Edição 356 | 04 Abril 2011

A necessidade de uma outra política macroeconômica

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Patrícia Fachin

A política econômica do início do governo Dilma é essencialmente a mesma do começo do governo Lula, constata o economista David Kupfer

O discurso de campanha da presidenta eleita, Dilma Rousseff, sinalizava uma possível mudança estrutural, que teria repercussões na erradicação da pobreza e no desenvolvimento brasileiro. Mas será que “esse novo governo está preparado para fazer escolhas?”, pergunta David Kupfer em entrevista concedida à IHU On-Line. Na sua avaliação, embora o crescimento econômico ainda permaneça como foco do novo governo, a equipe econômica está cada vez mais preocupada em conter a inflação. Segundo ele, a preocupação do alto escalão faz sentido porque o retorno da inflação pode corroer o poder de compra das famílias brasileiras e matar “a galinha dos ovos de ouro” do modelo de consumo, que “está na essência do mecanismo de crescimento da economia brasileira”.

Especialista em política industrial, Kupfer estima que a indústria brasileira continuará perdendo competitividade em função dessa estratégia de combate à inflação. Na entrevista que segue, concedida pessoalmente quando esteve na Unisinos ministrando a aula inaugural do curso de Economia, ele explica: “O que tem de estar claro é que o Brasil está importando uma inflação dele próprio, pois parte importante dos preços em ascensão é de matérias- primas que são, muitas delas, exportadas pelo país”.

David Kupfer é mestre e doutor em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Atualmente, é coordenador do grupo de pesquisa em Indústria e Competitividade - GIC-IE/UFRJ. É autor de inúmeros artigos sobre inovação, competitividade e concorrência na indústria brasileira além de e coautor do livro Made in Brazil (Rio de Janeiro: Campus, 1996) e organizador de Economia Industrial (Rio de Janeiro, Campus, 2002).

Confira a entrevista.


IHU On-Line - No final do ano passado, o senhor explicou, em entrevista concedida à IHU On-Line, que o receio do aumento da inflação levaria ao aumento da taxa de juros, que levaria a revalorização do real e novamente o Brasil continuaria nessa circularidade. É o que está acontecendo neste momento? A economia brasileira está novamente diante do desafio de desatar o nó cambial?

David Kupfer –
Sim. Está acontecendo exatamente aquilo que era previsto: a situação macroeconômica não está dando margem de manobra e o grau de liberdade se resume a ajustar a taxa de juros para cima. O governo está elevando a taxa de juros, agora também recorrendo adicionalmente a outros tradicionais instrumentos da política monetária, hoje chamados de macroprudenciais, mas permanece o objetivo final de frear o ritmo de crescimento da economia com a decisiva contribuição da valorização do real. Não se conseguiu ainda desenhar uma mudança relevante na linha mestra da política macroeconômica que permita ao país escapar dessas restrições ao crescimento rápido e sustentável.


IHU On-Line - A estimativa de crescimento para este ano é de 4 a 5%. É esse um percentual considerável, tendo em vista o alto crescimento do ano passado?

David Kupfer –
Entendo essa pergunta de duas formas. A primeira é relativizar o crescimento de 7,5% de 2010. Tirando-se a média dos 7,5% do ano passado com o 0,6% negativo de 2009, veremos que a média de crescimento desses dois anos foi de 3,5%. A segunda é que os especialistas estão revendo para baixo a expectativa de 4% para 2011. Nos dois casos, o percentual continua próximo daquele número mágico dos 3,5% que os defensores desse modelo de política macroeconômica afirmavam ser o produto potencial brasileiro, isso em plena fase de crescimento restringido do início da década passada. Então, de algum modo, estamos em um ritmo que pode ser entendido como piso para o crescimento brasileiro. A conclusão é inevitável: deveríamos ter uma política macroeconômica diferente para o país poder andar menos devagar do que essa velocidade mínima.


IHU On-Line - Como o senhor vê o anúncio do ajuste fiscal?

David Kupfer –
No final do ano, vamos ver que o ajuste fiscal seguiu o ciclo político. A política econômica do início do governo Dilma é essencialmente a mesma do começo do governo Lula. A grande diferença, é que em 2003, havia uma crise política de credibilidade, que provocou uma explosão inflacionária, e desta vez não há nada similar. A sucessão foi absolutamente tranquila. Portanto, do ponto de vista econômico, pode se questionar se o ajuste fiscal é efetivamente necessário. Mas, do ponto de vista político é mais fácil entendê-lo. Primeiro, todo governante aperta o cinto no início para gerar recursos para, quando as eleições estiverem mais próximas, ter caixa a fim de poder fazer um governo mais exuberante. Isso tende a ser assim na democracia. Mas também cabe considerar que o governo anterior abriu espaço para uma exacerbação de demandas da sociedade e agora há a necessidade de contê-las para devolver ao gestor a capacidade de atribuir prioridades. Essa leitura política torna mais compreensível que o novo governo tenha optado por anunciar um ajuste fiscal como seu cartão de visitas.


IHU On-Line - O senhor concorda com a ideia do economista Delfim Netto, de que os investimentos atuais são grandes, mas, enquanto não amadurecem, são demanda e não oferta? A partir desta perspectiva, está posta uma armadilha para a economia brasileira?

David Kupfer –
Sem dúvida nenhuma. O Brasil está engargalado pelos problemas de infraestrutura há muito tempo e a velocidade com que está se construindo infraestrutura no país não é suficiente para que esse cenário que Delfim Netto sugere se torne realidade, ou seja, que ela deixe de ser demanda e vire oferta. Neste momento, o investimento em infraestrutura significa demanda, o que é bom porque absorve produção. Porém, não estando pronta, a infraestrutura não diminui os custos de produção. O problema é que o investimento no Brasil tem ocorrido de forma lenta e com períodos de maturação muito grandes: as obras demoram demais para serem decididas, concebidas, projetadas, executadas e ficarem prontas. As razões para isso são conhecidas e remetem a problemas da natureza da relação público/privado, das questões de regulamentações jurídicas e a todo o embrulho administrativo e burocrático que existe no país atualmente. Há obras do primeiro PAC que já deveriam estar mais do que prontas, mas ainda estão a 30, 50% do caminho.


IHU On-Line - Os empréstimos do BNDES superaram cinco vezes mais os empréstimos do Banco Mundial. Como o senhor vê essa informação? Em algum momento o banco terá de rever os investimentos?

David Kupfer –
O BNDES é maior que o Banco Mundial há muitos anos ou mesmo décadas. O volume de empréstimo do BNDES já superava o do Banco Mundial na década de 1980. Acontece que o banco ganhou uma dimensão muito grande em relação a ele próprio. O BNDES está emprestando tudo que pode e mais um pouco - algo na ordem de 150 bilhões de dólares, o que equivale a mais de um quinto da formação bruta de capital do país. Penso que está havendo uma percepção do governo e do próprio BNDES de que está se chegando a um limite. O banco teve de compensar a crise, mas a economia já superou essa fase. Só que no momento não existe um mercado de capitais privados que tenha essa capacidade. Com a crise do final de 2008, a própria Bolsa de Valores recuou em relação a sua capacidade anterior de mobilizar capitais para os novos negócios. Esse é um dos principais gargalos estruturais ao crescimento que o Brasil enfrenta.
No final de 2010, o governo baixou um conjunto de medidas para fomentar o crédito privado de longo prazo que foram bem recebidas pelos economistas. Há um entendimento, porém, de que essas medidas levarão pelo menos dois anos para produzir seus efeitos. Então, esperamos que surja um mercado de capitais privados no Brasil com capacidade de financiar o desenvolvimento econômico. Será, sem dúvida, um grande salto.


IHU On-Line – Dilma irá governar em um cenário internacional mais turbulento? A elevação do preço das commodities pode interferir de algum modo? O senhor vê risco de desequilíbrio externo?

David Kupfer –
Tenho pensado nessa questão das commodities já há alguns anos. O fato é que a alta de preços ora em curso no mercado internacional está sendo inteiramente transferida aos preços domésticos. Não sei em que medida podemos imaginar mecanismos pelos quais o sobrepreço que o exportador brasileiro de minério, soja, celulose ou tantas outras commodities está obtendo não venha a ser cobrado dos usuários no mercado interno. Obviamente, se os preços são totalmente livres, então, de fato, é inevitável que isso ocorra. No entanto, existe chance de que, nesse momento específico, um mecanismo de contenção de preços no mercado interno não prejudique a competitividade das empresas como ocorreu no passado.

O que mudou? Na década de 1980, havia um processo inflacionário crônico, de forte caráter inercial. Para tentar segurar a inflação, o governo restringia os preços dos insumos básicos, em boa parte produzidos por empresas estatais, mantendo os preços no mercado interno abaixo dos internacionais por longos períodos. Esse tabelamento dos preços domésticos foi quebrando os exportadores nacionais porque eles se viam forçadas a trabalhar com preços que não remuneravam seus custos. É como se o preço internacional estivesse no lugar e os preços domésticos fora de lugar. Hoje, a situação é diferente. São os preços internacionais das commodities que estão fora de lugar, havendo, portanto, espaço para se ter um preço no mercado doméstico inferior ao internacional.


Alternativas

A questão é encontrar um mecanismo que possa cumprir adequadamente essa função. Tem um espaço de trabalho aí, embora pareça tardio imaginar um sistema de taxação das exportações de commodities, tal como tem sido feito na Argentina e, mais recentemente, na Austrália. No caso brasileiro, isso poderia ter sido feito no passado, em 2003 ou 2004, quando o ciclo de alta de preços internacionais de commodities já ia de “vento em popa”, mas o real ainda se encontrava desvalorizado. Hoje, com o real super-apreciado, talvez não seja mais o caso. Uma opção diferente seria aumentar a apropriação pública da renda mineral e da renda da terra, por meio de royalties e similares. Esses recursos poderiam ser direcionados para fundos de estabilização de preços dessas matérias-primas ou de fomento ao investimento em atividades agregadoras de valor. Longe de uma ideia acabada, é mais um registro de que talvez valha a pena aprofundar um pouco a reflexão sobre essa questão.


IHU On-Line - A tentativa de conter a inflação poderá afetar a indústria? A política econômica do governo se articula com as necessidades do setor?

David Kupfer -
O modelo de estabilização brasileiro não é pró-indústria; é um modelo que ajusta, um pouco nas costas da indústria, a necessidade de ter compensações para determinados custos que são crescentes no país. Como a indústria trabalha com comercializáveis, o que se pode fazer é achatar o preço da indústria, expondo-a a concorrência internacional e, adicionalmente, induzindo um processo de valorização cambial. Em síntese, o governo está barateando o preço do produto industrial, o que ajuda a controlar a inflação. Como a inflação está se acelerando, provavelmente terá de ser aplicada uma dose mais forte da mesma fórmula que vem sendo usada há quase 20 anos. Isso vai significar novamente uma compressão nos preços industriais, que virá do aumento da taxa de juros o qual, por sua vez, irá trazer mais uma rodada de valorização do real, barateando a parcela importada dos bens industriais e também os próprios custos de produção industrial.

Penso que será inevitável que a indústria vá passar por uma nova rodada de perda de competitividade nos próximos anos. O que tem de estar claro é que a indústria acaba arcando com os efeitos nocivos de um modelo de combate a uma inflação que o Brasil está importando dele próprio, pois boa parte dela vem de aumentos de preços de matérias-primas que são exportadas pelo Brasil.


Nem toda a produção chinesa é estatal; é um pouco complicada a estrutura do capital na China. De qualquer modo, o país tem dado sinais de que o interesse nacional chinês se limita aos produtos mais básicos. A China tem procurado o Brasil para exploração primária agrícola e mineral. Evidentemente, não há uma razão clara que nos leve a imaginar que o país irá mudar de postura. Então, a relação do Brasil com a China é complexa e, embora nesse momento a China esteja ajudando o equilíbrio comercial brasileiro, tende a se tornar conflitiva com o passar do tempo. E quando essa fase de auge do ciclo das commodities reverter e a China não gerar tanto superávit para o Brasil, esses conflitos tenderão a se aguçar. Imagino que há uma percepção dos formuladores da política externa brasileira nesta questão e, evidentemente, todo o movimento da política externa brasileira já reflete esse desafio chinês. Imagino que a aproximação de Brasil e EUA é uma forma de buscar meios para que os dois países tentem neutralizar essa ameaça chinesa.

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