Edição 360 | 09 Mai 2011

“Eficiência e justiça não bastam para assegurar a felicidade”: o valor do princípio do dom na economia

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Moisés Sbardelotto

IHU On-Line – Por outro lado, como entender o “bem comum” a partir do ensino social da Igreja? Como uma economia baseada em princípios cristãos pode fomentá-lo e construí-lo?

Stefano Zamagni –


Religiosidade e economia

Coloca-se a questão: por que no último quarto de século a perspectiva do discurso do bem comum – segundo a formulação dada a ela pela Doutrina Social da Igreja, depois de pelo menos um par de séculos durante os quais ela havia de fato saído de cena – está hoje reemergindo como se fosse um rio subterrâneo? Por que a passagem dos mercados nacionais para o mercado global, consumada no decorrer do último quarto de século, está tornando novamente atual o discurso sobre o bem comum? Observo, de passagem, que o que acontece faz parte de um movimento mais vasto de ideias sobre economia, um movimento cujo objeto é a ligação entre religiosidade e performance econômica. A partir da consideração de que as crenças religiosas são de importância decisiva para forjar os mapas cognitivos dos sujeitos e para plasmar as normas sociais de comportamento, esse movimento de ideias busca indagar o quanto a prevalência em um determinado país (ou território) de uma certa matriz religiosa influencia a formação de categorias de pensamento econômico, os programas sociais, a política escolar e assim por diante. Depois de um longo período de tempo, durante o qual a célebre tese da secularização parecia ter dito a palavra final sobre a questão religiosa, ao menos no que concerne ao campo econômico, o que está acontecendo hoje soa verdadeiramente paradoxal.

Não é assim difícil explicar o retorno ao debate cultural contemporâneo da perspectiva do bem comum, verdadeiro sinal da ética católica no âmbito socioeconômico. Como João Paulo II  em muitas ocasiões esclareceu, a Doutrina Social da Igreja não deve ser considerada como uma teoria ética ulterior com relação às tantas já disponíveis na literatura, mas sim como uma “gramática comum” a elas, porque fundada sobre um ponto de vista específico, o de cuidar do bem humano. Na verdade, embora as diversas teorias éticas ponham o seu fundamento quer na pesquisa de regras (como acontece no jusnaturalismo positivista, segundo o qual a ética deriva da norma jurídica), quer no agir (pense-se no neocontratualismo rawlsiano ou no neoutilitarismo), a Doutrina Social da Igreja acolhe como seu ponto arquimediano o “estar com”. O sentido da ética do bem comum é que, para poder compreender a ação humana, devemos nos pôr na perspectiva da pessoa que age – cf. Veritatis Splendor , 78 – e não na perspectiva da terceira pessoa (como faz o jusnaturalismo), ou seja, do espectador imparcial (como Adam Smith havia sugerido). De fato, o bem moral, sendo uma realidade prática, é conhecido primeiramente não por quem o teoriza, mas sim por quem o pratica: é ele que sabe localizá-lo e, portanto, escolhê-lo com certeza todas as vezes que estiver em discussão.


IHU On-Line – Como podemos entender o significado de “propriedade”, explicitado na Mater et Magistra, dentro da atual conjuntura socioeconômica?

Stefano Zamagni –
Três são as formas principais de propriedade: privada, pública, comum. A Mater et Magistra nos convida a considerar a relevância da propriedade comum nas nossas sociedades. É um erro grave pensar que a propriedade, senão for privada, deve ser pública (isto é, estatal). Grupos de cidadãos podem se associar para administrar juntos: commons (ar, água, energia, solo) com formas de negócio como as cooperativas comunitárias, fundações de comunidade etc. Em muitos casos, não somente a propriedade comum assegura resultados de eficiência mais elevada, mas também cria coesão social, reforçando os laços interpessoais. Particularmente, a difusão da cultura do dom e a prática de experiências tais como a da economia de comunhão são facilitadas se o ordenamento constitucional do país prevê a propriedade comum.


IHU On-Line – Na Mater et Magistra, especialmente em um período pós-Guerras Mundiais e pré-Guerra Fria, João XXIII se preocupava com as grandes questões da humanidade e pensava na necessidade de um órgão supranacional para gerir essas demandas. Isso foi retomado por Bento XVI em Caritas in Veritate. Como o senhor analisa essa questão?

Stefano Zamagni –
Um tema de extraordinária atualidade que, na Caritas in Veritate, é tratado com particular força é o que diz respeito ao vínculo entre a paz e o desenvolvimento integralmente humano. Um tema que a Populorum Progressio de Paulo VI popularizou com a célebre frase: “O desenvolvimento é o novo nome da paz”. Pois bem, plenamente alinhado com tal posição, Bento XVI sistematiza um pensamento, que sintetizo nos seguintes termos: a) a paz é possível, porque a guerra é um evento e não um estado de coisas. A guerra é, portanto, uma emergência transitória, por mais longa que possa ser, não é uma condição permanente da sociedade humana; b) a paz, porém, deve ser construída, porque não é algo espontâneo, dado que é fruto de obras que visam criar instituições de paz; c) na atual fase histórica, as instituições de paz mais urgentes são as que têm a ver com a problemática do desenvolvimento humano.

Quais são as instituições de paz que merecem hoje prioridade absoluta? Para esboçar uma resposta, convém fixar a atenção sobre alguns fatos estilizados que conotam a nossa época. O primeiro concerne ao escândalo da fome. É sabido que a fome não é uma trágica novidade destes tempos; mas o que a torna hoje escandalosa e, portanto, intolerável é fato de ela não ser uma consequência de uma “production failure” em nível global, isto é, de uma incapacidade do sistema produtivo para assegurar alimentos para todos. Não é, portanto, a escassez dos recursos, em nível global, que causa fome e privações diversas. É, ao invés, uma “institutional failure”, ou seja, a falta de instituições adequadas, econômicas e jurídicas, o principal fator responsável por isso.

Considerem-se os seguintes eventos. O extraordinário aumento da interdependência econômica, que ocorreu ao longo do último quarto de século, implica em que amplos segmentos da população possam ser negativamente influenciados, em suas condições de vida, por eventos que ocorrem em lugares também bastante distantes e a respeito dos quais não têm nenhum poder de intervenção. Acontece assim que, às bem conhecidas “carestias de depressão”, sejam acrescentadas hoje as “carestias do boom”, como Amartya Sen  amplamente documentou. Não somente isso, mas também a expansão da área do mercado – um fenômeno que em si é positivo – significa que a capacidade de um grupo social de ter acesso aos alimentos depende, de modo essencial, das decisões de outros grupos sociais. Por exemplo, o preço de um bem primário (café, cacau etc.), que constitui a principal fonte de renda para uma determinada comunidade, pode depender daquilo que acontece com o preço de outros produtos, e isso independentemente de uma modificação nas condições de produção do primeiro bem.

Um segundo fato configurado refere-se à natureza modificada do comércio e da concorrência entre países ricos e pobres. No decorrer dos últimos 20 anos, a taxa de crescimento dos países mais pobres foi mais alta do que a dos países ricos: cerca de 4% contra aproximadamente 1,7% ao ano no período de 1980 a 2000. Trata-se de um fato absolutamente novo, já que nunca antes havia acontecido que os países pobres crescessem mais rapidamente do que os ricos. Isso vale para explicar porque, no mesmo período, tenha se registrado o primeiro declínio da história do número de pessoas pobres em termos absolutos (ou seja, aqueles que, em média, têm à disposição menos de um dólar por dia, levando-se em consideração a paridade do poder de compra). Prestando a devida atenção ao aumento dos níveis de população, pode-se dizer que a taxa dos pobres absolutos do mundo passou de 62% em 1978 a 29% em 1998. (É natural que tal resultado notável não foi registrado de modo uniforme nas várias regiões do mundo. Por exemplo, na África subsaariana, o número de pobres absolutos passou de 217 milhões em 1987 para 301 milhões em 1998). Ao mesmo tempo, todavia, a pobreza relativa, isto é, a desigualdade – assim como é medida pelo coeficiente de Gini ou pelo índice de Theil – aumentou dramaticamente de 1980 até hoje. É sabido que o índice de desigualdade total é dado pela soma de dois componentes: a desigualdade entre países e a no interior de um único país. Como conclusão do importante trabalho de Peter H. Lindert  e de Jeffrey G. Williamson , Does Globalization Make the World More Unequal? (Chicago, 2003), grande parte do aumento da desigualdade total é atribuível ao aumento do segundo componente, seja nos países densamente populosos (China, Índia e Brasil) que registraram elevadas taxas de crescimento, seja nos países do Ocidente avançado. Isso significa que os efeitos redistributivos da globalização não são unívocos: nem sempre o rico ganha (seja país ou grupo social), nem sempre o pobre perde.

Um terceiro fato configurado: a relação entre o estado nutricional das pessoas e a sua capacidade de trabalho influencia tanto o modo como o alimento é distribuído entre os membros da família – de modo especial, entre homens e mulheres –, quanto o modo como funciona o mercado de trabalho. Os pobres possuem somente um potencial de trabalho: para transformá-los em força de trabalho efetiva, a pessoa necessita de nutrição adequada. Pois bem, se não são adequadamente ajudados, os subnutridos não são capazes de satisfazer essa condição em uma economia de livre mercado. A razão é simples: a qualidade do trabalho que o pobre tem condições de oferecer ao mercado do trabalho é insuficiente para “exigir” o alimento do qual precisa para viver de modo decente. Como a moderna ciência da nutrição demonstrou, de 60% a 75% da energia que uma pessoa extrai do alimento são utilizados para manter o corpo vivo; somente a parte restante pode ser usada para o trabalho ou para outras atividades. Eis porque nas sociedades pobres podem ser criadas perfeitas “armadilhas de pobreza”, destinadas a durar até por longos períodos de tempo.


Fracasso institucional e o escândalo da fome

O que é pior é que uma economia pode continuar a alimentar armadilhas de pobreza até mesmo se sua renda cresce em nível agregado. Por exemplo, pode acontecer – como em realidade acontece – que o desenvolvimento econômico, medido em termos de PIB per capita, encoraje os agricultores a transferir o uso de suas terras da produção de cereais à produção de carne, mediante um aumento das criações, já que as margens de ganho da segunda são superiores às obteníveis com a primeira. Entretanto, o consequente aumento do preço dos cereais irá piorar os níveis nutricionais das faixas pobres de população, às quais não é permitido o acesso ao consumo de carne. O ponto a enfatizar é que um incremento no número de indivíduos de baixa renda pode aumentar a subnutrição entre os mais pobres por causa de uma mudança na composição da demanda dos bens finais. Observe-se, enfim, que a ligação entre status nutricional e produtividade do trabalho pode ser “dinástica”: uma vez que uma família ou um grupo social tenha caído na armadilha da pobreza, é muito difícil para os descendentes sair dela, mesmo que a economia cresça como um todo.

Que conclusões se tira de tudo isso? Que o reconhecimento de um nexo forte entre as “institutional failures”, de um lado, e o escândalo da fome e o aumento das desigualdades globais, de outro, recorda-nos que as instituições não são – assim como os recursos naturais – um dom da natureza, mas sim regras do jogo econômico que são definidas em sede política. Se a fome dependesse – como foi o caso até o início do século XX – de uma situação de escassez absoluta dos recursos, não haveria outra coisa a fazer do que pedir a compaixão fraterna, ou seja, a solidariedade.

Saber, no entanto, que ela depende de regras, isto é, das instituições, em parte obsoletas e em parte equivocadas, não pode deixar de nos levar a intervir nos mecanismos e nos procedimentos por força dos quais essas regras são fixadas e se tornaram exequíveis. A urgência de proceder nesse sentido nos é sugerida também pelo seguinte trecho de Norberto Bobbio , que ilustra, com rara eficácia, o nexo entre liberdade, igualdade e luta para adquirir posições de domínio: “Na história humana, as lutas pela superioridade se alternam com as lutas pela igualdade. E é natural que ocorra essa alternância, porque a luta pela superioridade pressupõe dois indivíduos ou grupos que tenham alcançado entre si uma certa igualdade. A luta pela igualdade precede frequentemente à luta pela superioridade… Antes de chegar ao ponto de lutar pelo domínio, cada grupo social deve conquistar um certo nível de paridade com seus próprios rivais” (BOBBIO, N. Destra e Sinistra. Roma: Donzelli, 1999. p.164).

Não há quem não veja a dificuldade que a realização de intervenções institucionais tais como essas colocam. É por isso que a Caritas in Veritate fala da urgência de dar vida a uma autoridade política global, que, porém, há de ser de tipo subsidiário e poliárquico. Isso implica, de um lado, na recusa de dar vida a um tipo de superestado, e, de outro, a vontade de atualizar de modo radical o trabalho desenvolvido em 1944, em Bretton Woods, quando foi projetada a nova ordem econômica internacional ao término de um longo período de guerras.


IHU On-Line – O senhor colaborou com Bento XVI na confecção da Caritas in Veritate, de Bento XVI, tão citada até aqui, tendo sido um de seus principais mentores. Que avaliação o senhor faz do ensino social da Igreja perante os desafios sociais e econômicos da contemporaneidade?

Stefano Zamagni –
A novidade da Caritas in Veritate é a de levar ao máximo cumprimento os princípios das Doutrinas Sociais da Igreja contidas na Mater et Magistra e na Populorum Progressio à luz dos problemas da nova fase histórica que começou há cerca de 30 anos. Pode-se dizer que a Caritas in Veritate é a primeira encíclica social da pós-modernidade. Em particular a grande novidade da Caritas in Veritate é a afirmação de que o princípio de fraternidade deve encontrar espaço de aplicação na vida econômica habitual. Isso não aparece na Mater et Magistra.

Albert Camus  escreveu em Núpcias, o Verão: “Se há um pecado contra a vida, é talvez não tanto de se desesperar por causa dela, mas sim de esperar em uma outra vida e de se isentar da implacável grandeza desta”. Camus não era crente, mas nos ensina uma verdade: não se deve pecar contra a vida presente desqualificando-a, humilhando-a. Não se deve, por isso, deslocar o baricentro da nossa fé para o além, a ponto de tornar insignificante o presente: pecaremos conta a Encarnação.

Trata-se de uma opção antiga que remonta aos Padres da Igreja que chamavam a Encarnação de um Sacrum Commercium, para sublinhar a relação de reciprocidade profunda entre o humano e o divino e, sobretudo, para sublinhar que o Deus Cristão é um Deus de homens que vivem na história, e que se interessa, ou melhor, que se comove pela sua condição humana. Amar a existência é, então, um ato de fé e não somente de prazer pessoal. O que leva à esperança, que não se preocupa somente com o futuro, mas também com o presente, porque precisamos saber que as nossas obras, mais do que um destino, têm um significado e um valor também aqui e agora.

O século XV foi o século do primeiro humanismo, um acontecimento tipicamente europeu. O século XXI, já desde seu início, exprime, com força, a exigência de aportar em um novo humanismo. Naquele momento, foi a transição do feudalismo para a Modernidade o fator decisivo a impulsionar naquela direção. Hoje, é uma passagem de época igualmente radical – a da sociedade industrial à pós-industrial, ou seja, da modernidade para a pós-modernidade – que nos faz entrever a urgência de um novo humanismo.

Globalização, financeirização da economia, novas tecnologias, questão migratória, aumento das desigualdades sociais, conflitos identitários, questão ambiental, dívida internacional são somente algumas das palavras que falam do atual “mal-estar na civilização” – para evocar o título de um célebre ensaio de S. Freud . Perante os novos desafios, a mera atualização das velhas categorias de pensamento ou o simples recurso a técnicas mesmo que sofisticadas de decisão coletiva não servem à necessidade. É necessário ousar caminhos diferentes: é esse, substancialmente, o convite sincero que a Caritas in Veritate nos dirige.

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