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Márcia Junges
Uma filosofia instigante “porque põe à prova o papel da razão para explicar e justificar o ato de conhecer dos seres humanos, mostrando que a natureza humana é constituída mais por paixões do que pela razão”. Assim é o legado de David Hume, analisa o filósofo André Luiz Olivier da Silva, na entrevista que por e-mail concedeu à IHU On-Line. “O método experimental de Hume mostra que não há ideias inatas ao ser humano, mas, ao contrário, as ideias são adquiridas com a experimentação que o sujeito desenvolve em contato com o mundo empírico”. E continua: “A mente cria ideias como identidade, necessidade, poder, força, dentre outros termos que nomeiam coisas abstratas. Mas de onde vêm tais ideias? Como são produzidas pela natureza humana? Segundo Hume, o ponto de partida do processo de conhecimento é sempre a experiência, que, por meio de impressões sensíveis, movimenta os sentidos do ser humano e estimula a produção de ideias”. Outro tema explorado por André é a questão do ceticismo humeano, autodenominado como “mitigado”, isto é, moderado, “que não propõe exatamente a dúvida exacerbada como solução aos problemas filosóficos e muito menos a suspensão de nossas crenças causais devido à ausência de justificação racional. A conclusão de Hume em relação ao ceticismo é a de que o cético não consegue viver o seu próprio ceticismo, que, nos casos extremos, chegaria ao absurdo de negar o conhecimento”. E completa: “É um ceticismo que constata que não se pode duvidar de todas as coisas justamente porque é preciso viver, agir e, principalmente, sentir”.
André é graduado em Direito e em Filosofia pela Unisinos. É mestre e doutorando em Filosofia por essa mesma instituição, com a dissertação Ceticismo, imaginação e identidade em Hume e a tese Lei e liberdade na antropologia kantiana. Leciona no curso de Direito da Unisinos, do qual é coordenador.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que aspectos a filosofia de Hume continua instigante e atual?
André Luiz Olivier da Silva – A filosofia de David Hume (1711–1776) é instigante porque põe à prova o papel da razão para explicar e justificar o ato de conhecer dos seres humanos, mostrando que a natureza humana é constituída mais por paixões do que pela razão. Somos muito pouco racionais para decidir e escolher alguma coisa, de modo que todas as nossas decisões estão, no fundo, envolvidas por percepções sensíveis, por afetos e sentimentos, que fundamentam não só o nosso ato de conhecer e pensar o mundo, mas, principalmente, os nossos julgamentos sobre a moral. Para mostrar isso, Hume apresenta um mapeamento da natureza humana, adotando o empirismo, um método segundo o qual o conhecimento provém da experiência sensível.
O método experimental de Hume mostra que não há ideias inatas, mas, ao contrário, as ideias são adquiridas com a experimentação que o sujeito desenvolve em contato com o mundo empírico. O impacto da metodologia proposta por Hume fomentou o período moderno da filosofia porque inseriu uma nova solução para os problemas tradicionais da metafísica, principalmente ao afirmar que não há ideia inata, mas sim um processo cognitivo constantemente estimulado por impressões sensíveis e por um sucessivo encadeamento natural de ideias. Além disso, a obra de Hume se mostra atual porque participa dos textos filosóficos do período moderno, como os de Francis Bacon (1561–1626), René Descartes (1596–1650), Thomas Hobbes (1588–1679), John Locke (1632–1704), George Berkeley (1685–1753) e Immanuel Kant (1724–1804). Esses textos nunca saíram de moda porque traçam uma ampla discussão sobre diversos temas filosóficos impermeados pela controvérsia entre empirismo e racionalismo, a qual é base de outras tantas discussões contemporâneas.
Razão, escrava das paixões
Segundo a minha opinião, o aspecto que torna a filosofia de Hume tão instigante ainda nos dias de hoje é a célebre conclusão de que a razão é escrava das paixões, pois é justamente a partir desse ponto que Hume irá propor uma solução cética ao processo associativo de ideias na mente humana e ao processo natural de formação das crenças sobre as coisas do mundo, como por exemplo, as crenças em relação à existência de corpos físicos e de outras pessoas ou as crenças na existência de valores morais como o certo e o errado, o justo e o injusto. No processo de conhecimento, primeiramente, a natureza humana formula um vasto repertório de ideias, ideias de todo tipo, desde a ideia de que corpos físicos ou outras pessoas existem como entidades reais e autônomas, até a ideia de que se pode agir moralmente com base em virtudes como a justiça e a benevolência. Algumas dessas ideias, quando se mantêm vívidas e intensas no longo processo cognitivo, tornam-se percepções mais fortes e chegam a gerar crenças naturais no ser humano que se estruturam a partir daquela coleção de ideias. A mente cria ideias como identidade, necessidade, poder, força, dentre outros termos que nomeiam coisas abstratas. Mas de onde vêm tais ideias? Como são produzidas pela natureza humana? Segundo Hume, o ponto de partida do processo de conhecimento é sempre a experiência, que, por meio de impressões sensíveis, movimenta os sentidos do ser humano e estimula a produção de ideias. Neste ponto, pode-se identificar o traço empirista de Hume, quando propõe que toda ideia que surge na mente humana tem a sua origem na experiência; e é o constante retorno à experiência sensível que torna toda ideia sensivelmente forte e vívida a ponto de poder estimular a natureza humana a formar suas crenças.
IHU On-Line – Qual é a relação entre a conjunção constante e a formação de crenças na teoria do conhecimento de Hume?
André Luiz Olivier da Silva – O conhecimento se inicia na impressão sensível. No processo de conhecimento, as percepções da natureza humana conectam uma ideia à outra não a partir de uma faculdade racional, mas sim da imaginação, que associa uma à outra usando como referência uma lógica de causa e efeito. Uma percepção provoca a outra, de modo que impressões geram ideias simples, as quais se tornam ideias complexas na medida em que se afastam das impressões sensíveis e se unem a outras ideias pelo princípio da causalidade.
O binômio impressão/ideias que guia a investigação humeana a uma abordagem sobre as crenças produz outro questionamento relevante: de que maneira raciocinamos sobre os fatos? Como resposta, Hume fornece uma descrição do processo de conhecimento da natureza humana, explicando o modo segundo o qual o ser humano é levado, por sua própria natureza, a extrair consequências e conclusões de uma determinada causa. Analisa, mais especificamente, a inferência causal nas questões de fato, quando a mente raciocina sobre os fenômenos naturais, generalizando os fatos observados, quando, por exemplo, deriva a conclusão de que, se o dia amanheceu nublado, é porque cairá uma chuva; ou que poderá saciar a fome se comer o pão. Por meio de um procedimento indutivo, a natureza humana extrai conclusões (muitas vezes precipitadas) ao antecipar os fenômenos do mundo natural, julgando-os necessários, inferindo a necessidade de que um dado objeto a seja a causa (necessária) da existência do objeto b. Assim, nessa relação entre os fenômenos a e b, verifica-se uma “conjunção constante”, mas não propriamente uma “conexão necessária”. Não há uma relação de necessidade entre a causa e o efeito, mas uma relação probabilística, pela qual não se podem extrair verdades dos fatos, mas não mais do que previsões e conjeturas. Eis a conjunção constante.
Dominó causal
Ao raciocinar sobre os fatos, a mente parte de um determinado número de observações empíricas, e, no momento da extração de suas conclusões, generaliza, indo além da experiência ao dizer que em “todos” os casos ou que “sempre” os fenômenos observados irão acontecer. A inferência causal (que vai da impressão à ideia) estimula, então, o fluxo de imagens na mente a ultrapassar os limites da experiência e a ir além e extrapolar o que está presente aos sentidos; faz a mente enxergar semelhança entre o passado e o futuro, sugerindo que o passado e o presente estão habilitados a explicar o futuro por meio de um dominó causal. Faz também a mente extrair um “dever ser” do “ser”, como propõe o problema da falácia naturalista, ao apontar que a mente observa um objeto a, e, a partir dele, extrai injustificadamente um objeto b, como, por exemplo, um dever. Nesse movimento mental, os objetos percebidos pela natureza humana e o seu respectivo processo de associação entre as ideias impulsionam, por fim, a natureza humana a elaborar crenças factuais, crenças sobre os fatos (o mundo ou outras pessoas, por exemplo), crenças que revelam um ser humano levado passionalmente a acreditar na ocorrência de determinados fenômenos com base na conjunção constante e repetitiva pela qual os objetos aparecem diante do seu horizonte.
A natureza humana associa ideias e produz crenças por meio de um processo de conhecimento, que, na medida em que o ser humano acumula experiência, atua na sua mente como um exercício repetitivo, costumeiro, constante e habitual. Trata-se de um processo que conjuga e organiza os objetos na mente humana sempre do mesmo jeito, a partir dos princípios da contiguidade, semelhança e, principalmente, causalidade dos objetos. Esse processo de formação das crenças se torna um movimento uniforme devido à “conjunção constante” segundo a qual os objetos são percebidos e relacionados na natureza humana. Ao ser induzido pela conjunção constante e repetitiva de alguns objetos que lhe aparecem à mente, o ser humano, por sua vez, é levado a acreditar na ocorrência de determinados fatos e, na medida em que os objetos percebidos vão se tornando ideias, a mente adquire o hábito ou o costume de antecipar as percepções já sentidas anteriormente e, com isso, passa a inferir, dado um determinado objeto, que algumas percepções do passado poderão (ou melhor, deverão) se repetir no futuro, pois aparentam estar necessariamente ligadas umas às outras.
IHU On-Line – Em que consiste o ceticismo da filosofia humeana?
André Luiz Olivier da Silva – A teoria do conhecimento de Hume analisa o exercício repetitivo que se estabelece na natureza humana quando a inferência causal percorre indutivamente o caminho que liga a impressão sensível à ideia mais abstrata do conhecimento. A imaginação engendra um movimento uniforme que constitui, então, a pedra de toque para a formação das crenças. Assim, a origem da inferência causal reside na conjunção constante entre os objetos da mente, ou seja, reside no hábito ou costume de inferir conclusões causais sobre os fatos por meio de objetos conjugados. O hábito, por sua vez, é um produto da imaginação e não surge por causa de uma faculdade racional. É justamente o hábito o princípio apontado por Hume para contrapor e submeter a razão às regras das paixões quando da elaboração de crenças causais por parte da natureza humana. O princípio do hábito revela que a investigação de Hume sobre o conhecimento e a moralidade está estruturada a partir de uma base empírica e psicológica, que aborda as funções subjetivas do entendimento e aponta o papel das percepções humanas sobre as questões de fato. Sua análise deixa de lado o raciocínio lógico e, ao recorrer aos poderes da imaginação, é identificada como uma postura cética perante a filosofia, principalmente por seu método experimental, que, se levado às últimas consequências, reduziria a crença a um fenômeno muito pessoal e subjetivo, que não seria compartilhado com ninguém.
Ceticismo mitigado
O ceticismo, segundo o seu sentido usual, diz respeito à doutrina filosófica que não encontra certeza ou verdade nos fatos, e que, por isso, insiste na dúvida e, nos casos mais radicais, na impossibilidade do conhecimento e na suspensão das crenças sobre o mundo. O ceticismo visa, em resumo, a refutação da razão como fundamento do conhecimento. No entanto, o ceticismo de Hume é denominado por ele mesmo um ceticismo mitigado, ou seja, um ceticismo moderado, que não propõe exatamente a dúvida exacerbada como solução aos problemas filosóficos e muito menos a suspensão de nossas crenças causais devido à ausência de justificação racional. A conclusão de Hume em relação ao ceticismo é a de que o cético não consegue viver o seu próprio ceticismo, que, nos casos extremos, chegaria ao absurdo de negar o conhecimento. Este não é o caso de Hume, que observa, com base no método experimental, que o ser humano não pode abandonar as suas crenças por completo e precisa acreditar, ao menos, em algum conjunto de crenças mínimas, como, por exemplo, as crenças morais, para conseguir viver.
Por certo, Hume não encontra uma razão para justificar as nossas crenças básicas, mas, nem por isso, propõe a suspensão delas, como se tivéssemos que deixar de viver porque não há uma razão para explicar a nossa vida. Hume não cai no erro de refutar e contradizer a razão; propõe apenas o seu abandono, como se deixássemos a razão de lado e centrássemos a investigação filosófica aos limites da experiência. Nesse sentido, Hume, às vezes, não se parece com um cético, ao menos não nos moldes tradicionais, daqueles céticos que visam refutar a razão. Parece-se mais com um cético naturalista, que não propõe a recusa de crenças básicas devido ao desamparo da razão. Ao contrário, visa analisar o seu processo de formação sob uma perspectiva naturalista, no anseio de descrevê-lo por meio do método experimental. O ceticismo de Hume é moderado porque duvida da própria postura cética que duvida de tudo. É um ceticismo que constata que não se pode duvidar de todas as coisas justamente porque é preciso viver, agir e, principalmente, sentir.
IHU On-Line – Quais são os aspectos desse ceticismo mitigado que continuam a influenciar a filosofia contemporânea?
André Luiz Olivier da Silva – Além de influenciar profundamente a teoria do conhecimento de Kant e de cultivar uma estreita relação com Jean-Jacques Rousseau (1712–1778) e Adam Smith (1723–1790), o empirismo de Hume se desdobra, a partir do século das luzes, no utilitarismo de John Stuart Mill (1806–1873); no pragmatismo norte-americano de William James (1842–1910); no positivismo de August Comte (1798–1857); no princípio de verificação empírica do Positivismo Lógico do Círculo de Viena, em Rudolf Carnap (1891–1970) e Moritz Schlick (1882–1936); na falácia naturalista de G. E. Moore (1873–1958) e, por fim, na filosofia analítica a partir de Bertrand Russell (1872–1970).
O legado de Hume reside na aplicação do método experimental e do seu consequente ceticismo mitigado, que consiste na análise do processo de formação das crenças naturais a partir de elementos empíricos, e não a partir da razão. Nesse sentido, o ceticismo de cunho empirista proposto por Hume se assemelha muito à postura terapêutica de Ludwig Wittgenstein (1889–1951) em relação à linguagem. O resumo dessa semelhança é que ambos afirmam que na natureza humana haverá sempre um conjunto de proposições ou crenças que não pode ser colocado em dúvida, tais como as crenças básicas da vida comum de um ser humano.
Sobre o ceticismo de Hume, as leituras contemporâneas oscilam entre uma interpretação propriamente cética e outra denominada naturalista. A interpretação cética tenta mostrar que a investigação humeana está fadada a um subjetivismo irracionalista, segundo o qual nenhum conhecimento seria possível. Entre os comentadores da obra de Hume que defendem o ceticismo encontram-se não só os positivistas lógicos do Círculo de Viena, mas também Thomas Reid , R. Popkin e R. J. Fogelin. A leitura cética de Hume é a interpretação mais tradicional da sua obra, que considera o seu ceticismo em relação à razão o ponto central da sua investigação, ceticismo esse destrutivo e nem um pouco moderado. Quanto à interpretação naturalista, pode-se citar Kemp Smith , Strawson e J. A. Passmore, que mostram um Hume mais propenso a descrever a influência dos princípios da imaginação sobre as crenças do entendimento do que a dar atenção à dúvida cética. A leitura naturalista, por sua vez, é mais recente e surge a partir dos estudos de Norman Kemp Smith (1872–1958), que introduz uma nova discussão na filosofia de Hume, a partir de um conceito positivo da teoria humeana, mais atenta à construção da ciência por meio de um conjunto de crenças naturais do que à dúvida cética e à suspensão das crenças. O naturalismo destaca que a investigação humeana propõe uma geografia da natureza humana ao descrever o modo pelo qual as crenças são geradas a partir da regra empirista segundo a qual toda ideia deriva de uma impressão sensível. Por fim, cabe destacar que a investigação humeana reverbera nas discussões contemporâneas sobre a formação das crenças e isso repercute nas ciências empíricas do nosso tempo, ao influenciar as atuais ciências cognitivas e comportamentais, como, por exemplo, a sociobiologia e a neurociência.
IHU On-Line – Quais são os autores que influenciam sua concepção de ceticismo?
André Luiz Olivier da Silva – O principal objetivo de Hume é “introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais”, como estabelece o subtítulo do Tratado da natureza humana (1739–1740). Nesse sentido, verifica-se o interesse pela controvérsia metodológica entre empirismo e racionalismo; mas também se pode identificar a aplicação do método empírico aos questionamentos sobre a moralidade, tais como vontade, ação, juízos de valor, liberdade, entre tantos outros assuntos polêmicos que envolvem o nosso mais genuíno interesse.
Por um lado, fica clara a influência de Isaac Newton (1743–1727) na investigação de Hume, que pretendeu aplicar o método experimental da física ao campo da ação e dos juízos sobre o certo e o errado. Nesse diapasão, Hume visa inserir nos assuntos morais a conclusão de que a origem das ideias se dá a partir de impressões sensíveis por meio de um processo associativo que induzirá o ser humano a formar suas crenças em relação ao mundo, a outras pessoas e também aos valores morais. Hume insere-se, então, no debate sobre a origem das ideias a partir de Locke e Berkeley, e também por outros pensadores como Pierre Bayle , Nicolas Malebranche , Samuel Clarke e Francis Hutcheson .
Mais recentemente, alguns comentadores de Hume estão a relacionar o seu naturalismo filosófico ao naturalismo da antiguidade, como em Pirro, Sexto Empírico e Cícero. Há muita semelhança entre Hume e os antigos; porém, o texto de Hume não enfatiza tanto assim essa relação com os antigos, de modo que não se sabe até que ponto ele concordaria com esse tipo de leitura da sua obra.
IHU On-Line – Como vontade e determinismo moral se entrelaçam em Hume?
André Luiz Olivier da Silva – As consequências mais relevantes provocadas pelo método empírico ocorrem justamente nos assuntos morais, quando se aborda a vontade que causa a ação com base em valorais morais de bem e mal, certo e errado, justo e injusto. A vontade não é livre, mas determinada naturalmente, condicionada por sua natureza passional, sem que talvez a liberdade possa ser atribuída à ação e à escolha dos valores morais. Isso mostra que a vontade e o determinismo causal estão intimamente entrelaçados na natureza humana, pois ela (a vontade) escolhe o bem e o mal com vista à utilidade pessoal, que é um critério fortemente vinculado ao interesse natural de cada indivíduo. A vontade é um efeito imediato da dor e do prazer, e, quando se observa a ação dos outros, conclui-se que ela está sempre submetida aos interesses da natureza, tendo em vista que todo homem reage por meio dos sentimentos ao prazer e à dor, elaborando uma concepção sobre o bem e mal usando como referência aquilo que considera naturalmente agradável ou desagradável. Portanto, o método experimental, quando aplicado à moral, constata que a vontade é, por certo, a causa da ação; no entanto, é uma causa inabilitada a constituir a origem de uma ação completamente livre.
Ideia de liberdade
O curioso é que a natureza humana acredita cegamente na ideia de liberdade e tem certeza de que a sua própria ação é livre porque determinada por uma vontade livre e não condicionada por determinações empíricas. No entanto, as consequências do empirismo dizem respeito à relação entre moralidade e natureza, segundo a qual a mente humana é induzida a imaginar um mundo com liberdade para o agir humano, mesmo quando o observa a partir de uma perspectiva determinista. A mente é confundida por raciocínios absurdos e contraditórios, que se misturam às suas próprias paixões, e contrapõe, por exemplo, o determinismo causal à ideia de liberdade, lançando um problema que talvez não possa nem mesmo ser resolvido por uma investigação filosófica. Repare-se que Hume não está propriamente dizendo que a vontade é ou não é livre para agir (embora tenha fortes indícios para dizer que não o seja), mas está mostrando que a justificação da moral se caracteriza por disputas verbais históricas, disputas que são insolúveis, como é o caso da investigação sobre a vontade e a ação, em se saber se são determinadas empiricamente ou se são livres. Observamos a ação dos outros e não notamos a liberdade, mas, quando se trata de nossa própria ação, tendemos a ter como norte da ação a ideia de liberdade.
IHU On-Line – Qual é o significado desses dois conceitos para esse filósofo e sob quais aspectos dialoga com Kant?
André Luiz Olivier da Silva – A influência de Hume em Kant é notória e admitida pelo próprio Kant, que afirma ter sido despertado do sono dogmático da razão justamente por causa da filosofia de Hume. Kant visa apresentar uma solução ao problema do ceticismo empírico e, para tanto, reconhece, a partir da metodologia empirista de Hume, os limites da razão pura, os seus limites empíricos, determinados pelo interesse natural de cada ser humano. Kant aceita que a “coisa em si” permaneça incognoscível, mas pretende mostrar que a realidade objetiva pode ser conhecida mediante uma investigação do “fenômeno”. Dessa maneira, a razão, para Kant, sofre forte influência da experiência, estando enquadrada dentro dos limites desta. Mas isso não significa dizer que a razão não possui autonomia e superioridade para guiar não só o processo cognitivo do ser humano, mas, principalmente, os julgamentos morais sobre o certo e o errado. Kant arrola um argumento racional para justificar o conhecimento, denominado argumento do tipo transcendental, e, com isso, não propõe definitivamente a mesma resposta que a de Hume ao problema do conhecimento. Kant parte do fato de que todos os seres humanos estão sob a posse do conhecimento e enunciam juízos de toda ordem, sobre o mundo, os valores morais de justo e injusto, etc. É preciso legitimar a posse deste conhecimento e encontrar as condições a priori do conhecimento, isto é, as condições que possibilitam a experiência. Assim, ao indagar as condições necessárias de possibilidade das representações mentais sobre a experiência, Kant fornece uma resposta racionalista ao conhecimento, justificando-o a partir de intuições e conceitos anteriores a toda e qualquer experiência possível.
Razão pura
No que tange à moralidade, se compararmos Hume e Kant, veremos que ambos discordam quanto às determinações da vontade e os motivos que conduzem a vontade a praticar uma ação considerada boa. Hume é um empirista e não concorda com a tese das ideias inatas e, quando observa o fenômeno moral, não vê mais do que uma vontade determinada pela utilidade do seu próprio prazer. Kant, por sua vez, mostra uma vontade capaz de elaborar regras para si mesmo, uma vontade que constitui a causa de sua própria ação, e, com isso, torna-se livre das determinações empíricas. Para tanto, recorre aos conceitos da razão pura e explica o fenômeno moral a partir do imperativo categórico, ao prescrever a conduta dos seres humanos a fim de garantir a sua própria liberdade. Hume, creio eu, não concordaria com o compatibilismo entre determinismo causal e liberdade, como o que se observa na razão prática de Kant. Se estivermos naturalmente determinados a agir de um determinado modo, diria Hume, é porque não somos livres, de sorte que não resta à investigação filosófica outra alternativa a não ser observar a maneira como os seres humanos reagem ao fenômeno moral por meio dos seus sentimentos.