que desperta no seio da matéria inorgânica ou morte e parece procurar-se pouco a pouco do unicelular até as formas mais complexas da vida como afirmação do vivo por ele próprio. Mas com o homem, a liberdade ultrapassa um teto qualitativo, pois ela cessa de ser um princípio de afirmação de si (orexis como diria Aristóteles, conatus em Spinoza) para se tornar uma força ambivalente. Ela pode então não somente afirmar, mas também negar a vida, perseverar em seus fins ou negá-los, uma vez que pode doravante se arrasar. Esta questão permeia toda biologia filosófica de Jonas, The Phenomenon of Life, mas é também o rebaixamento de sua ética da responsabilidade, uma vez que o princípio responsabilidade põe o imperativo categórico que impõe que as forças negadoras sejam secundárias em relação à obrigação que tem o homem de afirmar-se no ser.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Nathalie Frogneux – Parece-me que, sejam quais forem as dimensões ultrapassadas ou aproximativas das análises da tecnologia e da crise ecológica de Jonas no final dos anos 1970, sua ética da responsabilidade, sua análise do gnosticismo, sua biologia filosófica e as análises de nosso tempo escondem instituições e uma força de análise que estamos longe de ter esgotado. É, sem dúvida, mais ao desdobramento destas intuições do que à crítica de suas análises que devem trabalhar hoje seus comentadores. Ele próprio reconhecia, aliás, no final de sua vida, os limites de seu trabalho e afirmava que lhe era necessário passar a missão. Uma coisa me parece em todo caso evidente: é que Jonas ia às questões essenciais com a preocupação de propor uma filosofia nutrida pela história e tradição, no objetivo de pensar seu tempo.
Além disso, parece-me urgente repensar a perseverança no ser que ele descreveu tão bem na sua biologia como desejo (orexis ou conatus), afim de que sua ética da responsabilidade não seja unicamente recebida sob a única perspectiva da austeridade.

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