FECHAR
Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).
Márcia Junges
Desde remotas épocas o riso atraiu a curiosidade dos pensadores. No século XVI, por exemplo, havia a distinção entre o riso “verdadeiro” e “falso”. Para o médico de Montepllier Laurent Joubert, o riso “genuíno” era aquele causado sobre coisas ridículas. Por outro lado, o riso considerado “bastardo” teria como origem causas “mórbidas”, “como ruptura do diafragma, um baço enfermo ou algum desequilíbrio humoral; se não, resulta do consumo excessivo de vinho ou açafrão, ou ainda da ingestão de duas plantas lendárias: gelotophyllis e herba sardonia, a primeira literalmente ‘folhas de riso’”. A explicação é da pesquisadora Vera Cecília Machline, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Ela explica que precisou rever a hipótese inicial de sua pesquisa de doutorado, intitulada François Rabelais e a fisiologia do riso do século XVI: a terapêutica médico-satírica de Gargântua e Pantagruel. Isso porque uma de suas conclusões foi a aversão de vários pensadores quinhentistas a gargalhadas desenfreadas. “Primeiramente, o riso exagerado era contrário aos preceitos médicos vigentes na época, que recomendavam moderação inclusive na alegria. Em segundo lugar, rir desbragadamente afigurava-se característico de camponeses rudes e do zé-povinho e, como tal, impróprio para integrantes da nobreza e da burguesia então nascente”. Outros temas analisados por Vera Machline são o uso de uma terapêutica do riso em hospitais, e o conceito de gelotofobia, ou seja, o medo de ser ridicularizado.
Vera Machline é graduada em Letras pela Faculdade Ibero-Americana de Letras e Ciências Humanas, mestre e doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, onde também cursou pós-doutorado. Atualmente, leciona no Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência, nessa mesma instituição.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que o riso se destaca na história do pensamento?
Vera Machline – O riso é um assunto fascinante porque, embora já se tenha cogitado muito sobre sua natureza, ainda sabemos pouco a respeito. Ademais, rimos pelos mais diversos motivos: não só diante de uma história engraçada ou uma situação incongruente, mas também por conta de ansiedade ou alívio, surpresa ou frustração, raiva ou afeição, timidez ou desejo de esconder pensamentos pessoais – sem falar de cócegas e da ingestão de determinadas substâncias tóxicas.
Aliás, conforme apurei durante meus estudos de doutoramento, tratados sobre a arte da oratória de Cícero (106-43 a.E.C.) e Quintiliano (c. 25-c. 96) revelam que os antigos romanos já sabiam serem múltiplas as causas do riso. Adicionalmente, em virtude da preocupação dos latinos com o decoro a ser observado no uso do riso na retórica, os romanos tinham mais de uma dúzia de termos para distinguir diferentes tipos de gracejos, como, por exemplo, facetiae, sal, urbanitas, iocus, hilaritas, ludo e acutum.
IHU On-Line – Quais são as diferenças entre sátira, comédia e humor?
Vera Machline – No meu entender, a vertente satírica cultivada pelos antigos romanos ainda é um corretivo social; ou seja, um instrumento para censurar atitudes e comportamentos indesejáveis. A rigor um gênero teatral, comédia hoje se aplica até nas surpresas que a vida nos traz. Já humor, que no século XVIII designava o gracejo típico dos ingleses, aos poucos ampliou sua gama denotativa, ao ponto de agora significar qualquer estímulo cognitivo capaz de despertar divertimento ou graça. Em outras palavras, à semelhança de um prodigioso guarda-chuva, humor atualmente abarca toda sorte de modalidades sério-cômicas, jocosas e derrisórias atinentes aos mais variados gêneros retóricos, dramáticos, literários, gráficos e até musicais.
IHU On-Line – Quais as principais conclusões de sua tese de doutorado “François Rabelais e a fisiologia do riso do século XVI: a terapêutica médico-satírica de Gargântua e Pantagruel”?
Vera Machline – Para começar, essa tese – defendida em 1996 junto do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica, da PUC-SP – versa sobre as divertidas crônicas, hoje reunidas sob o título Gargântua e Pantagruel, que imortalizaram o médico humanista François Rabelais (c. 1494-1533). Mais precisamente, enfoca a intenção advogada por Rabelais de “dar por escrito um pouco de alívio” a “aflitos e enfermos”, assim como a pessoas passando por aborrecimentos ligeiros, como alguém da nobreza que perdeu uma caça. Outrossim, sustenta a possibilidade de Rabelais também pretender revigorar com suas brincadeiras satíricas a sociedade de seu tempo.
Cumpre esclarecer ainda que, como resultado da orientação escolhida, em vez de ser um estudo literário, essa tese se pautou nas diretrizes metodológicas mais recentes da História da Ciência. Isto, entre outras consequências, me levou a buscar entender como o riso era considerado na época de Rabelais e a levantar fontes quinhentistas tratando do riso, uma vez que as crônicas de Rabelais adiantam muito pouco sobre o assunto.
Ao fim, cheguei a diversas conclusões, algumas inesperadas. Dentre outras, destaca-se o fato de que o riso atraiu a curiosidade de vários pensadores renascentistas. Um motivo foi o postulado “o riso é o próprio do homem”. Citado em Gargântua e Pantagruel, esse axioma deriva da Isagoge de Porfírio (c. 234-c. 305) às categorias lógicas de Aristóteles (384-322 a.E.C.). Outro fator parece ter sido a então recente “redescoberta” da Poética aristotélica, que traz no Capítulo V uma definição do risível. Mas, por ser reticente e por dizer respeito à Comédia Antiga ateniense, sua compreensão provou-se difícil. Mesmo assim, instigou vários tradutores da Poética a tentarem reconstruir a teoria aristotélica do móvel do riso. Como seria de se esperar, as propostas dificilmente coincidiram, haja vista que, na versão de Eudoro de Souza , a Poética aristotélica define o risível como “apenas certo defeito, torpeza anódina e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a máscara cômica, que, sendo feia e disforme, não tem [expressão de] dor.”
Ao ler escritos do século XVI sobre o riso, surpreendeu-me a distinção de alguns autores entre riso “verdadeiro” e “falso”. Por exemplo, segundo o médico de Montpellier Laurent Joubert (1529-1582), riso “genuíno” é aquele que provém da apreensão de alguma coisa ridícula. Já o riso “bastardo” advém de sortidas causas, em sua maioria mórbidas, como ruptura do diafragma, um baço enfermo ou algum desequilíbrio humoral; se não, resulta do consumo excessivo de vinho ou açafrão, ou ainda da ingestão de duas plantas lendárias: gelotophyllis e herba sardonia. Literalmente “folhas de riso”, a primeira seria um termo de origem grega para o gênero Cannabis, enquanto que a segunda parece dizer respeito à espécie Ranunculus sceleratus Linnaeus.
Riso terapêutico
Falando de antigas lendas em voga no Renascimento, foi uma delas que me permitiu confirmar as intenções satíricas de Rabelais em Gargântua e Pantagruel. Trata-se da fabulosa história que associa grande sabedoria ao riso sistemático – mesmo diante infortúnios – do pré-socrático Demócrito de Abdera (c. 460-c. 370 a.E.C.), hoje melhor lembrado por ter dado continuidade ao atomismo de seu mestre Leucipo (fl. c. 430), doutrina essa que posteriormente retomada por Epicuro (341-270 a.E.C.). A história em questão é narrada num conjunto de 12 cartas anônimas, escritas entre os séculos I a.E.C. e II E.C., sugerindo que o riso de Demócrito era terapêutico por apontar falhas e encaminhar as pessoas em direção à virtude.
Uma conclusão que me obrigou a rever minha hipótese inicial foi a aversão de diversos pensadores quinhentistas a gargalhadas desenfreadas. Com efeito, diferentemente do sustentado por Mikhail Bakhtin (1895-1975) em A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O Contexto de François Rabelais, o riso acumulava mais de uma ressalva entre os intelectuais do século XVI. Primeiramente, o riso exagerado era contrário aos preceitos médicos vigentes na época, que recomendavam moderação inclusive na alegria. Em segundo lugar, rir desbragadamente afigurava-se característico de camponeses rudes e do zé-povinho e, como tal, impróprio para integrantes da nobreza e da burguesia então nascente. Como explica Joubert em seu Traité du ris, quando o riso “é dissoluto ou de longa duração, a garganta se abre ao máximo, enquanto os lábios são repuxados para trás em extremo [...] E, por isso, tornam-se feios, impróprios e lascivos.” Ainda segundo Jourbert, posto o riso excessivo provocar o surgimento de rugas na face e em volta dos olhos, “as jovens são advertidas de evitar rir totalmente e avisadas de que podem envelhecer mais cedo.”
IHU On-Line – Em comparação a hoje, quais são as principais diferenças em relação à forma como o riso era considerado no século de Rabelais e Joubert?
Vera Machline – Atualmente, define-se o riso como uma expressão psicomotora de alegria, prazer ou outros sentimentos nem sempre afins, que se manifesta mediante a contração de músculos faciais, peitorais e abdominais, além de expirações curtas mais ou menos ruidosas e um ligeiro aumento dos batimentos cardíacos.
Para se compreender como o riso era considerado no Quinhentos, é necessário mencionar aqui o abecê de medicina teórica, datando do século XI ou XII, conhecido como Isagoge Joannitti. Esta “Iniciação” ou “Interpretação de Joannitius” foi responsável pela longeva doutrina higiênica, isto é, preventiva – ainda em vigor na primeira metade do século XIX – dos seis conjuntos de agentes “não naturais” que, apesar de exógenos, influíam na saúde. São eles: ares e lugares, movimento e repouso, comida e bebida, sono e vigília, evacuação e repleção, e as “paixões da alma”. As últimas, também chamadas “afetos da mente” e hoje denominadas emoções, eram reputadas reações passivas a acontecimentos externos, capazes de afetar o organismo. Alegria e prazer, por exemplo, dilatariam o coração e aqueceriam o corpo. Inversamente, tristeza ocasionaria – tal como ainda se diz – “coração apertado” e “frio na barriga”.
À luz dos preceitos da Isagoge Joannitti, portanto, o riso assomava uma modalidade de “não natural”. Mais precisamente, era considerado um movimento suscitado por duas ou mais emoções contrárias ou parecidas. Para Laurent Joubert, o riso genuíno seria um misto de tristeza e alegria, resultante da apreensão de algo “feio e impróprio, mas desmerecendo compaixão.” Já no entender do médico Girolamo Fracastoro (c. 1478-1553), o riso verdadeiro proviria de alegria e admiração ou surpresa. E, segundo o médico Girolamo Mercuriale (1530-1606), rir era um “exercício vocorrespiratório”.
IHU On-Line – Como se explica o valor terapêutico do riso na medicina atual?
Vera Machline – Desde as últimas duas décadas do século passado, a visita de palhaços a internados em hospitais vem se tornando uma prática cada vez mais recorrente, não só no exterior como também aqui no Brasil. A explicação para isso, na mídia especializada, não raramente se resume ao chavão “Rir é o melhor remédio”. Nada mais simplista – e equivocado! É verdade que o riso assoma um exercício aeróbico moderado, dado ativar a respiração e a circulação sanguínea, além de liberar endomorfinas. Ocorre que tais palhaços (sejam eles atores profissionais ou voluntários amadores) estão longe de pretenderem levar às gargalhadas pessoas hospitalizadas. No máximo, almejam brincar com elas e distraí-las, ainda que por uns poucos instantes, da dolorida rotina hospitalar. Ademais, como visto acima, nem toda risada é salutar. Com efeito, inaugurados em fins da década de 1960 pelo psiquiatra norte-americano William F. Fry, os estudos acerca dos benefícios do riso geralmente dizem respeito à modalidade suscitada por alegria, júbilo ou contentamento.
Diante dos dados históricos aqui mencionados (e outros mais omitidos por limitações espaciais), não deixa de ser interessante que o riso, particularmente aquele atrelado à alegria, voltou a ser valorizado com o advento (ou melhor, a reinvenção) da medicina psicossomática. Por outro lado, até a alegria, da linha de frente de um arsenal terapêutico muito antigo, passou a mero acessório paramédico, a cargo de grupos de humanização.
IHU On-Line – O humor e o riso têm um caráter rebelde?
Vera Machline – Nem sempre. Comungo com outros especialistas o fato de o humor e o riso também poderem ser usados para reforçar estereótipos, como a “loura burra”. Não faltam exemplos de lugares-comuns repisando preconceitos nos meios de comunicação...
IHU On-Line – O que vem a ser gelotofobia?
Vera Machline – Malgrado suas raízes gregas, gelotofobia é uma palavra recente que designa o medo de sermos ridicularizados – cumpre acrescentar – independentemente de o riso ser amigável ou beirando o vitupério. Meu envolvimento com o assunto deu-se em 2009, quando aceitei participar de uma pesquisa internacional, liderada pelos doutores René T. Proyer e Willibald Ruch, visando reunir dados como sexo, idade, estado civil e grau de gelotofobia. Com a ajuda de minha ex-orientanda Yara Kassab, foi feito um levantamento junto de mais de 200 moradores da cidade de São Paulo. Ao terminarmos de tabular os dados numa panilha Excel, constatei que quem tem menos propensão à gelotofobia são os mais vividos, ou seja, pessoas da assim chamada terceira idade. Concluindo, o riso é como uma “faca de dois gumes”: pode ser subversivo ou conservador, e benéfico ou prejudicial à saúde. Da mesma forma, quando cordial, aproxima as pessoas; mas se escarnecedor, prontamente divide-as em vítimas e algozes.