Edição 369 | 15 Agosto 2011

Os limites da razão e um ceticismo mitigado

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Márcia Junges



IHU On-Line – Qual é a relação entre a conjunção constante e a formação de crenças na teoria do conhecimento de Hume?

André Luiz Olivier da Silva – O conhecimento se inicia na impressão sensível. No processo de conhecimento, as percepções da natureza humana conectam uma ideia à outra não a partir de uma faculdade racional, mas sim da imaginação, que associa uma à outra usando como referência uma lógica de causa e efeito. Uma percepção provoca a outra, de modo que impressões geram ideias simples, as quais se tornam ideias complexas na medida em que se afastam das impressões sensíveis e se unem a outras ideias pelo princípio da causalidade.
O binômio impressão/ideias que guia a investigação humeana a uma abordagem sobre as crenças produz outro questionamento relevante: de que maneira raciocinamos sobre os fatos? Como resposta, Hume fornece uma descrição do processo de conhecimento da natureza humana, explicando o modo segundo o qual o ser humano é levado, por sua própria natureza, a extrair consequências e conclusões de uma determinada causa. Analisa, mais especificamente, a inferência causal nas questões de fato, quando a mente raciocina sobre os fenômenos naturais, generalizando os fatos observados, quando, por exemplo, deriva a conclusão de que, se o dia amanheceu nublado, é porque cairá uma chuva; ou que poderá saciar a fome se comer o pão. Por meio de um procedimento indutivo, a natureza humana extrai conclusões (muitas vezes precipitadas) ao antecipar os fenômenos do mundo natural, julgando-os necessários, inferindo a necessidade de que um dado objeto a seja a causa (necessária) da existência do objeto b. Assim, nessa relação entre os fenômenos a e b, verifica-se uma “conjunção constante”, mas não propriamente uma “conexão necessária”. Não há uma relação de necessidade entre a causa e o efeito, mas uma relação probabilística, pela qual não se podem extrair verdades dos fatos, mas não mais do que previsões e conjeturas. Eis a conjunção constante.

Dominó causal
Ao raciocinar sobre os fatos, a mente parte de um determinado número de observações empíricas, e, no momento da extração de suas conclusões, generaliza, indo além da experiência ao dizer que em “todos” os casos ou que “sempre” os fenômenos observados irão acontecer. A inferência causal (que vai da impressão à ideia) estimula, então, o fluxo de imagens na mente a ultrapassar os limites da experiência e a ir além e extrapolar o que está presente aos sentidos; faz a mente enxergar semelhança entre o passado e o futuro, sugerindo que o passado e o presente estão habilitados a explicar o futuro por meio de um dominó causal. Faz também a mente extrair um “dever ser” do “ser”, como propõe o problema da falácia naturalista, ao apontar que a mente observa um objeto a, e, a partir dele, extrai injustificadamente um objeto b, como, por exemplo, um dever. Nesse movimento mental, os objetos percebidos pela natureza humana e o seu respectivo processo de associação entre as ideias impulsionam, por fim, a natureza humana a elaborar crenças factuais, crenças sobre os fatos (o mundo ou outras pessoas, por exemplo), crenças que revelam um ser humano levado passionalmente a acreditar na ocorrência de determinados fenômenos com base na conjunção constante e repetitiva pela qual os objetos aparecem diante do seu horizonte.

A natureza humana associa ideias e produz crenças por meio de um processo de conhecimento, que, na medida em que o ser humano acumula experiência, atua na sua mente como um exercício repetitivo, costumeiro, constante e habitual. Trata-se de um processo que conjuga e organiza os objetos na mente humana sempre do mesmo jeito, a partir dos princípios da contiguidade, semelhança e, principalmente, causalidade dos objetos. Esse processo de formação das crenças se torna um movimento uniforme devido à “conjunção constante” segundo a qual os objetos são percebidos e relacionados na natureza humana. Ao ser induzido pela conjunção constante e repetitiva de alguns objetos que lhe aparecem à mente, o ser humano, por sua vez, é levado a acreditar na ocorrência de determinados fatos e, na medida em que os objetos percebidos vão se tornando ideias, a mente adquire o hábito ou o costume de antecipar as percepções já sentidas anteriormente e, com isso, passa a inferir, dado um determinado objeto, que algumas percepções do passado poderão (ou melhor, deverão) se repetir no futuro, pois aparentam estar necessariamente ligadas umas às outras.

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