Edição 360 | 09 Mai 2011

“A Mater et Magistra deu vigoroso impulso à linha do compromisso social”

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Moisés Sbardelotto

IHU On-Line – Como a encíclica foi recebida também por parte da Igreja latino-americana e brasileira? Houve algum tipo de aprofundamento regional das questões evocadas no texto papal por parte da Igreja junto aos governos?

José Oscar Beozzo –


IHU On-Line – Que avaliação o senhor faz do atual ensino social da Igreja até chegarmos à recente encíclica Caritas in Veritate , de Bento XVI? Que aspectos foram corrigidos, aprofundados e ultrapassados desde então? E quais outras questões ainda merecem uma atenção maior, diante dos desafios da contemporaneidade?

José Oscar Beozzo –
A 7 de julho de 2009, Bento XVI publicou, com quase dois anos de atraso em relação à data prevista, sua encíclica social sobre o “desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade”. Esta propunha comemorar os 40 anos da Populorum Progressio (1967-2007), e ao mesmo tempo retomar e atualizar seus grandes temas. O projeto entrou em compasso de espera frente à grave crise financeira iniciada em 2007 e precipitada em 2008, convertendo-se na mais grave crise econômica mundial desde o desastre de 1929. Provocou imediato desemprego nas economias centrais e depois nas periféricas, com aumento dos preços dos alimentos e consequente recrudescimento da fome no mundo.

“Que Bento XVI tenha recordado na Caritas in Veritate que ‘a fome ceifa ainda a vida de muitíssimos Lázaros impedidos de sentar-se à mesa… do rico epulão’ (CV 27), que a reforma agrária siga sendo urgente; que o acesso à alimentação e à água sejam direitos universais de todos os seres humanos sem distinção ou discriminações (CV 27) não é nenhum pleonasmo”, comentava Il Regno  no seu editorial de apresentação da encíclica . Recordou ainda que “Dar de comer aos famintos (cf. Mt 25, 35.37.42) é um imperativo ético para toda a Igreja, que é resposta aos ensinamentos de solidariedade e partilha do seu Fundador, o Senhor Jesus. Além disso, eliminar a fome no mundo tornou-se, na era da globalização, também um objetivo a alcançar para preservar a paz e a subsistência da terra” (CV 27).
O papa reafirmou também o papel reitor da política na esfera econômica, que não pode ser deixada ao sabor das leis cegas do mercado, sem nenhum controle da parte do Estado, e muito menos subtrair-se às exigências da ética, (CV 39 e 45 a 48), ao dever da cooperação internacional e da solidariedade (CV 47). Suas referências deviam ser, de um lado, o bem comum e, de outro, a centralidade da pessoa humana e do seu bem estar material e espiritual (CV 47).

Sublinhou o papa a necessidade de um sistema global com três sujeitos, o mercado, o Estado e a sociedade, sem a atual ditadura imposta pelo mercado em particular o financeiro, que opera sem qualquer referência às necessidades humanas mais prementes ou ao bem comum da humanidade (CV 38).


Novas questões

Sua novidade maior encontra-se na IV parte, em que aborda o tema da relação dos seres humanos com a natureza e a grave crise ambiental em que está mergulhado o planeta (CV 49-52). Muitos ambientalistas consideraram, entretanto, que o tratamento dado à temática ficou aquém da gravidade e urgência do aquecimento global e de outros desequilíbrios e desastres ambientais. O tema não fazia ainda parte da agenda global nem da sociedade nem da Igreja, quando foi escrita a Mater et Magistra, em 1961.

Logo depois, em 1972, o Clube de Roma  publicou o seu relatório Os limites do crescimento. Este tratava de problemas cruciais para o futuro desenvolvimento da humanidade, tais como energia, poluição, saneamento, saúde, ambiente, tecnologia e crescimento populacional. Vendeu mais de 30 milhões de cópias em 30 idiomas, tornando-se o livro sobre as questões ambientais mais vendido da história. Colocou na agenda internacional o tema do desenvolvimento sustentável, além de sua controvertida proposta, hoje tão debatida, de “crescimento zero”.

Além da questão ambiental há uma segunda que vem se tornando crucial, a das migrações. A demanda dos mercados e dos países centrais do capitalismo globalizado por livre circulação de bens, mercadorias, serviços e ativos financeiros vem acompanhada, entretanto, por demanda inversa e de sinal trocado. Estabelecem-se, cada vez mais, restrições e entraves à livre circulação das pessoas e de seus familiares. Barreiras legais e mesmo físicas, com a construção de cercas elétricas e muros de concreto nas fronteiras entre países, acompanhadas de crescente xenofobismo e criminalização dos migrantes, vem sendo a resposta cruel à nova onda migratória mundial, provocada por guerras, desequilíbrios econômicos e, cada vez mais, secas, inundações, contaminações químicas e nucleares e outros desastres ambientais.
Finalmente, o tema da guerra e da paz necessita ser repensado com toda urgência. Há, de um lado, o terrorismo que não respeita alvos civis e ceifa vidas inocentes e, de outro, a “guerra ao terror” movida por governos que se arrogam o direito de agir acima e ao arrepio de qualquer lei e limite, desrespeitando todas as convenções que protegem civis ou prisioneiros, em caso de guerra. As alegadas intervenções “humanitárias” vêm se tornando disfarce cínico e hipócrita para defesa de interesses e posições de poder, em vez de socorro desinteressado a populações civis indefesas frente à brutalidade de Estados sem lei, à limpezas étnicas ou mesmo a genocídios programados.

O que mais impressiona, entretanto, numa comparação entre as duas encíclicas, é que a Caritas in Veritate não provocou, de modo algum, o impacto e o vivo debate suscitados em todo o mundo pela Mater et Magistra. A observação vale tanto para a opinião pública laica quanto para os ambientes mais internos da Igreja Católica. Não suscitou tampouco entusiasmos ou iniciativas que levassem a sério as graves questões ali levantadas.
Neste sentido, mudaram o mundo, a Igreja e também o tom e a formulação de sua doutrina social, não necessariamente para melhor.


IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

José Oscar Beozzo –
A muitos passou provavelmente despercebida a proposta metodológica contida na Mater et Magistra. Na última parte, quando João XXIII passa para as sugestões práticas, traz uma surpreendente proposta: “Pois bem, para se pôr em prática a doutrina social, passa-se ordinariamente, por três etapas: em primeiro lugar, o estudo da real situação concreta; a seguir, atenta apreciação da mesma à luz dos princípios; finalmente, determinação do que se pode ou deve se fazer, a fim de que as normas dadas possam ser aplicadas, conforme os tempos e os lugares. São os três momentos, habitualmente expressos com as seguintes palavras: ver, julgar e agir (grifo nosso)” (MM, n.236).

Foi a primeira vez em que um documento pontifício recomendou o método fecundo da Juventude Operária Católica – JOC de Joseph Cardijn  e que inverte o caminho até então seguido de se derivar da doutrina e não do atento exame da realidade, as propostas de ação. Desta recomendação, avançou depois João XXIII em sua proposta, com o apelo para se estar atento aos “sinais dos tempos”, já que Deus nos fala no hoje da história e interpela-nos por meio da realidade e dos acontecimentos.

Finalmente, o método foi plenamente acolhido no Concílio, durante a elaboração da Gaudium et Spes, cujo proêmio é claro exemplo desta mudança de paradigma na reflexão teológica e na apresentação da doutrina, sempre subordinada à pastoralidade, objetivo último de toda ação da Igreja: “As alegrias e esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegria e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo. Não se encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração” (GS, n.200).
Três anos depois, na América Latina, todos os 16 documentos da II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano em Medellín (1968) assumiram esse itinerário metodológico, que foi logo depois seguido e amplamente aprofundado e teorizado pela Teologia a Libertação .


Leia Mais...

> > Confira outras entrevistas concedidas por José Oscar Beozzo à IHU On-Line.

• “O retrato de um Brasil muito diferente”, publicada nas Notícias do Dia em 29-07-2009

• “Dom Helder, pastor da libertação em terras de muita pobreza”, publicada nas Notícias do Dia em 07-02-2009

• “A política tornou-se, o mais das vezes, um teatro”, publicada nas Notícias do Dia em 20-06-2008

 “Giuseppe Alberigo”, publicada na IHU On-Line, número 225, de 25-06-2007 

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