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Graziela Wolfart
“Para a chamada nova classe média, não podemos oferecer o mesmo cristianismo de serviços, ainda que sejam serviços atualizados ao tempo atual, como é o caso de certos atendimentos excessivamente voltados para os prodígios e os resultados imediatos e individualizados. Precisamos oferecer a possibilidade de efetiva vida comunitária, abrindo espaço, indicando possibilidades e acompanhando em meio às crises e aos avanços”. A conclusão é de Joel Portella, padre, professor na PUC-Rio, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Ele compreende a proposta de aproximar a Igreja Católica da “nova classe média” como “um dos vários esforços da Igreja para acompanhar os novos ritmos do mundo, encarnando-se nas realidades que vão surgindo”.
Joel Portella Amado possui graduação em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e graduação, mestrado e doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde é professor.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual sua opinião sobre a proposta de aproximar a Igreja da “nova classe média brasileira”?
Joel Portella Amado - Eu a compreendo como um dos vários esforços da Igreja para acompanhar os novos ritmos do mundo, encarnando-se nas realidades que vão surgindo. Esta aproximação, por certo, deve ser considerada dentro de um conjunto de atitudes que colocam a Igreja no que se tem chamado de nova evangelização. Não implica distanciamento dos demais setores sociais.
IHU On-Line - Podemos identificar que em locais onde as pessoas ascenderam socialmente diminuiu a presença de evangélicos? Como entender esse processo?
Joel Portella Amado - Não tenho dados concretos para fazer esta afirmação. Estou ainda com os dados do penúltimo Censo e de algumas pesquisas que se seguiram, as quais afirmaram que os bolsões de pobreza em torno das grandes cidades apresentavam-se mais voltados para o pentecostalismo, enquanto áreas com melhor situação econômica permaneciam católicas. Se este fato mudou, preciso aguardar e mesmo agilizar meus estudos em relação aos dados do novo Censo. Creio que a ligação muito direta entre opção religiosa e ascensão socioeconômica é delicada de se fazer. Do modo como está formulada a questão, tende a identificar catolicismo com ascensão social e protestantismo com pobreza, enquanto as relações, em nossos dias, não são tão bicolores assim. A realidade se manifesta de modo mais complexo. Sabemos que o protestantismo não se restringe ao neopentecostalismo e que este se manifesta também nos ambientes católicos. Sabemos que uma das razões para o sucesso do neopentecostalismo é a promessa de resultados imediatos e personalizados, num mundo em que falharam os grandes projetos e as instituições que os poderiam garantir. Este aspecto ajuda a explicar a relação pobreza/neopentecostalismo. Deixa de fora, contudo, certo tipo de neopentecostalismo de classe média e mesmo de classe alta, presente, como lembrei, tanto no catolicismo quanto no protestantismo. A questão, a meu ver, é que o neopentecostalismo não pode ser restrito a este aspecto da solução imediata dos problemas. Ele tem outras vertentes que podem e devem ser estudadas, como, por exemplo, a individualização, o já referido caráter imediato das soluções, a contínua novidade, a emotividade, entre outros. Estes elementos fazem parte de uma dinâmica religiosa que transcende a questão especificamente socioeconômica. Precisam ser considerados nos planejamentos pastorais.
IHU On-Line - Como a relação entre fé e comunidade pode ser importante para a proposta de ampliar a atuação da Igreja na chamada nova classe média?
Joel Portella Amado - A relação entre fé e comunidade é importante não apenas para a chamada nova classe média. Ela faz parte integrante da experiência cristã e, sem ela, não se pode falar plenamente em cristianismo. Trata-se, a meu ver, de um dos grandes desafios para a Igreja Católica em nosso tempo. As estruturas usuais de vida comunitária não têm apresentado muito fôlego para permitir uma efetiva experiência de comunidade. Algumas novas estruturas têm manifestado certa atratividade, mas ainda carecem de melhor inserção na pastoral de conjunto, na missionariedade e no compromisso sociotransformador. É neste sentido que destaco a importância da tendência às redes de comunidades, assumidas desde a Conferência de Santo Domingo (1992) e ratificadas pela Conferência de Aparecida (2007). Estas pequenas comunidades, com relacionamentos diretos, convívio, fraternidade, solidariedade, serviços e ministérios, permitem um salto qualitativo na vivência da experiência cristã, para além de um cristianismo de momentos. Para a chamada nova classe média, não podemos oferecer o mesmo cristianismo de serviços, ainda que sejam serviços atualizados ao tempo atual, como é o caso de certos atendimentos excessivamente voltados para os prodígios e os resultados imediatos e individualizados. Precisamos oferecer a possibilidade de efetiva vida comunitária, abrindo espaço, indicando possibilidades e acompanhamento em meio às crises e aos avanços. Considero muito importante o n. 179 do Documento de Aparecida. Eu o entendo como critério para todas as pequenas comunidades.
IHU On-Line - Como conciliar as marcas históricas da Igreja com o momento social e econômico vivido pelos brasileiros atualmente?
Joel Portella Amado - Com uma forte capacidade de distinguir o que é histórico do que é dado de fé. Esta distinção existe, embora nem sempre seja fácil de encontrar. Quando surgem momentos históricos como o atual, em que as transformações são demasiado profundas a ponto de usarmos a expressão mudança de época, torna-se aguda a questão da distinção entre o que faz parte irrenunciável da Fé Cristã e o que, por outro lado, é expressão cultural desta mesma fé. A atual mudança de época tem uma característica da qual não podemos nos esquecer. Ela aconteceu em um período muito curto. Não se passaram muitas gerações para que as transformações acontecessem. Podemos mesmo dizer que tudo ocorreu dentro do tempo de uma geração. Hoje, temos pessoas que viveram o pré-concílio, atravessaram os tempos de forte compromisso sociotransformador e agora se veem diante dos desafios de um cristianismo vivenciado de modo bem distinto. Três concretizações da fé em muito pouco tempo. Dentre estas condições irrenunciáveis ao cristianismo, sabemos que a sensibilidade aos pobres, aos excluídos, é parte integrante da fé e não apenas expressão cultural. A Conferência de Aparecida assim o confirmou, destacando que a opção preferencial pelos pobres faz parte integrante daquele que se fez pobre por nós, para nos enriquecer com sua pobreza. O que pode ocorrer é a recompreensão desta opção na hora de concretizá-la. Este é um desafio aberto à história e à vida das comunidades.
IHU On-Line - Como a questão do consumismo, marca da chamada nova classe média, se relaciona com a dimensão comunitária essencial à vivência da fé?
Joel Portella Amado - Em princípio, como dois pontos não conciliáveis. O consumismo, com todos os demais “ismos” a ele ligados, fere diretamente a experiência cristã, atingindo o ser humano naquilo que ela tem de mais sublime: a articulação entre o encontro com Deus e o encontro com o irmão. O consumismo, bem sabemos, substitui a relação com o outro pela relação com os bens, no sentido de satisfazer o próprio eu. O encontro com o irmão só ocorre quando efetivamente acontecem alteridade e gratuidade e estas só podem ser experimentadas quando, de fato, acontece vida comunitária. Conheço algumas experiências de comunidade em classe média, onde exatamente a vida de comunidade se tornou fonte de “recompreensão” da vida global, com forte crítica ao consumismo. Em um dos casos, chamou bastante minha atenção a preocupação quanto a educar os filhos para um mundo que não seja consumista. Os resultados, até o momento, têm sido interessantes. Os pais reconfiguraram as opções de trabalho, fazendo-se mais presentes junto aos filhos. As famílias têm o compromisso de participar em projetos assistenciais e ecológicos. Neste momento, estas famílias se aproximam de um período de teste para esta opção, pois os filhos estão ingressando na adolescência e vão sofrer a pressão do consumismo. O futuro haverá de nos mostrar os resultados.
IHU On-Line - Como a chamada nova classe média pode viver hoje a espiritualidade cristã?
Joel Portella Amado - A espiritualidade cristã é sempre marcada por alteridade e gratuidade. Podem diversificar as concretizações histórico-culturais. Permanecem, contudo, estas duas características como indispensáveis. Sem o reconhecimento do outro como efetivamente outro, capaz de me interpelar e me fazer rever meus rumos, não posso dizer que realmente me encontro no caminho do Deus revelado por Jesus Cristo. Se este Deus é um contínuo mostrar-se e esconder-se, de modo a não ser dominado nem manipulado, mas estabelecer relacionamento, não há como pensar em qualquer tipo de espiritualidade, seja para quem for, se não houver esta capacidade de se abrir ao outro e se abrir de modo o mais gratuito possível. Neste sentido, penso que um bom caminho espiritual para as chamadas novas classes médias passa não apenas por relações fraternas entre os membros das comunidades, mas também pelo contato muito direto com os crucificados da terra e, pensando ecologicamente, com a Terra crucificada. Os cristãos, diz S. Paulo, seguem a Cristo e Cristo Crucificado, loucura e escândalo. Seguir a Cristo Crucificado implica necessariamente sensibilidade para com os crucificados. É, portanto, impossível viver uma espiritualidade fecunda sem abertura aos pobres e sofredores. Repito que pode variar o tipo de sofrimento e o modo ele é enfrentado. Não pode, todavia, carecer de solidariedade.
IHU On-Line - Considerando a recente ascensão econômica do extrato social brasileiro em questão, o senhor vislumbra que cenário religioso?
Joel Portella Amado - Eu vejo o cenário religioso brasileiro como desafiador. Digo isto não apenas por causa da ascensão econômica que deu origem a esta conversa e que fará repensar muitas formas de compreensão do Evangelho. Refiro-me também a diversos outros aspectos que estão interagindo com esta realidade. A mencionada mudança de época deslocou uma série de fatores que, até não muito tempo, permitiam a transmissão e a vivência da fé. Pensemos, por exemplo, na instituição familiar, com todas as transformações pelas quais tem passado. Pensemos no ecumenismo e no diálogo inter-religioso. Pensemos na incapacidade de determinadas estruturas pastorais não mais corresponderem às expectativas das pessoas. Imaginemos os novos sentidos para o protagonismo do laicato e mesmo a concretização da identidade dos ministros ordenados. Em cada um destes itens, poderíamos permanecer longo tempo refletindo. No momento, porém, importa reconhecer que o cenário é complexo, que as certezas estão débeis e que um novo momento histórico deve ser buscado e construído. Às religiões cabe o importante papel de contribuir para que este novo seja um salto qualitativo diante do que experimentamos com a época histórica que talvez esteja indo embora. Digo isto porque, se as religiões se mantiverem numa perspectiva de aguda modernidade, ou seja, afirmando-se individualmente, o cenário religioso será de competição e concorrência por clientela. Se, ao invés, encontrarem, ainda que gradativamente, espaço para o diálogo e o convívio fraterno, em busca do bem comum, a contribuição poderá ser grande.
IHU On-Line - Que caminhos religiosos o senhor acredita que devem tomar os brasileiros movidos pela sede do consumo? Que maneiras de buscar o sagrado eles podem optar e como a Igreja Católica deve agir nesse sentido?
Joel Portella Amado - Por certo, afastar-se deste caminho consumista. O problema é que só largamos algo quando temos outro maior. Em nossos dias, o consumismo é a forma concreta, palpável, das metas e ideais que marcam a vida de boa parcela de nossa gente. A descrença diante de metas no médio e longo prazo, a tão falada crise das utopias, este processo, enfim, acabou por imanentizar por demais os sonhos e as causas. Tudo tende a acontecer dentro da história, em um prazo que não pode ultrapassar o aqui e o agora. Consequentemente, o único caminho para interpelar esta realidade é o da experiência concreta de fraternidade e de solidariedade, já mencionados nas questões anteriores. A fraternidade deve ser experimentada através da vida comunitária e a solidariedade, através do compromisso com os sofridos. A vida em comunidade implica possibilitar e acompanhar o fortalecimento da rede de pequenas comunidades. A solidariedade implica não deixar que os excluídos permaneçam como tal. Implica trazê-los aos primeiros lugares da agenda pastoral, com ações bem concretas. Pode ocorrer que tanto no aspecto da fraternidade quanto – mais ainda – no da solidariedade, seja necessário dar passos que alguns considerariam como retrocesso. Não penso, contudo, que seja retrocesso. É muito mais concretização atual dos valores eternos do Evangelho.
IHU On-Line - Como a Igreja Católica pretende convencer seus fiéis de que o dinheiro não é importante se ela ostenta tanta riqueza?
Joel Portella Amado - Só existe um caminho para o convencimento, seja ele em que esfera for. Trata-se do testemunho. Foi por isso que eu me referi, na questão anterior, a trazer a solidariedade para os primeiros lugares da agenda pastoral. O testemunho sempre fez parte da experiência cristã. Nestes tempos em que muito se fala, mas pouco se diz, nestes tempos de crise dos grandes sentidos e discursos, o testemunho adquire um papel ainda mais importante. Assim como as pessoas tendem a se mobilizar em torno de uma pessoa famosa, de um artista, tendem igualmente a se sensibilizar diante da dinâmica testemunhal, que é tanto individual quanto comunitária. No campo individual, o testemunho se destaca porque estamos passando por um momento histórico de forte individualização. As instituições não são capazes de neutralizar ou se sobrepor aos atos individuais. Assim, o bem ou o mal que um cristão ou uma cristã vier a fazer terá a força de confirmar ou não sua opção pelo Reino de Deus. O importante é reconhecer que também as instituições, mesmo estando num período de baixa cotação enquanto instituições, também são chamadas a dar o mesmo testemunho, assumindo, em suas opções, a simplicidade, o despojamento, o espírito de serviço e o diálogo com o diferente, entre outros aspectos.
Com relação à velha questão da riqueza da Igreja, convém avaliar do que estaríamos efetivamente falando. É provável que a fala esteja se referindo a determinados bens culturais que fazem parte do patrimônio da humanidade e que estão sob os cuidados da Igreja. É possível que esteja também se referindo a testemunhos que, de fato, precisariam ser revistos. Seja qual for o caso, penso que é importante olhar também para diversas situações em que a Igreja não ostenta riqueza. Conheço boa parte da Igreja do Brasil. Tenho partilhado da simplicidade e da solidariedade de tantos católicos, que aprendi a não me preocupar tanto com o outro lado da moeda. Preocupo-me, por certo, com a presença transconfessional de um certo tipo de pensamento da prosperidade que relaciona sucesso, especialmente financeiro, com a ação de Deus. Nestes casos, de fato, só mesmo o que Jesus mencionou em Mc 9,29.