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Márcia Junges
Para o filósofo Eduardo Barra, é compreensível que Hume seja, ainda em nossos dias, “lembrado pelas suas incursões devastadoras no assim chamado ‘problema da indução’”. Ele explica: “As dúvidas que Hume levantou sobre o alcance dos nossos raciocínios indutivos conflitam com as convicções de certos cientistas que extemporaneamente ainda se fiam nos cânones do chamado ‘método científico’, acreditando, por exemplo, que suas teorias preferidas sejam ou possam ser provadas pela experiência”. Barra fala, também, sobre a ideia de religião natural humeana: “O interesse renovado pela religião natural naquela altura do século XVIII respondia, então, a uma motivação surgida do sucesso obtido com a aplicação dos novos métodos de investigação do mundo material e de descoberta de suas leis e princípios. Entre esses métodos, destacava-se a assim chamada ‘filosofia experimental’. Hume fora um dos que se entusiasmaram imoderadamente com as promessas desse método, tanto que colocara como subtítulo da sua obra de juventude, o Tratado sobre a natureza humana (1739), o sugestivo subtítulo: “uma tentativa de introduzir o método experimental nos assuntos morais”. Barra, comenta, ainda, o fato de Dawkins se remeter a Hume como autoridade filosófica para “um certo evolucionismo não apenas não criacionista, mas sobretudo anticriacionista”. Em sua opinião, “qualquer ‘cisma’ entre religião e ciência ou entre fé e crença (isto é, conhecimento) tem, portanto, um caráter estrutural e insuperável. Essa me parece ser uma lição importante a ser apreendida da leitura das filosofia de Hume e de Kant. Repito que ela poderia valer como corretivo para os dois lados do debate criacionismo versus darwinismo”.
Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, é mestre e doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo – USP com a tese De Newton a Kant: a metafísica e o método da ciência da natureza. É pós-doutor pela Recherches Epistémologiques et Historiques sur les Sciences Exactes et sur les Institutions Scientifiques – REHSEIS, na França. Atualmente, leciona na Universidade Federal do Paraná – UFPR.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que aspectos a filosofia de Hume continua sendo relevante para a discussão da ciência em nosso século?
Eduardo Barra – Creio que há muitos aspectos nos quais a filosofia de Hume permanece de grande relevância para ainda hoje compreender a ciência. Sou daqueles que pensam que Willard Quine , filósofo norte-americano que faleceu em 2000 e que talvez tenha sido o mais influente filósofo da sua geração, estava totalmente correto quando disse que “a condição humeana é a condição humana”. Isso quer dizer que há problemas nos quais Hume tocou – e o fez com tamanha propriedade e discernimento – que, se não ocorrer uma improvável alteração estrutural do nosso modo de ser no mundo ou daquilo que alguns preferem chamar de natureza humana, tampouco aqueles problemas se alterarão substantivamente.
Vejamos um exemplo extraordinário disso que estou dizendo. É compreensível que ainda hoje Hume seja lembrado pelas suas incursões devastadoras no assim chamado “problema da indução”. A meu ver, é mesmo muito acertado chamar esse problema de “problema de Hume”, conforme fez Karl Popper , um filósofo austríaco, radicado na Inglaterra, que morreu em 1994 e que talvez tenha sido quem mais se interessou por essa questão desde Hume.
O problema consiste em avaliar em que medida a experiência pode ter um papel na justificação das nossas crenças sobre o mundo, sobretudo daquelas que elaboramos na forma de leis naturais ou de generalizações probabilísticas. As dúvidas que Hume levantou sobre o alcance dos nossos raciocínios indutivos conflitam com as convicções de certos cientistas que extemporaneamente ainda se fiam nos cânones do chamado “método científico”, acreditando, por exemplo, que suas teorias preferidas sejam ou possam ser provadas pela experiência.
IHU On-Line – Em que consistia a crítica de Hume ao conceito de causalidade?
Eduardo Barra – O problema da indução, da maneira como Hume o formulou e discutiu, surge em meio a outro problema talvez ainda mais abrangente, que denominamos justamente de problema da causalidade. Não seria difícil mostrar o nexo entre os dois problemas se começarmos notando que o primeiro inclui uma severa restrição à nossa pretensão de conhecer a essência das coisas. Normalmente, queremos conhecer a essência ou a natureza das coisas com a intenção de assim poder saber de antemão com razoável certeza o modo como as coisas serão ou se comportarão amanhã, depois de amanhã e sempre. Por exemplo, supomos que com o que conhecemos sobre a natureza de certos alimentos podemos antecipar o seu comportamento no nosso organismo, que produzirão, por exemplo, aquela agradável sensação de saciedade. Isso nos faz atribuir ao pão, por exemplo, uma determinada qualidade nutritiva ou algo do gênero.
O que Hume notou nesse modo de pensar é que a qualidade que assim anexamos aos alimentos nada se assemelha ou não pertence à mesma família das demais qualidades que imediatamente constamos nesses mesmos alimentos, quando empregamos os nossos sentidos: cor, textura, consistência, odor etc. Digamos que essa qualidade nutritiva é uma estranha no ninho, isto é, nenhum dos nossos sentidos pode nos fornecer o mesmo vestígio do que quer que seja a respeito delas. A rigor, nada podemos mesmo saber a respeito delas.
Ora, é natural que as pessoas se perguntem se esse tipo de dúvida continua válida ainda hoje, quando tanto progresso se fez no conhecimento da estrutura atômica e subatômica da matéria, sobretudo das diversas possibilidades de traduzir as supostas qualidades nutritivas dos alimentos em termos de proteínas, aminoácidos, sais minerais etc. e das diversas maneiras como as suas estruturas moleculares podem ser fragmentadas e combinadas.
Embora seja compreensível essa desconfiança sobre a atualidade das dúvidas humeanas, ela não resiste a um exame mais atento. Tudo o que podemos dizer é que empurramos o problema para frente, isto é, o remetemos a um domínio de estruturas invisíveis e, portanto, inobserváveis, mas que de modo algum podem responder a exatamente aquilo que se espera do suposto conhecimento das essências das coisas. Tudo o que fizemos foi deslocar a base sólida do nosso conhecimento, que passou dos aspectos macroscópicos (cor, odor, sabor etc.) para os aspectos microscópios (proteínas, aminoácidos, sais minerais etc.) das coisas.
Todavia, por mais sólida que seja essa base – uma solidez que resulta da qualidade da nossa experiência –, nada ela pode nos informar sobre a eficácia que invariavelmente associamos a qualquer conjunto daqueles aspectos macro ou microscópios das coisas. Que um certo complexo de proteínas, aminoácidos, sais minerais etc. possua, além de todas as suas conhecidas propriedades químicas, a propriedade de proporcionar aquilo que normalmente atribuímos a uma boa alimentação: saciedade, saúde e bem-estar, eis algo que jamais poderemos saber com a certeza que comumente pretendemos ter. Nossa certeza vem apenas da experiência, a experiência de verificar que a ingestão de alimentos dotados de determinadas propriedades ditas nutricionais é frequentemente acompanhada de certos comportamentos visíveis nos organismos que os ingere. Fora dessa experiência, nada conhecemos sobre a relação que os alimentos mantêm com os estados dos organismos – uma relação que, como todos sabem, chamamos de relação de causa e efeito.
IHU On-Line – O que essa concepção altera na compreensão da ciência moderna?
Eduardo Barra – Infelizmente, as ideias de Hume não tiveram grande repercussão na sua época. Demorou mais de um século para que surgisse uma nova reflexão sistemática sobre a ciência – a filosofia da ciência, conforme a conhecemos hoje – para que suas ideias fossem novamente recuperadas. No início dos anos 1920, o principal expoente do então nascente positivismo lógico, Rudolf Carnap (1891-1970), reivindicou uma certa concepção da causalidade que fazia referência direta aos resultados de Hume. Recomendava ele que se deveriam abandonar todas as questões “concernentes à ‘essência da causalidade’, que transcende a afirmação de certas regularidades de sucessão”.
É óbvio que muito do que eu mesmo disse antes pode servir para corroborar essa concepção da causalidade como mera “regularidade de sucessão”. Muitos comentadores de Hume têm hoje em dia defendido que isso é tudo o que o filósofo escocês quis dizer sobre a causalidade. Eu não concordo com essa leitura que identifica a causalidade humeana à mera regularidade. Mas não quero polemizar diretamente com ela aqui. Quero aproveitar a pergunta que me foi proposta para defender que Hume deveria ter uma visão um pouco mais rica da causalidade, no mínimo para que as suas análises pudessem ser de alguma relevância para enfrentar os desafios colocados pela ciência do seu tempo.
Hume e os newtonianos
Um dos grandes problemas conceituais enfrentados pela ciência à época de Hume era explicar a natureza da força gravitacional. A teoria da gravitação universal, a invenção genial do físico, matemático e filósofo britânico Isaac Newton (1643-1727), apesar de explicar e resolver um grande número de problemas de extrema complexidade, deixara esta questão em aberto: qual a causa da gravidade que faz os corpos se atraírem a distâncias gigantescas como aquela que separa a Terra do Sol? De nada adiantaram os esforços do próprio Newton e de seus primeiros discípulos para dissuadir os seus críticos da urgência de responder a essa pergunta. Ela foi certamente a principal dificuldade enfrentada pela teoria newtoniana logo após a sua publicação, em 1687.
Não creio que seja uma distorção flagrante encarar a teoria da causalidade desenvolvida por Hume como uma resposta ao problema no qual se enrendaram os newtonianos. A demanda por uma explicação da causa da gravitação vinha principalmente dos filósofos continentais simpáticos ao mecanicismo cartesiano. É um princípio do mecanicismo que toda fonte de eficácia e mudança na natureza deve provir diretamente da natureza da matéria inerte ou de alguma ação externa supranatural, isto é, de Deus. A teoria humeana da causalidade funciona como uma contenção a tais tipos de pretensões, que inevitavelmente envolvem o conhecimento da essência da matéria, além do conhecimento da natureza de um ser dotado de poderes sobrenaturais para agir sobre o mundo.
Por outro lado, entretanto, discordo daqueles que veem na redução da causalidade à mera regularidade a última palavra de Hume sobre o assunto. Concordo que é difícil expressar com o seu próprio vocabulário a sua própria concepção de causalidade que preservasse algum sentido para a atribuição de eficácia ou de qualidades produtivas aos objetos identificados como causas ou, em outras palavras, que mantivesse uma metafísica mínima da causalidade. Portanto, creio ser inevitável recorrer a Kant para encontrar um modo de expressar aquilo que Hume parece jamais recusar: certas coisas, que de modo algum podemos conhecer, podem – e devem – ser ao menos pensadas. Não foi por acaso que a derradeira preocupação de Hume com respeito à causalidade foi justamente esclarecer as condições de sua inteligibilidade para nós – aquilo que ele considerou como sendo a investigação sobre a origem da ideia de conexão necessária.
IHU On-Line – Quais foram as constatações mais importantes desse filósofo no que diz respeito à “religião natural”?
Eduardo Barra – Hume escreveu um dos mais influentes e polêmicos tratados sobre a religião natural: o provocativo Diálogos sobre a Religião Natural. Ele começou a escrevê-lo por volta de 1750, mas jamais o publicou. Os Diálogos foram publicados postumamente em 1776. Mas esse não foi o único tratado que Hume escreveu sobre a religião nem as únicas incursões críticas que fez nos temas da religião (Deus, milagres, providência etc.). Os escritos anteriores aos Diálogos lhe renderam a fama de ateu. Talvez isso tenha pesado na sua decisão de não publicar os Diálogos, mas disso não se tem nenhuma certeza. O fato é que os Diálogos, depois de publicados, não tiveram quase nenhuma influência sobre os juízos daqueles que lhe acusavam de ateísmo.
Isso sugere que a religião natural era mesmo um domínio especulativo que pouco ou nada tinha a ver com a religião revelada ou as instituições eclesiais da Grã-Bretanha do século XVIII. A religião natural parecia ter uma relação muito mais intensa com a recente filosofia natural, essa sim a grande novidade intelectual daquele século.
Na época de Hume, ainda vivia-se na Europa o clima de grande efervescência cultural proporcionado pela assim chamada revolução científica do século XVII, que mobilizara algumas das mentes mais criativas que o Ocidente jamais conheceu, tais como Descartes, Kepler , Galileu , e, finalmente, para glória dos britânicos, Isaac Newton. O gênero de trabalho que esses autores fizeram no campo da astronomia, mecânica, óptica e, por vezes, até mesmo da química, frequentemente recebia o nome de “filosofia natural” e raramente recebia o nome de “ciência”, que hoje lhes damos – o termo “cientistas”, por exemplo, dizem ser uma invenção de William Whewell apenas no século XIX; na época em que viveram, todos esses autores eram indistintamente conhecidos como “filósofos”.
O interesse renovado pela religião natural naquela altura do século XVIII respondia, então, a uma motivação surgida do sucesso obtido com a aplicação dos novos métodos de investigação do mundo material e de descoberta de suas leis e princípios. Entre esses métodos, destacava-se a assim chamada “filosofia experimental”. Hume fora um dos que se entusiasmaram imoderadamente com as promessas desse método, tanto que colocara como subtítulo da sua obra de juventude, o Tratado sobre a natureza humana (1739), o sugestivo subtítulo: “uma tentativa de introduzir o método experimental nos assuntos morais”. Pode-se talvez considerar que a religião natural, conforme Hume a enxergava, era uma tentativa de introduzir o método experimental nos assuntos da religião, numa nítida tentativa de promovê-la como uma extensão da filosofia natural.
Um dos modos de ler os Diálogos é encará-los como uma extensão da crítica anterior de Hume à compreensão do escopo e da legitimidade dos raciocínios que realizamos a partir de informações recolhidas da experiência. Isso significa vê-lo como uma extensão da crítica ao raciocínio indutivo. Dessa perspectiva, a parte mais destacada dos Diálogos seria a sua análise ao argumento do desígnio (design). Por meio desse argumento, eminentes teólogos e filósofos tais como Samuel Clarke (1675-1729), que manteve uma célebre troca de correspondência com o filósofo e matemático alemão Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716), pretendiam estabelecer a um só tempo a necessidade de um criador e de todas as qualidades que comumente lhe são atribuídas – entre elas, sabedoria, onisciência, onipotência, benevolência, eternidade e infinitude. Em uma palavra, os teóricos do desígnio pretendiam por meio do mesmo argumento tanto provar a existência de Deus quanto dar a conhecer a sua natureza.
IHU On-Line – Em que consiste o argumento do desígnio e qual foi o problema que Hume encontrou nele?
Eduardo Barra – O argumento do desígnio está sustentado numa analogia. Um raciocínio analógico pode ser apresentado como uma espécie de “regra de três” que se utiliza em cálculos matemáticos, quando três quantidades são conhecidas e deseja-se encontrar uma quarta, sabendo que a primeira e a segunda estão entre si na mesma razão que a terceira estaria para essa quarta que se deseja descobrir.
No caso do argumento do desígnio, o ponto de partida da analogia é um edifício qualquer pelos homens e a ordem em que ali se encontram combinados certos materiais tais como pedras, tijolos, ferragens, vidros etc. Constata-se, em primeiro lugar, que há ali uma certa ordem e que ela não pode ter surgido ao acaso. Sendo assim, é necessário supor a mente de um arquiteto na qual ela tenha sido antes planejada. Em segundo lugar, constata-se que o universo, tomado como um todo, está disposto numa ordem similar àquela que, em menor escala, se observa nas construções humanas. Se tomarmos, por exemplo, o sistema solar, veremos planetas girando harmonicamente em torno do Sol, todos descrevendo órbitas que se encontram razoavelmente no mesmo plano, todos girando na mesma direção, todos sujeitos à mesma regra de aceleração em direção ao Sol etc. Com essas duas premissas, o raciocínio analógico prossegue, então, com o objetivo de estabelecer, como conclusão, que é também imprescindível, nesse último caso, haver um arquiteto em escala cósmica. Logo, está assim provada a existência de Deus.
Mais uma vez, o problema que Hume detecta nesse tipo de raciocínio não é tanto com o esquema que acabo de lhes apresentar. Grosso modo, Hume nada reprovou nessa forma de raciocinar; segundo ele, uma forma tão legítima quanto seriam todos os demais raciocínios indutivos. O problema surge quando se pretende estender o resultado do raciocínio para além da simples afirmação da existência de Deus. Essa extensão abarca a pretensão de que, assim também, se possa conhecer a natureza de Deus – uma natureza que, nesse caso, seria similar àquela de qualquer arquiteto humano, qual seja, uma mente que age guiada pelo desígnio e pela sabedoria, digamos, guardadas as diferenças de escala entre ambas. Ora, isso é o que não podemos saber com nenhum grau razoável de certeza. A presença da ordem implica a existência do arquiteto, mas nada se pode disso inferir sobre a natureza do arquiteto que a projetou. Em parte, porque a ordem também poderia ter originado de outras fontes além do desígnio ou da sabedoria, por exemplo.
IHU On-Line – Hoje, há um “cisma” entre fé e ciência, tendo Hitchens e Dawkins como alguns de seus maiores expoentes. Em que medida o ceticismo humeano participa da fundamentação desse debate?
Eduardo Barra – Eu penso que, se os argumentos de Hume forem compreendidos como acima eu os expus, eles seriam de muito pouco auxílio para o neoateísmo de Hitchens e Dawkins. No seu livro de maior impacto nessa discussão, Deus: um delírio (2007), Dawkins de fato reivindica a autoridade filosófica de Hume para sustentar os seus argumentos em favor de um certo evolucionismo não apenas não criacionista, mas sobretudo anticriacionista. Ele, meio desajeitadamente, eu diria, se apropriou do roteiro que Daniel Dennett havia proposto em seu A perigosa ideia de Darwin, publicado no Brasil em 1998.
A meu ver, está claro que o Darwin de Dawkins e Dennett está situado muito além do Darwin biólogo que conhecemos na maioria dos ambientes científicos. Para eliminar a possibilidade de que a vida tenha surgido ao acaso – o ponto em que darwinianos e criacionistas estão de acordo –, eles convertem o darwinismo numa genuína hipótese cosmogônica, isto é, numa autêntica explicação da “natureza em sua totalidade”, uma expressão do próprio Hume nos seus Diálogos.
Se forem compreendidas como hipóteses explicativas da “natureza em sua totalidade”, a meu ver criacionismo e darwinismo tornam-se indistintos, isto é, ambos estão igualmente equivocados em suas pretensões. Essa para mim seria uma das maneiras de traduzir a possível posição de Hume frente ao debate atual protagonizado por Dawkins e por seus críticos, que, em sua maior parte, são os partidários do chamado design inteligente.
Kant e os escombros de Hume
As análises de Hume, assim compreendidas, ligam-se a temas que outros filósofos logo em seguida colocaram no centro das suas atenções. Eu destacaria, em particular, os temas que mobilizaram o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804). Uma das questões centrais para Kant era limitar nossas expectativas de conhecer certos aspectos da realidade que se colocam para além da nossa experiência possível. Um desses presumidos objetos era justamente algo muito próximo daquilo que Hume chamou de a “natureza em sua totalidade” e que Kant chamou simplesmente de Mundo, talvez assim com “M” maiúsculo para destacar a sua magnitude.
Obviamente que conhecemos este ou aquele aspecto do mundo, que pode ter dimensões as mais variadas possíveis, desde o muitíssimo pequeno até o muitíssimo grande. Todavia, quando se fala aqui em totalidade, entende-se algo que abarca rigorosamente tudo o que existe, sem que nada lhe escape. A segunda metade da terceira Crítica de Kant, a Crítica da Faculdade do Juízo, é inteiramente dedicada a esse tema. Kant tenta delimitar um espaço que nos permitisse ao menos pensar ou refletir sobre essas totalidades, tendo como ponto de partida as limitações muito similares àquelas que Hume impôs ao pretenso conhecimento delas. Pode-se ver o esforço de Kant como uma tentativa de reconstruir algo seguro a partir dos escombros deixados pelo ceticismo de Hume.
Em parte, creio que seja exatamente sobre isso que os devotados ao debate atual entre criacionismo e darwinismo precisam refletir melhor. Nem converter o criacionismo numa versão rival à versão científica sobre a origem da vida ou do universo nem converter o darwinismo numa versão rival da versão religiosa para conferir sentido à totalidade tão amplas como a natureza ou o mundo; nada disso parece funcionar bem. Ao contrário do que ele pensa, creio que o ceticismo humeano pesa mais contra do que a favor desse segundo ponto de vista defendido por Dawkins.
Se nos contentarmos em meramente pensar “natureza em sua totalidade” e abdicamos de todas as nossas pretensões de conhecê-la, nada que a ciência diga pode ser tomado como sendo a última palavra. A ciência não pode exercer sua autoridade epistemológica para além do domínio do conhecimento. Nosso conhecimento está limitado ao domínio da nossa experiência – e, mesmo aí, está restrito às condições precárias dos nossos raciocínios indutivos, analógicos etc. Portanto, os assuntos sobre os quais as religiões têm algo a dizer estão muito além do alcance conceitual da ciência. Penso que esse seria um bom modo de parafrasear as possíveis visões de Hume sobre o nosso assunto.
Limites do conhecimento
Qualquer “cisma” entre religião e ciência ou entre fé e crença (isto é, conhecimento) tem, portanto, um caráter estrutural e insuperável. Essa me parece ser uma lição importante a ser apreendida da leitura das filosofia de Hume e de Kant. Repito que ela poderia valer como corretivo para os dois lados do debate criacionismo versus darwinismo. Ao sujeitar a ciência à fé – como desejam fazer aqueles que defendem o design inteligente –, promove-se uma restrição indevida e espúria daquilo que podemos, de fato, conhecer. O mesmo vale no sentido contrário – e atinge os que compartilham os pontos de vista de Dawkins –, isto é, ao sujeitar a fé à ciência, promove-se não uma restrição, mas uma igualmente indevida e espúria extensão do domínio de objetos próprios do conhecimento.
Aqui vale o mesmo que antes valia para o exemplo dos alimentos e da sua eficácia nutricional: não é uma questão de dizer que “é líquido e certo que com o progresso da ciência conheceremos sempre mais e mais a respeito da natureza e das condições de surgimento da vida e do universo e poderemos, finalmente, sustentar como bons argumentos científicos que as religiões estavam erradas”; não é um problema que se decide apenas expandindo o nosso atual conhecimento. Os cientistas que pensam assim precisam refletir melhor sobre as bases epistemológicas da sua prática investigativa. Um bom começo seria pensar melhor sobre isto que Hume nos mostrou: que há genuínos limites no nosso conhecimento, além dos quais não se pode avançar seja qual for o grau de precisão ou a extensão do estoque de conhecimentos que pudermos mobilizar. Mais uma vez creio que vale aqui também a observação de Quine: a condição humeana é a condição humana.