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Márcia Junges
Tido como o filósofo mais influente de língua inglesa, Hume ofereceu legados inestimáveis à filosofia. Uma delas, enumera a filósofa Lívia Guimarães, é apontar a “existência da falácia naturalista nas teorias morais que não distinguem valores de fatos, enunciados prescritivos de enunciados descritivos”. Além disso, tomando em consideração os resultados teóricos da “nova cena de pensamento”, pode-se dizer que “a maior contribuição de Hume esteja na intuição de que as paixões estão na origem de todos os nossos juízos e de que a moral, a estética e mesmo o conhecimento possuem uma base sentimental”. Resumidamente, ceticismo, naturalismo e sentimentalismo compõem as intenções e contribuições fundamentais do filósofo escocês. Lívia acentua que um dos maiores temores de Hume era endereçado aos “perigos do dogmatismo e perseguição científico ou religioso”. As declarações fazem parte da entrevista concedida pela pesquisadora por e-mail à IHU On-Line.
Graduada e mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Lívia é doutora em Filosofia pela Catholic University of America e pós-doutora pela University of North Carolina at Chapel Hill e pela Universidade de Nova Iorque. Professora na UFMG, é membro do Comitê Executivo da Hume Society e co-organizadora do seu 40o. Congresso Internacional, que ocorrerá no Brasil, em 2013. Organizou a obra Leituras de Hume (Belo Horizonte: Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2009) e é uma das organizadoras de Filosofia Analítica, Pragmatismo e Ciência (Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a importância e atualidade da filosofia de Hume 300 anos após seu nascimento? Quais são as maiores contribuições de seu pensamento para a ética, a epistemologia e a metafísica?
Lívia Guimarães – Hume é considerado o mais influente filósofo de língua inglesa. Suas contribuições abrangem, além da filosofia, o conjunto das ciências humanas (política, história, economia, demografia, sociologia, psicologia) que, em seu tempo, reunia-se sob o título de “filosofia moral”.
A importância do pensamento de Hume para a filosofia é inestimável. Seja pela formulação inovadora dos problemas filosóficos, seja pela plausibilidade da solução proposta, suas contribuições repercutem até os dias atuais. Hume estabeleceu a distinção entre verdades analíticas e sintéticas. Ele formulou o problema da indução, que é matéria de intenso debate na epistemologia e na metafísica: existem conexões necessárias entre os objetos? Ou seja, existem causas reais? Podemos conhecê-las? Ou as causas reduzem-se a regularidades empíricas? Acusou a existência da falácia naturalista nas teorias morais que não distinguem valores de fatos, enunciados prescritivos de enunciados descritivos. Articulou, em sua abordagem sobre o problema da liberdade, uma solução compatibilista, que procura conciliar liberdade e necessidade, afirmando que as ações livres são causadas por determinações da vontade, e que livres são as ações não coagidas. Na metaética, Hume contribuiu com a teoria segundo a qual juízos morais são expressões de gosto e sentimento emitidas sob um ponto vista geral e desinteressado, constituindo-se, assim, em importante referência para posições não cognitivistas. Embora melhor reconhecido como filósofo da virtude, Hume também inspirou posições consequencialistas e utilitaristas modernas. Finalmente, no Tratado da natureza humana Hume traçou os contornos da psicologia cognitiva, substituindo especulação apriorística pela investigação empírica da mente. E, nos textos posteriores ao Tratado, deu contorno às atuais ciências humanas, tendo sido conhecido, até o século XIX, antes como historiador que como filósofo.
Rejeição ao dogmatismo e superstição
A pergunta sobre a natureza da filosofia é central para Hume. A “nova cena de pensamento” que se lhe descortina em 1729, e que resultará na escrita do Tratado da natureza humana (1739-40), tem uma tradução possível na proposta naturalista de sua filosofia, que pode ser entendida em vários sentidos. Tanto o Tratado quanto a Investigação sobre o entendimento humano (1748) iniciam-se com essa pergunta e se desenvolvem como respostas a ela. No Resumo do tratado, Hume caracteriza sua filosofia como extremamente cética e, na Uma investigação acerca dos princípios da moral (1751), dá-lhe o título de ceticismo mitigado. Este ceticismo rejeita ideais racionalistas de explicação, com seus parâmetros de certeza e de evidência, mas não ameaça a aquisição do conhecimento. Ao contrário, ao refletir a vida comum e rejeitar o dogmatismo e a superstição, ele favorece a “ciência do homem” e chega mesmo a coincidir com ela, visto que as leis dessa ciência unificam os fenômenos sem, contudo, expressarem necessidades metafísicas.
Hume adota um naturalismo metodológico e filosófico, ao defender uma metodologia relacionada à das ciências naturais e buscar explicações livres de princípios sobrenaturais. Com efeito, a ciência da natureza humana, a teoria dos sentimentos morais, a epistemologia empirista e o próprio ceticismo dependem do abandono de pressupostos religiosos e teológicos. Podemos ainda dizer que Hume adota um naturalismo metafísico, se consideramos que, para ele, nada existe senão a natureza, entendida como aquilo que se dá à nossa experiência. Mas, observe, esse não é necessariamente um naturalismo normativo: para Hume, natural nem sempre equivale ao que é bom ou verdadeiro.
Base sentimental
Quanto aos resultados teóricos da “nova cena de pensamento”, talvez a maior contribuição de Hume esteja na intuição de que as paixões estão na origem de todos os nossos juízos e de que a moral, a estética e mesmo o conhecimento possuem uma base sentimental. Hume desenvolve esta intuição numa complexa psicologia das relações entre impressões e ideias, que relaciona a razão às paixões e propõe um novo conceito de sentimento, possuidor de elementos cognitivos e não cognitivos, dotando-o de ampla influência e autoridade. A análise da inferência causal confere ao sentimento um status epistemológico – a conexão necessária entre causa e efeito consiste num sentimento de determinação da mente, que concebe com força e vividez a ideia de um (a) quando tem a impressão do (a) outro (a); e crença diferencia-se de mera ficção por um sentimento, ou maneira de concepção, novamente, que é mais vívida e forte, podendo, desse modo, nos determinar e dispor. O juízo moral expressa um sentimento de aprovação de qualidades de caráter úteis ou agradáveis a seu possuidor ou aos demais (por qualidades desagradáveis ou prejudiciais, sentimos desaprovação). O juízo estético de gosto expressa uma emoção agradável, ao mesmo tempo em que estabelece uma determinação teórica acerca do belo, estabelecendo um padrão compartilhado. Em uma palavra, ceticismo, naturalismo e sentimentalismo talvez resumam as intenções e principais contribuições filosóficas de Hume.
IHU On-Line – Quais são as principais conclusões a que chegou com o acompanhamento da evolução do conceito de simpatia no pensamento de Hume? Como o conceito de simpatia implica na constituição das sociedades humanas, educação moral dos indivíduos e no estudo dos fenômenos históricos e sociais?
Lívia Guimarães – Hume introduz o conceito de simpatia na seção “Do amor à fama”, livro 2, parte 1 do Tratado, ao analisar as paixões do orgulho e humildade. Segundo ele, o orgulho é um sentimento agradável, causado pela boa opinião que temos de nós mesmos, devido a possuirmos ou termos associadas a nós qualidades e objetos de valor. Todavia, adverte que essas causas pouco valem se não são confirmadas por outras pessoas. A razão disso é nossa propensão à simpatia – “a receber por comunicação suas inclinações e sentimentos, por diferentes ou mesmo contrários que sejam aos nossos próprios”. No orgulho e demais paixões indiretas (amor, ódio, humildade e suas variantes), a comunicação de sentimentos intensifica, modera ou até mesmo extingue o prazer e dor originais.
No Tratado, Hume também define simpatia como conversão de uma ideia em impressão pela força da imaginação, que se traduz na força dos princípios de associação de impressões e ideias. Uma paixão ou inclinação de outrem primeiro nos aparece como ideia – seu comportamento é um efeito, que nos conduz à ideia da causa, a paixão. Nossa associação a ele, por contiguidade e semelhança, confere força e vividez a essa ideia, convertendo-a em impressão – ou seja, na própria paixão, que agora passamos a sentir.
Simpatia e moral
Para haver simpatia, é suficiente a mera proximidade de alguém que percebamos como semelhante e, portanto, sujeito a experiências de prazer e dor semelhantes às nossas. Quanto mais forte nossa relação, mais fácil será a transição pela qual a vívida concepção que temos de nós mesmos transmite vividez à ideia da dor ou prazer alheio. A simpatia pode dirigir-se a seres presentes, passados e até mesmo imaginados no futuro. Pode limitar-se à sensação e momento imediatos, ou se estender a todas as circunstâncias de seu objeto, tornando-nos interessados em sua felicidade. Pode resultar em sentimentos contrários: grande dor ou grande simpatia dão origem à benevolência e à compaixão, enquanto um grau pequeno origina desprezo ou ódio.
A simpatia explica a uniformidade de sentimentos e opiniões entre os membros de uma nação. Ela explica mudanças de humor quando estamos em companhia. Nas palavras de Hume: “ódio, ressentimento, estima, amor, coragem, alegria, e melancolia; todas essas paixões sinto mais por comunicação do que pelo meu próprio temperamento e disposição naturais”.
Definida como operação original da mente humana, a simpatia é também condição necessária da moral. O sentimento moral de aprovação depende de uma simpatia isenta das flutuações relacionadas a proximidade e distância. Nós a obtemos ao assumirmos pontos de vista gerais, adotando uma posição imaginativamente próxima de um indivíduo e todos à sua volta, de modo a sentirmos, por simpatia, os efeitos de sua ação sobre eles. O prazer que ele causa induz nossa aprovação, a dor, desaprovação. Portanto, o ponto de vista geral, a partir do qual emitimos juízos morais, resume-se à expansão reflexiva de nosso envolvimento simpático com outros indivíduos humanos (podendo se estender, em nossos dias, a não humanos) e à regulação de nossa tendência à simpatia. É por isso que dizemos que a simpatia nos torna seres morais.
O Tratado investiga a influência da simpatia nas paixões e na moral em grande detalhe e sugere, mas não elabora, uma influência comparável na esfera do conhecimento. Hume alude à simpatia nos casos onde há transmissão de crenças pelo simples contágio das opiniões e sentimentos. Este é um modo não filosófico da crença, em que a força da mera contiguidade toma o lugar de raciocínios e argumentos – seria exemplo de uma experiência não reflexiva de simpatia na cognição. Mas o Tratado pouco faz além de mencioná-lo, e jamais aborda a questão de uma possível influência da simpatia reflexiva sobre as crenças.
A comunicação de crenças por meio da simpatia só se torna, de fato, relevante quando a filosofia de Hume dirige-se mais particularmente às relações humanas em sociedade, cuja base repousa em paixões compartilhadas. Afinal, observando-se que, pela simpatia, somos susceptíveis às emoções de outras pessoas (a simpatia estende nosso interesse para além de nosso círculo imediato; ela é causa da benevolência, compaixão, afabilidade, generosidade e outras virtudes sociais), conclui-se que a simpatia é causa da nossa própria existência em sociedade, ao estabelecer laços afetivos, padrões de convívio e conduta, e experiências e conceitos compartilhados. Ademais, as paixões e as crenças associadas a elas são causas dos acontecimentos históricos e representam poderosos fatores de mudança. Aqui se insinuam os perigos da simpatia não reflexiva – um exemplo são consequências sociais e políticas da superstição e entusiasmo religioso moderno. Evidenciam-se aqui também as vantagens da simpatia reflexiva, que nos torna perceptivos em relação a contextos morais e que favorece o cultivo das virtudes sociais.
Instrumento moral
Um outro sentido em que a simpatia adquire relevância está nos casos em que a simpatia pelos participantes e práticas é necessária para se obter verdadeiro conhecimento acerca dos fatos. A obra História da Inglaterra (1754-62) nos conduz das ações às paixões e qualidades de caráter dos atores. Ela, inclusive, pressupõe que a narrativa de eventos históricos pouco instrui se não ensina sobre a felicidade e miséria dos protagonistas. Mas não podemos julgar, não podemos sequer compreender os fatos sem exercitarmos simpatia. Afinal, para se explicar as ações humanas, é preciso antes perceber as paixões que as motivam. Creio que não exagero ao afirmar que simpatia reflexiva é condição para o conhecimento da totalidade dos fenômenos humanos. Parece-me que nem o Tratado prevê essa cláusula, nem seus intérpretes geralmente a reconhecem, muito embora, de certo modo, ela represente um desdobramento natural do programa filosófico que, no Tratado, trouxe “sentimento” e agora traz “simpatia” para o interior da cognição. (Vale, porém, lembrar que, já no Tratado, a fonte de normatividade mais abrangente – a extensão dos sentimentos – dá-se por associação e transferência imaginativa e deriva, portanto, do conceito de simpatia.)
Por fim, através da simpatia, Hume faz de sua ciência, ou filosofia, um instrumento moral. Ao nos apresentar um grande número de cenas de prazer e dor, ele nos incita ao exercício da imaginação moral, levando-nos a ampliar a esfera de nossa simpatia para muito além do próximo e imediato. Ele excita nossas paixões e nos faz, como ele mesmo diz, sentir a diferença entre virtude e vício. Para Hume, a felicidade associa-se a virtude, conhecimento, indústria, ação, prazer e repouso. Condições que promovem as virtudes sociais, que contribuem para a paz social e para o desenvolvimento das artes e ciências são propícias à felicidade. Apontando-as, ele procura nos predispor favoravelmente a elas. Mais que isso, ele procura regular nossa conduta. Sem precisar ensiná-la ou advogá-la diretamente, Hume promove a virtude pelo cultivo das paixões calmas, combate às violentas e às falsas crenças, em cada leitor de sua obra. Temos aqui, decerto, um Hume diferente daquele que foi criticado por Hutcheson, por não ter sido mais caloroso a favor da virtude no Tratado e que, na ocasião, defendeu-se dizendo não ser esta a tarefa do cientista moral. Mas é este o Hume que me parece se revelar no pervasivo alcance da simpatia.
IHU On-Line – Do que tratam os conceitos de superstição e entusiasmo em Hume?
Lívia Guimarães – Originalmente, para Hume, no ensaio Da superstição e do entusiasmo (1741), ambos designam manifestações religiosas vulgares. A superstição resulta do medo, justificado pelas circunstâncias adversas da vida humana, mas intensificado nos indivíduos com disposição melancólica e exacerbado sob a forma de terror, no caso do crente religioso. Temeroso de catástrofes reais e imaginadas, este dedica-se à prática constante de rituais e sacrifícios a fim de propiciar poderes invisíveis desconhecidos. Hume afirma: “Fraqueza, medo, melancolia, juntamente com ignorância, são, portanto, as verdadeiras fontes da superstição”. O catolicismo vulgar é o caso paradigmático. Já o entusiasmo é característico de uma disposição otimista e confiante, exacerbada em exaltação, que faz crer numa relação privilegiada, inspirada e direta com divindades benéficas. Para Hume: “Esperança, orgulho, presunção, uma imaginação viva, juntamente com ignorância, são, portanto as verdadeiras causas do entusiasmo”. As seitas calvinistas manifestam essa tendência.
Ocorre que, além de seu papel na explicação da credulidade e da religião vulgar, estes são conceitos que Hume emprega também como divisores entre orientações políticas, morais e filosóficas. “Timorosa e abjeta”, a superstição favorece o poder clerical e hierárquico, é contrária à liberdade civil e impõe sujeição aos governados. Pela ação incansável dos seus defensores, o domínio que ela conquista sobre a sociedade culmina em governo tirânico. O entusiasmo inicialmente produz “desordens cruéis”, ao se manifestar com maior violência, mas esta rapidamente se abate. E, como se caracteriza por independência e aversão ao intermédio de sacerdotes, ele propicia maior tolerância política. Tolerância, estabilidade, sujeição e liberdade são problemas nas relações políticas os quais, em Hume, explicam-se pelo uso das categorias da superstição e entusiasmo. Na História, aquela define os conflitos da Inglaterra medieval, e este, os conflitos que resultam na Guerra Civil que depôs Charles I.
Além disso, como observou Knud Haakonssen, estes conceitos indicam dois tipos de orientação teórica na esfera política. Hume associa as teorias de origem aristotélica à superstição, e as teorias contratualistas modernas ao entusiasmo. Ou seja, enquanto aquelas propunham uma teleologia das formas políticas, culminando numa rígida hierarquia, estas enfatizam a livre vontade individual dos contratantes. Desse modo, Hume se apropria, na explicação das teorias e práticas políticas, de sua tipologia das formas religiosas. Essa apropriação acontece relativamente cedo. Suas linhas gerais já se encontram, como disse, delineadas no ensaio intitulado Da superstição e entusiasmo. Na História da Inglaterra, ela se concretiza em definitivo, voltando a se afirmar no Da origem do governo, publicado em 1777.
“Entusiasta sem religião”
Na esfera moral, Hume elabora um sistema geral de oposições, onde os tipos derivados da religião vulgar com frequência representam o oposto dos seus próprios ideais. Na coluna dos vícios, ele inscreve as virtudes monásticas do celibato, jejum, penitência, mortificação, autonegação, humildade, silêncio e solidão, às quais se opõem as virtudes sociáveis do “partido da humanidade” humeano. No Diálogo que acompanha a Investigação sobre os princípios da moral, ainda servindo-se do entusiasmo e superstição, Hume cunha o conceito de “vidas artificiais” – vidas que não seguem os princípios do útil e agradável, por efeito ou de entusiasmo filosófico, ou de superstição religiosa. Os últimos desvalorizam o mundo natural em proveito de uma obscura existência sobrenatural. Mais dignos de pena do que de condenação, eles são vítimas de autoengano, perseguem fins ilusórios e, tendo que reconciliar contradições insolúveis (por exemplo, na concepção de um Deus ao mesmo tempo benevolente e punitivo), têm suas condutas fadadas ao fracasso.
Por fim, Hume utiliza-se destes conceitos para indicar posições filosóficas. Ele denomina entusiasta a filosofia dos cínicos antigos, personificada no feroz Diógenes. Na modernidade, condena a superstição religiosa, por corromper o pensamento de Malebranche, na formulação do ocasionalismo. Ecoando sua advertência, nos Diálogos sobre a religião natural (1779), quanto à contaminação da filosofia pela superstição, numa carta para Edward Gibbon, ele diz: “entre muitos outros sinais de declínio, a prevalência da superstição na Inglaterra prognostica a queda da filosofia e decadência do gosto”. Referindo-se a si próprio, numa carta de juventude para Henry Home, Hume afirma ter excluído do manuscrito original do Tratado certas partes que poderiam parecer ofensivas. Ele procurou assim se precaver contra o entusiasmo filosófico. Em suas palavras: “Eu estava decidido a não ser um entusiasta em filosofia, enquanto denunciava outros entusiasmos”. Ao mesmo tempo, como relata uma anedota presente em várias biografias de Hume, certa vez, entre amigos, ele se descreveu como “um entusiasta sem religião, um filósofo que não espera alcançar a verdade”.
IHU On-Line – Hoje, há um “cisma” entre fé e ciência, tendo Hitchens e Dawkins como alguns de seus maiores expoentes. Em que medida o ceticismo humeano participa da fundamentação desse debate?
Lívia Guimarães – Pode-se seguramente afirmar que Hume contemplou, em sua análise da crença religiosa, a quase totalidade de perspectivas e desdobramentos possíveis no contexto da época. Com respeito à justificação da crença religiosa, ele desafiou as credenciais da revelação (Dos milagres), o argumento pelo desígnio, o argumento cosmológico e, mais difusamente, argumentos fideístas (Diálogos sobre a religião natural e De uma providência particular e de um estado futuro). Na História natural da religião (1757) e, mais brevemente, no Da superstição e entusiasmo, Hume propôs uma explicação psicológica de sua origem nas paixões e circunstâncias humanas. Ainda nesses textos, Hume investigou as consequências da religião para a felicidade individual, o bem-estar social e a estabilidade política. Os efeitos morais, ele abordou de forma geral na segunda Investigação, ao defender que, além de desnecessária, a religião sequer favorece a moral podendo, inclusive, prejudicá-la. Os efeitos da religião sobre a estabilidade, autoridade e liberdade políticas, ele aprofundou no livro História da Inglaterra. Além da jutificação, causas e consequências, morais e cognitivas, individuais e coletivas, da crença, Hume esboçou uma tipologia das religiões (politeísta e monoteísta, vulgar e não vulgar, supersticiosa e entusiástica).
Decerto, Hume foi um cético irreligioso. Mas, o que significa ser cético? A resposta não é fácil. Não existe consenso na tradição de intérpretes sobre as posições de Hume. Um caso ilustrativo seria a questão dos milagres, onde interpretações apontando a existência de um argumento a priori na parte I do ensaio conflitam com as que atribuem a Hume somente um argumento a posteriori. Robert Fogelin e Anthony Flew representaram, nas décadas de 1980 e 1990, os extremos desta controvérsia. Em um ponto ainda mais fundamental, há divergência sobre se a posição assumida por Hume acerca da religião se qualificaria, afinal, como ateísta, teísta, deísta ou fideísta. Ou, ainda, se, segundo ele, a crença religiosa é injustificada e deve ser por isso abandonada ou se, assim como a crença em objetos externos, relações causais, identidade pessoal, e tantas outras, pertence ao grupo das crenças naturais, cuja falta de justificação não implica em abandono. João Paulo Monteiro, Norman Kemp Smith, Stanley Tweyman, J.C.A. Gaskin, Terence Penelhum, Paul Russell, Thomas Holden, são alguns dos autores nesse debate.
Ademais, não creio que se possa afirmar que Hume teve uma única resposta para todas as questões relativas à crença religiosa. Sobre este e outros problemas, sua posição varia entre os textos. Por um lado, a História natural da religião torna insustentável a ideia de um teísmo esclarecido, admitindo, na melhor das hipóteses, uma interminável oscilação entre teísmo não vulgar e vulgar (este último bastante próximo do politeísmo). Por outro, a parte XII dos Diálogos faz o teísmo invulgar parecer perfeitamente sustentável para todas as pessoas reflexivas. Enquanto a História natural favorece a conclusão de que a crença religiosa pode se declarar falsa, os Diálogos, em parte, favorecem uma suspensão cética do juízo acerca de sua validade.
Por vezes, sua resposta parece evoluir com o passar do tempo. O exemplo mais claro está na superstição e entusiasmo. Enquanto o ensaio de 1741 declara que, por favorecer a liberdade e tolerância, o entusiasmo é preferível na política, a História da Inglaterra aponta uma grave ameaça para a sociedade no efeito desestabilizador do entusiasmo. Ao mesmo tempo, a superstição que, no ensaio se alia unicamente à submissão, na História, ao ser transplantada para a Inglaterra pelos normandos, traz, segundo Hume, algumas consequências benéficas, acrescentando refinamento e sofisticação à sociedade saxônica. Hume chega a reconhecer que os sentimentos religiosos são agradáveis, que é possível a ocorrência de milagres e que uma sociedade perfeita reservará um lugar para o clero e para as práticas religiosas.
Dogmatismo e perseguição
As tensões na análise de Hume exibem a condição humana, ela própria constituída por oscilação e instabilidade, e suscitam um problema ao qual Hume acabou por dedicar seus maiores esforços de pensamento: emergindo sobre bases fracas e instáveis, a religião pode se elevar a níveis de fanatismo perigosos, e poderosamente afetar a sociedade e determinar a vontade. Até mesmo em eras ilustradas, apesar do remédio do ceticismo e da reflexão, a fé vulgar segue perturbando os seres humanos. Portanto, como lidar com costume, educação, preconceito, ignorância, e paixão? De onde vem a força da religião? E de onde vem sua fraqueza?
No entanto, a sua é uma pergunta é bastante difícil. Um dos legados de Hume aos dias de hoje consiste no projeto realizado de uma filosofia sem religião. Há, porém, autores cuja proposta vai além disso, ao manter que a filosofia de Hume impossibilita a religião. A favor, não necessariamente da proposta, mas do princípio em que repousa, creio realmente que Hume admita a quase impossibilidade de se manterem tais fronteiras rígidas nas mentes e sociedades humanas.
No início desta entrevista, procurei descrever Hume como um praticante da ciência ou “filosofia moral”. Na introdução do Tratado, ele anuncia o projeto, que também resume sua concepção de filosofia, de estudar as operações e princípios da natureza humana, segundo um método natural de investigação. O método consiste na observação e generalização, sob a forma de leis, das regularidades detectadas em padrões ordenados e estáveis do comportamento humano. Ele pretende, assim, explicar nossa experiência moral, epistêmica, estética e política. No Tratado, isso equivale, primeiro, a mostrar como funciona a mente e, a partir de um certo ponto, como funcionam mentes e seres humanos nas diversas circunstâncias de suas vidas. Portanto, Hume confia na prática científica, desde que qualificada, ou seja, concebida como probabilística, falibilista e revisável. Sua ciência é uma narrativa causal que se interrompe muito antes de se alcançarem causas primeiras ou princípios últimos, que em tudo extrapolam a experiência humana. Hume chega a dizer algo como: “quanto mais cresce nosso saber, mais ainda cresce a consciência de nossa ignorância”.
Ao ler Hume, no momento, eu não aproximaria o estatuto da crença filosófica ao da fé religiosa; não incluiria a crença religiosa no conjunto das crenças naturais (inevitáveis, sem elas, pereceríamos), nem das crenças racionais. Também não vejo em Hume um apologista da verdade da ciência, e do supremo poder do conhecimento. Estudioso da natureza humana, ele me parece serenamente convencido de sua fragilidade e variabilidade no agir, no sentir e no pensar. Se fosse arriscar uma resposta, eu acrescentaria que Hume teme, acima de tudo, as perdas e perigos, da perseguição e do dogmatismo, científico ou religioso.
IHU On-Line – Em que medida o sujeito enquanto um “grande feixe de percepções transitórias”, como propôs Hume, antecipa o surgimento do sujeito “fragmentário” da pós-modernidade?
Lívia Guimarães – Esta é outra pergunta difícil. Para Hume, a mente é um feixe de percepções. Observando que facilmente fazemos a distinção entre sentir e pensar, ele distingue as percepções em duas categorias: impressões e ideias. As impressões (que temos ao ver, ouvir, sentir, amar, odiar, desejar) são fortes e vívidas; são irresistíveis e nos afetam e dispõem involutariamente. Ideias são cópias fracas e esmaecidas das impressões. Hume conclui que as ideias simples são causadas pelas impressões simples, ao notar que se assemelham e são posteriores a estas e que, faltando a impressão original, também falta a ideia correspondente. Mas, enquanto as impressões de sensação (dos órgãos sensórios e prazer e dor) causam as ideias, as próprias ideias causam novas impressões de reflexão (paixões, desejos e emoções). Por sua vez, estas últimas são novamente copiadas em ideias, e assim por diante. Hume relega o estudo das sensações aos anatomistas e escolhe, como ponto de partida do Tratado, ideias das sensações, delas seguindo para as demais percepções.
As ideias na mente não se encontram inteiramente soltas e desconectadas, nem se associam por mero acaso. Hume observa que há qualidades pelas quais uma ideia naturalmente introduz outra e que há uniformidade na maneira como se associam. Os princípios que as guiam, ele os caracteriza como uma “força gentil”, apontada pela natureza, e são: semelhança, contiguidade (no espaço ou tempo), causa e efeito. Definida em sentido amplo, a imaginação é a própria mente – um feixe de percepções unidas por esses princípios. Numa acepção mais restrita, a imaginação distingue-se da memória e da razão, em um contraste que retoma aquele entre ideias e impressões, segundo o critério da força e vividez.
Enquanto a imaginação combina ideias sem preservar a forma e ordem das impressões originais, na memória as ideias associam-se segundo sua ordem original. Essa distinção deve-se, contudo, apenas ao nosso sentimento interno: ideias de memória são sentidas vívida e fortemente, ou seja, nós as sentimos como se não pudessem ser outras. Mas, na imaginação, “uma percepção é fraca e lânguida e somente com dificuldade pode ser preservada firme e uniforme por um tempo considerável”. Num contraste paralelo, uma associação de ideias pode se constituir em mera concepção imaginada, ou em crença, como é o caso da associação por causação, do que força e vividez resultam de experiência regular passada – numa expressão de Hume, de evidência “moral”, baseada na razão provável.
Abordagens pós-modernas
Com o passar do tempo, uma ideia de memória pode se enfraquecer ao ponto de tornar-se praticamente indistinguível de uma ideia de imaginação. E é possível a uma ideia imaginada adquirir vividez quase (ou até) comparável à da memória. Poemas e romances produzem vivas imagens, onde a “natureza se confunde inteiramente”. Isso também ocorre nos sonhos, febre e loucura. Mentirosos acabam por acreditar em suas mentiras. Do mesmo modo, podem atingir a força de crenças ideias que seriam ficções não resultantes de experiência passada uniforme ou, em outras palavras, do princípio de causalidade, mas dos princípios instáveis e triviais da imaginação (semelhança, contiguidade) e do artifício (educação, eloquência).
Este é apenas o ponto de partida de um modelo de mente que vai incluir, além das crenças, as paixões e os sentimentos. Neste modelo, a pergunta sobre a identidade pessoal, ou sobre o “eu”, deverá buscar a impressão da qual se origina a ideia. Não a encontrando, Hume encontra o feixe, que talvez não seja fragmentado ou, melhor dizendo, cuja ênfase ele talvez prefira colocar não na fragmentação, mas nas possibilidades de associação entre as percepções, embora deva-se notar que Hume pensa nas diferenças, talvez fragmentações, pelas quais passa um suposto “mesmo” eu, dadas suas relações e circunstâncias, por exemplo, entre amigos ou estranhos, solitário ou em sociedade, na cidade ou no campo, sob um governo monárquico ou republicano, dotado de poder ou destituído, jovem ou ancião, em diversas épocas e lugares, etc. Enfim, simplesmente por negar substancialidade ao “eu”, Hume já torna possíveis as abordagens pós-modernas. Gostaria de dizer só mais uma palavra nesta entrevista: quando Hume abandona o tradicional problema da substância, ele dirige sua atenção ao problema da causalidade. Isto vai trazer uma alteração radical na orientação de grande parte da metafísica futura. Esta, sem dúvida, é uma de suas grandes contribuições para o nosso tempo.