Edição 369 | 15 Agosto 2011

Outros critérios: os 300 anos de David Hume

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Márcia Junges

Investigar é um processo destrutivo, e na filosofia humeana a destrutividade é um imperativo moral, pontua César Kiraly. Ceticismo sobre o conhecimento não exclui o ceticismo sobre valores, e Hegel poderia ter se dado conta disso

“A narrativa humeana, aquela que nasce da decantação do discurso de Hume, se interessa pelas coisas comuns, mas sob olhares de esteta”. A declaração faz parte da entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line por César Kiraly. Ele menciona “os abismos deixados por Hume”, ou as “gramáticas do abismo, como as teorias da projeção elaboradas por Nelson Goodman ou David Lewis, para lidar com o paradoxo da crença causal”. A respeito do ceticismo, acentua que possa haver um “gosto cético pela destruição”. E complementa: “Não é difícil compreender que os céticos são causadores de problemas. A atividade filosófica proposta por Hume é destrutiva, porque parte de uma concepção construtiva do pensamento”. Segundo Kiraly, “uma investigação é uma atividade destrutiva, muito embora demande certo cuidado para não fazer perder fragmentos, mas que não impede que a história das nossas representações políticas e filosóficas não seja percebida enquanto acrescentadora de novos elementos”. A destrutividade nesse pensador faz as vezes de “um imperativo moral de desconstrução de sistemas de pensamento e paisagens de crenças”.

César Kiraly é graduado em Direito pela Universidade Cândido Mendes – UCAM, e em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, onde cursou mestrado em Filosofia. É mestre e doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-Tec com a dissertação Conhecimento e moralidade em David Hume. Autor de Os limites da representação: um ensaio desde a filosofia de David Hume (São Paulo: Giz Editorial, 2010), leciona na Universidade Federal Fluminense – UFF.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a atualidade do pensamento de Hume?

César Kiraly – De alguma forma existe algo na preocupação com o cotidiano que não se altera. Talvez seja o caso de dizer que existe algo no cotidiano que se altera muito pouco com o passar dos séculos. Algo que faz com que as vidas de Pirro , de Sócrates , de Hume etc., sob certa observação, sejam muito parecidas, não no modo pelo qual viram o mundo, mas a partir do qual o fizeram. Mas há também algo que muito se altera. Na verdade, muitas coisas se alteram. Mas o cotidiano da natureza humana permanece o mesmo. As cosmologias muito se alteram. Não temos como saber da pressão sobre Pirro ou Sócrates pelo carregamento das suas respectivas. A ordinariedade da vida cotidiana, também, muito se altera. Hume não pagava suas contas como Sócrates, e não o fazia como fazemos etc. Assim, há uma atualidade muito forte em Hume. E atualidade é um termo muito mais acertado do que contemporaneidade. Aquela exercida pela narrativa das impressões, das crenças e das instituições, mas tomando-as pela construção presente em seus veios, ou, até mesmo, no efeito causado pelo discurso religioso nesses veios. Se existe um encantamento cotidiano, ele se deve mais ao susto e quase nada à revelação, a não ser o susto da presença de uma coisa tal chamada revelação. Dessa forma, ainda que fale de uma vida diferente da nossa, ela é identicamente compartilhada por aqueles que veem na experiência os veios de sua construção. A narrativa humeana, aquela que nasce da decantação do discurso de Hume, se interessa pelas coisas comuns, mas sob olhares de esteta. Atitude que sempre se opõe à abstrusidade filosófica, ou a sisudez de Estado.
Existe, também, em Hume, uma atualidade guardada aos grandes escritores. Sobretudo, aos grandes escritores, que, por terem começado a escrever muito cedo, permitem-nos seguir a sua juventude até os seus derradeiros textos. A obra de Hume é atual, porque como grande escritor que é, esconde-se na maneira de mostrar os problemas, e, por mais clara que sua prosa vá se tornando, ela não é clara a despeito de sua beleza, e, por isso, o gosto pode se aprofundar indefinidamente nela. Além do que, enquanto houver disposição, seus conceitos podem ser interpretados.  Isso sem falar nos abismos deixados por Hume, que seus leitores não puderam resolver, e que precisamos elaborar argumentos de contorno, ou gramáticas do abismo, como as teorias da projeção elaboradas por Nelson Goodman ou David Lewis, para lidar com o paradoxo da crença causal.

Contorno impossível
Por causa das atualidades abordadas, Hume é especialmente relevante para o que se pensa na teoria das ciências humanas de nossos dias, para mais já não bastasse ter, relativamente sozinho, invertido a relação de subserviência das ciências do homem com relação às outras. Por certo que lemos um Hume hoje que não foi lido nos séculos precedentes, mas de um modo diferente à inexorável originalidade concernente à passagem do tempo sobre os cânones, e sim porque a ciência experimental da natureza humana permite o desvio a muitos excessos dogmáticos cometidos nos séculos XIX e XX, como a morte do sujeito e outras mortes. Parece que Hegel , o estruturalismo e suas formas posteriores cansaram o vínculo das ciências humanas com a filosofia. Isso pode ser percebido na necessidade de rígidas disciplinas para renovar as ciências humanas e para servirem de fiel nos embates entre os discursos. A linguística exerceu esse papel entre os franceses, a atividade metateórica, atentando para o oximoro, entre os anglo-americanos e a teoria da comunicação entre os de expressão alemã. Hume, com a simples enunciação, e ele mesmo cria boa parte da condição da possibilidade da assertiva, do pertencimento de todo conhecimento à natureza humana, faz com que a interrogação sobre a dimensão estrutural, formal e elementar consista numa atividade eminentemente filosófica, sem possibilidade de contorno.

IHU On-Line – O ceticismo é destrutivo?

César Kiraly – Talvez haja um gosto cético pela destruição. Não é difícil compreender que os céticos são causadores de problemas. A atividade filosófica proposta por Hume é destrutiva, porque parte de uma concepção construtiva do pensamento. Hume, num certo sentido, é um elementarista construtivo; vê o pensamento e a experiência em termos de crenças, ideias e impressões. De modo que impressões formam ideias, que formam impressões, que formam crenças; e ainda que as ideias e as impressões possam ter os seus sentidos alterados nas crenças, elas, como num sítio arqueológico, permanecem formalmente preservadas. Assim, uma investigação é uma atividade destrutiva, muito embora demande certo cuidado para não fazer perder fragmentos, mas que não impede que a história das nossas representações políticas e filosóficas não seja percebida enquanto acrescentadora de novos elementos. A história da filosofia, de modo humeano, pode ser lida como a história dos sistemas de crenças. Agora, os sistemas religiosos, ou filosoficamente absolutos, sofrem muito com a parcela cética do pensamento de Hume. Pois desmontar um sistema é também neutralizar o efeito retórico de todas as suas peças funcionando conjuntamente. Aquela sensação de evidência ocasionada pela enunciação dogmática resta bastante afetada. A instituição pelo discurso, depois de Hume, precisa fazer muito mais para se inscrever.

Destrutividade humeana

Mas se deve perceber que nem Hume é apenas cético, nem o ceticismo pode ser percebido de um modo linear. Se atentarmos bem, Hume tem um corpo filosófico diphônico, mas não poliphônico, como no canto diaphônico dos mongóis; falam por ele um cético, um epicurista, um estoico, um socrático, um platônico etc. Na poliphonia existe a necessidade de muitos instrumentos com trajetória própria preservados em suas especificidades, mas na diphonia todos os instrumentos são tocados por uma única fonte e todos perdem as suas características de origem. No canto diphônico mongol, a garganta humana faz um ruído que não é convencional e o instrumento, como o Igil é tocado incitando a anomalia vocal; o mesmo acontece com Hume, pois, ainda que seja um grande historiador da filosofia, ele faz com que os autores não sejam vistos em suas particularidades, mas como incitadores da voz filosófica que pretende instituir. Perceba-se que Hume não é diaphônico em sua enunciação, ainda que esteja imerso nela como todo cético moderno, porque não é muito respeitoso com as propriedades dos discursos exógenos ao seu, nem para interpretá-los, nem para recusá-los em função da perturbação que por ventura provoquem. A diaphonia é um ambiente propício para o surgimento da atonalidade, mas Hume compõe nela esse excesso de harmonia. Todavia, há vozes que Hume diretamente não tenta tocar. Nele pode falar um cartesiano, mas não fala um escolástico. Assim, melhor do que ver em Hume um cético, é melhor vê-lo como partícipe diphônico da diaphonia do ceticismo moderno e sua descritividade.
Historiograficamente, podemos dizer que Hume descreve diphonicamente a diaphonia moderna, tal como Montaigne  e Pierre Bayle  antes dele, mas com ela faz algo de improvável: acrescenta à paisagem de crenças de Montaigne e ao retrato de crenças de Bayle a descrição da crença como entidade abstrata compositiva de paisagens e retratos. Se pudéssemos utilizar um conceito estranho às circunstâncias de Hume, diríamos que ele descobre a dimensão concreta do pensamento como imagem. Dessa forma, a destrutividade em Hume funciona como um imperativo moral de desconstrução de sistemas de pensamento e paisagens de crenças, uma vez que expô-las a esse exercício de imaginação artística, faz-nos estabelecer critérios de conservação ou abandono de ideias.

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