Edição 364 | 06 Junho 2011

A fabricação da anormalidade

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Márcia Junges



Instituições de sequestro

A atualidade do texto é inquestionável. Sua leitura, em primeiro lugar, é um mergulho profundo na história da relação, ainda tão atual, que mantemos cotidianamente com nossa loucura. Em segundo lugar é um mergulho sistemático com a história de nossas instituições, ainda tão atuais, como os hospitais, os asilos, os manicômios, etc., que, 15 anos mais tarde, em Vigiar e Punir Foucault irá chamar de instituições de sequestro. O livro é, também, uma excelente viagem no universo da história da psiquiatria. Ele mostra que muitas das crenças da objetividade, universalidade, neutralidade dessa área do saber estão fundados sobre crenças morais, princípios políticos, interesses econômicos, em nível muito mais profundo do que nossa ingenuidade positivista gostaria de admitir. Além disso, o livro é uma provocante reflexão acerca de nossa condição de homens da Modernidade, sempre tão crentes em nossa natural superioridade. O livro nos provoca a pensarmos seriamente acerca do que são, para nós, a razão, a verdade, a lucidez.

IHU On-Line - Tendo em vista História da loucura, quais são os nexos de proximidade em Focault e Paulo Freire , pensando na questão dos excluídos e oprimidos?

Celso Kraemer - O livro de Foucault não tem como foco o problema da pobreza e da exclusão. Conforme já apontado, seu foco é relativo à história, mais precisamente, a maneira como o homem, ao longo da história, é produtor da verdade e das normalidades sociais, políticas, morais, econômicas. O livro de Foucault é um trabalho extremamente crítico. Quando se refere aos pobres, seu interesse é diferente do interesse de Paulo Freire. Freire está interessado em identificar, a partir do método crítico do marxismo, a condição histórica e sociológica da produção da pobreza e do estatuto ontológico e antropológico do pobre em nossas sociedades capitalistas. Foucault quer entender de que maneira os pobres despertaram interesse na sociedade, o modo como foram, por um certo tempo, associados, igualados ao estatuto dos loucos, no século XVII, e por quais razões, depois, foram novamente separados, diferenciados dos loucos. Quer saber o que esse movimento com relação aos pobres, vagabundos, esfarrapados, portadores de doença venérea, etc., pode revelar sobre o modo como se produziu a verdade sobre a loucura, de que modo esse movimento pode estar ou não associado ao surgimento da psiquiatria como área de ciência e a criação da noção de doença mental.
O tema dos excluídos e dos oprimidos tem sentido diferente entre esses autores, quando se toma o teor do livro A história da loucura. Isso não quer dizer que ambos não se aproximem mais quando se toma o texto de Vigiar e Punir e se o compara com Pedagogia do oprimido, de Freire. Nesse caso, ao que meus estudos apontam até esse momento, pode-se encontrar alguns nexos, em conceitos como disciplina, por exemplo, que ainda não estava constituído por Foucault em 1961, também o conceito de resistência, de maquinaria escolar, etc. Esses conceitos encontram proximidades com conceitos como educação bancária, docilidade, alienação, etc., em Freire.

IHU On-Line - Há uma crítica reiterada que aponta os pobres como “portadores” da loucura, enquanto que os ricos acometidos por algum sintoma de doença mental são taxados como excêntricos, por exemplo. Há um nexo que une loucura e pobreza enquanto estigmas socialmente definidos e pré-estabelecidos?

Celso Kraemer - Creio que, em nossa sociedade, estão completamente diferenciados os conceitos de pobreza e de loucura. A loucura significa para nós, em termos econômicos, um custo, uma despesa, gasto, improdutividade e, em termos sociológicos, um fardo. Já a pobreza é produtiva, fonte de mão de obra barata, fácil de ser treinada para o trabalho, fácil de ser usada e manipulada. Já para os pesquisadores de psicologia ou, principalmente, de psiquiatria, a loucura é fonte rica de investigação, produção do verdadeiro, enquanto a pobreza, por si mesma, enquanto fenômeno social, não desperta tanto interesse. Já com os sociólogos se passa o contrário. A única ligação que eu poderia ver entre pobreza e loucura, em nossas modernas sociedades, é o fato de ambos serem indesejados. Além disso, o destino de alguém tido como louco, sendo pobre, sofre uma dupla exclusão, enquanto que, se for louco, pode até gozar de algum privilégio.

IHU On-Line - A normalidade é um tipo especial de loucura? Por quê?

Celso Kraemer - Talvez a loucura seja um tipo especial de normalidade. É difícil estabelecer um referente neutro a partir do qual se possa avaliar o outro termo. Mas seguramente, disso não tenho dúvida, normalidade e loucura estão internamente amarrados um ao outro, um brota e se alimenta do outro.

IHU On-Line - Em que medida a transgressão, a fuga aos padrões comportamentais era compreendida e apontada como loucura? Esse quadro perdura hoje?

Celso Kraemer - No século XVII, na Europa, a transgressão, a fuga a certos padrões, como a dilapidação dos bens da família, foi, por longo tempo, motivo para internamento, exclusão social, junto com outros fenômenos de delírio, desrazão. Com o avanço das pesquisas, essa conduta de internação, mas também, e principalmente, por razões de ordem econômica e política, essa tendência de internação havia recuado significativamente. O que nós estamos vivendo, experienciando, é um fenômeno bastante novo. Não se interna mais, não se faz propriamente clínica. Ao contrário, medica-se. A medicalização (entupir de remédios) da infância, da adolescência, da juventude, de pessoas adultas, é algo assustador. No Brasil, os índices de pessoas ingerindo medicação com princípios psicoativos, com ou sem receita médica, é alarmante. Por outro lado, o número de médicos, muito longe da especialidade da psiquiatria, que receita esse tipo de medicação, também é alarmante. Valeria a pena tentarmos entender, em termos antropológicos, mas também políticos e econômicos, esse acontecimento em que estamos metidos.

IHU On-Line - Até que ponto nossa sociedade continua fabricando a loucura e outras formas de exclusão?

Celso Kraemer - Conforme já mencionado, a sociedade moderna, na qual nós vivemos, constitui-se a partir de padrões de normalidade e de processos políticos e educacionais de normalização. Dessa forma, para sustentar o referente da normalidade, nós precisamos fabricar a anormalidade, os intoleráveis em cada momento histórico, para servir de mecanismo regulador para nossos exercícios de poder. Assim, o importante não é perguntar se produzimos exclusões, mas buscar saber quais são os mecanismos de exclusão que regulam nossa normalidade nesse momento.

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