Edição 370 | 22 Agosto 2011

“Economia para a vida”: contribuições da teologia para a crítica à idolatria

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Moises Sbardelotto

IHU On-Line – Em sua opinião, qual é o espaço e a importância de uma “teologia pública”?

Jung Mo Sung –
Eu penso que há dois tipos de compreensão quando se fala da “teologia pública”. O primeiro é no sentido de que a teologia e a Igreja têm ou devem ter um papel ou uma contribuição a dar na “esfera pública”. Uma visão mais ampla e mais “neutra” da teologia política ou TdL, na medida em que inclui na esfera pública a sociedade civil, além da esfera da política no sentido estrito. Eu usei o termo “neutro” para dizer que o fato de se assumir como teologia pública não conota necessariamente nenhum posicionamento ideológico ou político definido. Há autores da teologia política que são mais conservadores ou mais “liberais” (no sentido norte-americano) ou progressistas.

O segundo é a compreensão da teologia pública como uma presença pública da teologia nas universidades, dialogando com as ciências em geral. É uma forma de a teologia sair do “gueto” dos seminários ou faculdades de teologia e participar de forma amadurecida no âmbito da academia. Seria uma forma de superar a preconceito contra a teologia que surgiu após o Iluminismo.
Eu penso que esses dois tipos de compreensão da teologia pública são úteis e podem contribuir no diálogo e na inserção das igrejas cristãs na sociedade hoje. Mas “teologia pública” por si só não define suficientemente os pressupostos epistemológicos e opções éticas de cada corrente interna. Por isso, penso que é preciso adjetivar a expressão, como, por exemplo, “teologia pública neo-ortodoxa” ou “teologia pública profética”.


IHU On-Line – As novas tecnologias digitais mudaram os espaços, os tempos, os conceitos de comunidade, pertença etc. Como essa realidade se reflete (ou não) no campo teológico e pastoral?

Jung Mo Sung –
A vida e os relacionamentos das pessoas e das comunidades estão marcados profundamente pela noção de tempo e espaço. Na medida em que novas tecnologias estão criando novo tipo de espaço, o espaço virtual, que permite, por exemplo, redes de relacionamentos que ultrapassam limites do espaço geográfico, elas modificam também a noção de tempo e assim a própria noção de pertença e do que é importante na vida.

Com certeza, essas modificações estão afetando a pastoral, mas ainda há poucas pesquisas e reflexões teológicas sobre isso. Como disse antes, a TdL deve se ocupar com temas e problemas que surgem das práticas pastorais sociais e, portanto, este deveria ser um tema urgente.

Deixe-me dar um pequeno exemplo como provocação para reflexões. Através de redes sociais estão surgindo comunidades virtuais de cristãos, com pessoas de diversas partes do mundo, em torno de visões teológicas ou religiosas convergentes. É claro que comunidades virtuais não possibilitam a experiência de “face a face”, que é fundamental na experiência comunitária. Todavia, elas permitem que pessoas que se sentem isoladas, seja porque vivem longe da sua comunidade de pertença original ou porque não aceitam a teologia ou a linha pastoral da sua igreja local, se vejam pertencendo ao que poderíamos chamar de versão tecnológica da “comunhão dos santos”. Há muitas pessoas que usam, por exemplo, Twitter como um “púlpito” para a divulgação de mensagens ou de pensamentos teológicos.


IHU On-Line – Em sua fala na Jornada Teológica, o senhor abordou as referências no âmbito econômico de conceitos religiosos ou teológicos como dogmatismo, fundamentalismo, sacralização do mercado, sacrifícios. O que isso revela a respeito da sociedade contemporânea?

Jung Mo Sung –
Na verdade, eu citei autores fora da teologia, especialmente da área da economia e administração de empresas que usam esses termos religiosos para falar das práticas e teorias no campo econômico e das empresas. Este tipo de pesquisa e reflexão começou já na década de 1970, na TdL, com autores como Franz Hinkelammert e Hugo Assmann  e eu tenho participado disso desde 1988.

A constatação do uso de termos religiosos e teológicos no campo da economia não é um acaso ou um simples uso de metáforas sem importância na economia. Este uso constante de termos e símbolos religiosos para sintetizar lógicas, práticas e cosmovisões econômicas revela que o mundo moderno não é não religioso. Pelo contrário, não se pode compreender o mundo moderno se não levar em consideração o fato de que ele se levanta contra o mundo feudal com a pregação de uma boa nova: a libertação humana pelo avanço tecnológico e econômico. Só que essa salvação, como toda religião, exige sacrifícios. A economia capitalista não nega a soteriologia da cristandade medieval, mas a modifica. Agora os sacrifícios necessários para a salvação são exigidos em nome do mercado. É por isso que os ideólogos e defensores do capitalismo se dão bem que setores conservadores das igrejas que defendem que não há salvação sem sacrifício.

Em resumo, o mundo moderno não é secularizado no sentido antirreligioso, mas é idólatra. Karl Marx  e Max Weber  já apontaram para esse aspecto do capitalismo.


IHU On-Line – Em sua crítica ao neoliberalismo, o senhor usa termos como “ídolo” e “idolatria”. Em que sentido?

Jung Mo Sung –
Um dos conceitos teológicos fundamentais da Bíblia, se é que podemos dizer que é um conceito no sentido mais técnico, é o da idolatria. Todas as sociedades produzem deuses, que são obras de ações e interações humanas (objetos ou instituições) que são sacralizadas, e em seu nome se funda a ordem social existente e se exige sacrifícios de vidas humanas necessários para a reprodução da ordem.

Os profetas perceberam isso e desvelaram e criticaram esse processo de produção de deuses, os ídolos. Em oposição a ídolo, que se caracteriza por exigir sacrifícios de vidas humanas, a Bíblia nos apresenta Deus que não quer sacrifícios, mas misericórdia. Os seguidores de Deus misericordioso podem doar suas vidas por amor, na liberdade, mas não se sentem coagidos entregando suas vidas em sacrifício.

Um aspecto que é importante na crítica à idolatria é que o ídolo é sempre visto como deus por seus adoradores e, por isso, fascina e atrai. Quando digo que o neoliberalismo apresenta uma lógica idolátrica estou também querendo apontar para a dimensão fascinante do capitalismo global atual. Diante da fascinação, não basta criticar; é preciso desvelar o processo sacrificial para desmascarar a fascinação que cega. Nesta tarefa, a teologia tem um papel importante a cumprir na sociedade. Voltando ao tema da teologia pública, podemos dizer que a crítica pela teologia da fascinação da idolatria do mercado é um papel ou uma contribuição importante a dar no espaço público da sociedade e do debate acadêmico.


IHU On-Line – Para o senhor, a vida econômica hoje é percebida como uma religião, e o neoliberalismo, como uma nova religião econômica. É possível uma “outra economia”, justa e eticamente regulada? Sobre que parâmetros estaria assentada?

Jung Mo Sung –
Uma ideia ampla como “economia justa e eticamente regulada” nos ajuda a pensar na superação da economia capitalista que conhecemos hoje. Mas, ao mesmo tempo, não é muito operacional e não oferece muitas pistas concretas para formular os pontos principais de uma “outra economia”. Isso porque entramos em uma discussão sem fim sobre o que é “justo” e “ético”; só para depois entrarmos na discussão de como ética pode regular economia.

Economia é o campo da produção e distribuição de bens materiais e simbólicos necessários para a reprodução da vida humana. Não basta que uma economia seja justa e ética – não importa aqui o que se entende por isso –, se não produz o suficiente para a reprodução da vida de toda a sociedade. Por isso, eu prefiro a proposta por Franz Hinkelammert de discutirmos em torno da “economia para a vida”. Esta expressão remete a Jo 10, 10, “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância”, e se opõe a economia capitalista que é pensada para o crescimento econômico e acumulação do capital.
Economia para a vida implica também na preservação do meio ambiente, que é condição de vida, e na vida de todas as pessoas. Aqui estamos falando de vida corporal, a única que temos e podemos cuidar de fato – pois a vida eterna é graça de Deus.

O grande desafio para quem luta por uma sociedade mais justa e humana, onde todas as pessoas tenham a oportunidade e possibilidade de ter uma vida digna e prazerosa, é responder à pergunta: como será a nova forma de coordenação da divisão social do trabalho?

Uma característica das economias não simples é o fato da fragmentação do processo produtivo. Isto é, ninguém ou nenhum grupo pequeno produz todos os bens necessários para a sua sobrevivência. Com isso, cada um faz uma parte do trabalho necessário e há a necessidade de coordenação desses trabalhos ou processos fragmentados. O comunismo propôs, como alternativa ao capitalismo, o modelo de planejamento centralizado pelo Estado. A experiência histórica nos mostrou que esse caminho é ineficiente porque é impossível conhecer de modo eficaz todos os elementos da economia para esse planejamento. O neoliberalismo propõe que o mercado seja o único ou principal instrumento de coordenação da divisão social do trabalho.

A luta por uma “economia justa” ou uma “economia para a vida” passa necessariamente por este desafio de pensarmos uma forma alternativa dessa coordenação. Propostas econômicas alternativas no âmbito de unidades produtivas (por exemplo, empresas na linha da “economia de comunhão”) ou em âmbitos microrregionais ou marginais ao mercado global (por exemplo, muitas experiências de economia solidária) são importantes e ajudam muito na vida concreta do povo. Mas, em termos de outro sistema econômico, não há como evitar o tema dessa coordenação.

A princípio, podemos dizer que há sim alternativa ao capitalismo, pois ele não é eterno, mas não será solução perfeita ou definitiva.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição